O mundo das pequenas coisas é muito grande e muito pequeno. Tem cores - e é bonito ver, de novo, as cores, seu encantamento - , é calmo e lento e tem com o tempo outro contato. É de momentos longos de longos silêncios e dos carinhos cotidianos das pessoas.
O mundo das pequenas coisas é feito de contato. Tem menos internet, menos telefone e se preenche com as peles que as pessoas expõem na rua, no trânsito, nos apartamentos mobilhados que dão de frente para a minha janela. É feito dos sons das madrugadas (porque nesse falso silêncio, nessa falsa calma, há pesadelos, contas a pagar, sonhos cheios de adultério, mensagens em segredo com o amante escondido, o grito de briga de um casal bêbado que estava bêbado de alegria e dorme bêbado de raiva). As ressacas dos outros na manhã de quarta, na vida em suspensão que esse tempo de Copa e futebol imprimiu em todos na cidade.
É estranho porque há muito não ficava tão profundamente ligado ao mundo das pequenas coisas, onde tudo é importante. Quando desligo o telefone - nas poucas vezes que o uso - fico minutos em silêncio. Minutos que se tornam horas, dias. Tudo isso, sempre, minutos. Um emudecimento que se preenche de sons de seres vivos - um cão que late no apartamento fechado, a conversa sobre a troca do piso do banheiro do vizinho, os amores adolescentes cantados em um violão que ainda nem conhece os demais acordes dissonantes, as meninas que se reúnem e suas vozes que saltam das janelas, elas organizando passeatas, manifestações e sonhos de mudança.
Nas pequenas coisas tudo muda constantemente. São várias tomadas daqueles filmes cheios de silêncio, onde o prato sobre a mesa fica minutos intermináveis na tela, a chama do cigarro demora a apagar e ficamos horas hipnotizados na fumaça. Enquanto a cena é lenta e em decomposição, as imagens das casas que morei reaparecem sobrepostas às imagens que lembram imagens de cinema lento, estão na memória, meus rostos são revisitados. Tantas posturas e mortos!
É dos mortos o mundo das pequenas coisas. Nele os mortos conversam, falam do que não aconteceu. Eu, que disse ter dito e não disse tudo, porque nunca se diz tudo. E os mortos ouvem as frases repetidas (e o quanto não disse para eles de efetivamente produtivo, de verdadeiro!). Os mortos estão nas fotografias impressas, nas do computador, no que apaguei e no que guardei deles na memória. As pessoas cristalizadas, sem mais mudanças, que não sei mais se reconheceria se passassem por mim nas ruas. E não saem disso, desses mortos, nem lágrimas, nem versos.
Mortas também estão as casas da memória, reformadas, recoloridas, preenchidas de outras almas e com outra vida, guardando outras histórias. E tento me ver (eu que também já estou morto, de certo, para aquele tempo daquelas casas) ali recolocado, reposto. Nada mais tem encaixe certo, mesmo que a gente force a peça para entrar no quadrado.
Busquei vozes amigas e encontrei, nas pequenas coisas, pessoas que estão no mesmo instante. Está lá a Vá, do outro lado da invisível linha, na mesma introspecção do mundo das pequenas coisas. E ela confessou belezas, como o pedalar para pôr em movimento o coração. Fiquei pensando: o que faço eu, nesse meu mundo de pequenas coisas, para acelerar o coração, se ainda não pedalo como ela? Aprendo música?
E sim, aprendo música. Comprei uma viola, suas histórias e os sonhos que ela carrega. Ela me disse, nesse mundo das pequenas coisas - porque nele, as coisas também falam conosco - que eu ando necessitado de poeira de estrada. De poeira e sertão, para ouvir histórias de pactários, ponteios sertanejos e palavras roseanas, aquela minha adiada viagem para às margens do Chico, para seguir até o liso do sussuarão. Ou estou eu, nesse mundo das pequenas coisas, no meu liso do sussuarão, desértico, metafórico, poético, cheio de histórias de pactários e de seus instrumentos? A viola preenche o espaço, começou a construir uma ponte entre o mundo das pequenas coisas e o das grandes sensações. Uma ponte que, na verdade, nunca será usada, porque a viola viajará comigo na estreita canoa entre as duas margens dessa história.
Sentado, na margem de cá, nas pequenas coisas, no quarto de infância com o telefone na mão, em silêncio diante da indiferença dele desligado, frio, esse objeto de plástico de onde me chegam vozes do além, do aquém, das partes do mundo, ali, mudo, pôs um quadro claro, pintando só em branco azulado as cores de tudo o que aconteceu. Nas pequenas coisas, está o branco azulado, aquele silêncio branco-azulado da indiferença. O que pensar, no mundo das pequenas coisas, sobre a solidão-branco-azulada?