domingo, 21 de dezembro de 2014

porque as partes se partem

dizem que é preciso virar palavra, virar imagem. dizem que é preciso viver a falta, essa grossa sombra que não compreendemos. mas os mistérios, os destinos, as sombras grossas e marrons dessa falta não são precisas. não há precisão quando o que mais há, gritante, é precisão. ela falta? ela soma? ela nos vive por nós, no momento da absurda verdade que, de tão natural e real, tem ar de irrealidade, parece impossível? 
e ainda há estrada, há mais caminho. há mais dos bailes delas nas antigas salas que hoje ninguém mais frequentará. nem mais vestidos, nem mais o som e a surda condensação que extrapola o que há de doar. abre-se o salão da memória para o baile que ela habitou. e agora, no sempre, habitará?

sexta-feira, 24 de outubro de 2014

Para os artistas, com carinho.


     O que fazer, artista, depois de tanto acumular? O que escolher de cor, de som, de palavra, cheio que está de cores, sons e palavras? Qual movimento deve escolher, artista, se a dança já tem tantos, se os prédios já têm curvas, se as telas já têm outras formas de usar o som? Como, artista, diante de tanto novo, pode ainda fazer algo novo, problemático?
     O que escrever, artista, depois de tanto texto, seja sua escrita a pintura, a escultura, a dança, a música? O que escrever, artista, diante do que é branco, no silêncio? Em que casa viver, artista? Na que tem cores, que é das palavras-cores, ou na sem cores, só silêncio e branco? E se trocar a cor do papel artista, será novo o que você comunica, será nova sua expressão?
     Quanto tempo demora seu traço, artista? Um minuto, um mês, uma vida? E nesse traço, quanta força empreendida? O que soma em você, artista: a vontade de partir o branco em cores, quebrar o silêncio com traços, gestos, música e palavra? Qual vontade é essa? Quanto de medo há em você, artista, e quanto de coragem em seu expressar? Como, artista, saber se na máscara que vestirá, na cena próxima do ato antigo, irá honrar a todos os atores que, como você, já quiseram inovar tantas máscaras?

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

corda de tecer

para ana.



amor, tece as mãos!
as quatro mãos do destino
e as reconhece plurais e espelhadas
sem certeza.


onde não teceres quatro mãos,
amor, fia as que faltam
ou desfia todas.
transcende as mãos em outras linhas
faz bordado que embola
- tantas voltas -
no avesso complicado da cor.


amor, tece mãos!
com elas
desenha dedos para perceber-te no escuro
(porque há outros
sentindo)
e ensaia um pensar difícil e cifrado
para nelas
para ambos desistirem do pesar que há nisso
e, então, de mãos tecido, amor, sem mais pensar
conta-te fio a fio
destece-te
e toma o ar em par de asas!

domingo, 19 de outubro de 2014

Dos ares lavados


“.............................................................................
Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.

 

Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e dor agora, é vício.
…...........................................................................”


Mineração do outro – Carlos Drummond de Andrade



Fazer as malas como quem compõe o corpo a ser decifrado. Escolher cada roupa e cada cor de roupa, escolher as cores mais nulas porque a cor, seu contraste, devia dar espaço ao corpo que compunha. Cumprir a coragem de romper silêncios e distâncias, naquela mala – corpo em composição – crendo haver no ato algo maduro, lúcido, sóbrio. Havia. Mas havia quilos de medo, apreensão, cicatrizes. Mas era preciso cumprir a coragem que a existência nos obriga, correr o risco, sim!, porque a vida é feita de correr riscos. E rompeu-se a distância no tempo presentificado e lento, sem haver depois – que haveria.

Abrir a mala como quem abre um corpo e retirar-lhe os sentimentos em camisas, peças íntimas, um par de chinelos velhos. Tirar do corpo, peça a peça, o que deveria – pesado e medido – dizer em precisão, em primazia. E o corpo abriu-se aos poucos, ainda cheio dos avisos do medo, mas cheio de coragem. Como romper as fortes águas do mar – que ali havia – bravio a ponto de expulsar, mas em calmaria incomum, de duvidar serem águas do mar a penetrar, calma e cristalina lagoa que se tornaria em onda despregada que não imaginava haver – e haveria?

Fechar a mala como quem costura um cadáver. Sem capricho porque o corpo não precisaria mais ser visto. Descomposto, confusos órgãos e sentimentos, medos e coragens, com corpos por costurar em mim, neste mim que em mim, profundo, esconde-se de tudo, pequenino. Desmembrado, rasgadas as partes sem nenhum cuidado, sem capricho. Tudo, de repente, cortado como a um mutilado, como corpo sem autópsia. Morto? Mas corpo ainda, sem destino, sem ação porque no aniquilamento foram-lhe cortadas as pernas. Para onde seguir, amor, sem corpo agora que seja seu, depois de aberto em flor e de rasgado a dentes espumantes, ódio pútrido? Houve a onda em fúria, e se partiu na areia.

Tiro do corpo amputado, a mala fria sem cuidado, os frangalhos da empreitada. Não houve o que o corpo, nu e composto, pensou encontrar? Há ainda algum corpo a vestir os sentimentos que, embolados e sujos, saem, um a um, da mala, para que agora, em casa, protegidos, possam ser lavados, perfumados, pendurados nos varais? E o segundo vigilante guardou o movimento da onda quebrando na areia, recuo das águas que não percebi porque mirava relaxado as estrelas, quando na sombra da noite o mar partiu camisas, mala, corpos e palavras? O segundo, será que ao menos o segundo teve piedade quando a onda partiu tudo cheia de ódio e fúria, barulhenta na praia dos destinos, sem nenhum cuidado ou gentileza? Guardou o segundo do quebra-mar a memória do vivido?

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Embreagai-vos

Mais uma vez Baudelaire.

"É necessário estar sempre bêbedo", que esteve comigo desde os primórdios de meus estudos, e estará sempre. "Para não serdes os martirizados escravos do Tempo, (...) embreagai-vos sem tréguas! De vinho, de poesia ou de virtude, como achardes melhor".

Nunca tão atual como agora, em que o tempo da informação venceu o tempo da experiência. Em que a rememoração venceu a memória. Em que o tempo, atomizado em último grau, agora nos controla na fome constante, na vontade de mais, no medo da perda de qualquer coisa.

E como nunca temos tempo, embreago-me para saber que tudo se reduz a isso; eis o único problema. Para não sentir o fardo horrível do Tempo, que me abate e me faz pender para a terra, é preciso que me embreague sem cessar.


terça-feira, 30 de setembro de 2014

aprendo todo dia um jeito diferente de não me levantar da cama. mas insistem que há vida lá fora e que eu preciso dela, de alguma maneira. meu diário é um livro de consultas sobre o que não fazer de novo, sobre o que faço de novo, sobre o que ainda preciso pensar melhor. os poemas que serão perdidos estão aqui, nas estantes, em papéis dizendo que o eu que está neles não sou eu, mas é maior que o mim que habita em mim, na dupla relação complicada de existir no mundo com um mundo. faço café todos os dias com a promessa de parar um dia de fazê-lo, promessa inútil como a pergunta se se é feliz. a felicidade não é um ser, como eu, como alguém com nome diverso do meu. pode ser nome, palavra de dicionário. não é um fim de estrada que se caminha, prêmio por conquista. a felicidade está nas forças duras do mundo, aquelas que me ensinam todos os dias que eu não as posso atravessar. nem às partículas do ar, que se deslocam para eu ocupar-lhes o espaço abandonado. todos os dias, as coisas se repetem e Machado de Assis confere a mim alguma ironia no dia. Cronópio cortazariano, com doses extras de Fama que atrapalham, cercado de esperanças, essas bibliotecárias, e de referências intertextuais sacanas que levam esse texto a outros caminhos interpretativos. não sou eu que escrevo aqui, saibam disso. não me creditem.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

um mosaico

As situações, coladas uma a uma, vão formando um estranho mosaico. Muita imagem embaralhada e tudo me confunde porque, no mosaico, há recortes de mim que nem sei onde estavam, se existiram, se me compõem de fato. Há pedaços descolados de pessoas que duvido a existência, assim fantasmagoricamente postas em seus detritos, o que deixaram em mim, montes de entulhos e relíquias, um rabisco apagado no espelho que só se vê quando o calor do quarto abafa o vidro, mas que na noite o sono faz confundir a realidade.

O mosaico é grande, toma conta de todo o apartamento – em si, só por si, já um mosaico. Está nas vasilhas que guardei, nas digitais que separei das xícaras (limpando-as antes de colar ao mosaico), buscando uma forma possível de resposta. Sei que ela está nas fotos impressas, nas deletadas, nas devolvidas. A resposta está em todos os rastros que apaguei. Mas como há resposta se limpei tudo para pôr no mosaico e nada ainda me parece producente, capaz de dizer alguma novidade vinda de outro hemisfério? 

O passado está para além de outro hemisfério. É quase uma outra vida se o vislumbro da janela do hoje. Ainda me ligo a ele porque ainda assino o nome do passado, embora a face já esteja dele distante, e os sentimentos ventilados não se notem nem nas fotografias. Estou nele pelas notícias dos vivos que estão nas outras pontas das linhas dessa teia – telefones, correios, internet –, no meu pensamento que se inaugura todo dia, sendo o mesmo de ontem, mantendo-se em linha sempre a saltar-me em novidades. Nas crenças que abandono e nas que mantenho. 

Mas é quase outra vida à janela do hoje, no apartamento. E buscar comunicação é como falar com os mortos: é só a sensação de que é possível falar com eles, sem que a fala possa ser comprovada por outro ouvinte. Então, é sempre dúvida a que se espera comprovação do destino. E há destino, sabe-se, porque talvez os gregos tenham plena razão, para além da necessidade de moralizar. Há destino porque, nesse passado, muito só se explicaria (se fosse necessário explicar) por essa força antiga, mítica, subterrânea e sem tantos crentes nela quanto outrora, caminho do qual não fugimos. 

Da janela do hoje, meu passado, o que é meu em mim, jaze quase incomunicado. E torna-se presente na noite, fantasma branco encardido, que flutua carregado de algo que um dia chamei sentir: um sentir distinto do outro por nomes demais conhecidos. 

Disforme, o mosaico, ensaio de pergunta, é estranho e ainda não diz nada. Mais apaga que perdura na memória que o quer manter. E uma indiferença densa, vazia de sentidos, preenche esse espaço. Terá existido? Seria, o que disse ser? Algum dia, algum acontecimento que lampeje ainda na memória existirá para além da memória que o imaginava, cativava e alimentava? E no rosto? Existiu o rosto no rosto que boia na noite, entre sono e entre-sono, ou foi ilusão, como tudo o mais é nesse mosaico sem formato, sem rosto a que reconheça meu?

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

O mar, o grande coração do mundo,
bate em meu peito.

aqui, perto
do que eu creio

(se é
que
creio)

os braços do mar
seu sal
sua sombra
o que lava
e
leva
dos rochedos

limpam a noção de visão
coordenada do que
intimida

o grande coração do mundo
água e sal de mim
pulsa nas retinas
de papel
das minhas vistas.

Vitória, agosto, 14.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Carta aberta ao meu poeta maior

Poeta,

estive em teu chão. Era de chão que precisava, poeta, cheio de minério. Pisei antigos assoalhos, andei em cômodos que hoje têm teus versos transcritos em livre disposição. Versos de família, no teu antigo lar, aquele que figurou em tua parede de poemas, de versos escritos aos ares sobre a memória dessas casas, de tua Itabira longínqua, hoje mudada, repelida daquela que não cabe mais na velha fotografia, como se o vestido de brumas da cidade não a vestisse mais como antes.

Trouxe prendas, poeta. Ganhei um retrato de tua família, tu no canto esquerdo, de terno listrado, rosto sério, jovem ainda entre teus parentes que o tempo desbota. Ouvi as homenagens que te foram destinadas há alguns anos, no Rio (pessoas de vária formação recitando teus versos), expostos em vídeo na parede da estrebaria, na parte debaixo da casa, aquela que ainda guarda o cheiro antigo dos cavalos de teu pai. Os cavalos poéticos que ele montava quando ia para o campo, no tempo em que lias Robson Crusoé. Os poros de taipa do espaço guardam cheiros ancestrais, cheiro de vida que um dia pulsou comum e ordinária como a vida das famílias, com seus problemas circunscritos.

Vi teus poemas em ferro forjado nas ruas mais antigas de tua cidade, não mais qualquer, mas ainda de ferro nas calçadas e nas almas. As pedras de minério calçando as ruas. Pedras que ainda hoje abandonam Itabira em vagões também de ferro, no trem de ferro que jogará todo o aço do futuro no fundo de uma embarcação, indo encontrar seu destino pelos mares, solto em pó preto voando pelos ventos de Vitória, rumo às almas, à China, ao mundo.

Itabira também é mundo porque cruza os mares, poeta, para além de teus versos. O chão flutuante de Minas abastece o mundo de coisas de metal que não ouso listar, e a terra revolvida, absconsa, pousa entre as serras, expondo-me nessas luzes cinzas de inverno o paredão que sobrou do Pico, a cratera de pedra disfarçada de rasteira braquiária.

Foi a música que fui ver em tua casa, poeta, e não teus versos na parede, no chão, no imenso pôster com o retrato que Portinari fez de ti. Mas antes de a música levar-me a teu antigo lar, foi o chão de Minas que me abasteceu de Minas nos dias que me faltam contar, nas histórias que me faltam escrever, talvez para outra carta, talvez para só um verso.

Há chão, poeta. Há, novamente, antigo chão em mim. Agora me reconheço. Tinhas razão: Minas não há mais. Mas ela ainda, como li em teus versos, poeta, escritos anos depois deste, permanece dentro e fundo.

Retornarei a teu lar, poeta, algum dia. A teu mar. Às Minas que flutuam, seja nas calçadas da capital, no Atlântico, no ar que se respira ao longo das margens de ferro da Vitória-Minas. E saberei: em tudo isso, seja no ar, no mar, nos trilhos de metal, é sempre chão que se busca habitar. Chão acima do chão, profundo e recolhido como o que há no caminho de uma estrada pedregosa, quando os sinos daqui se confundem com o som dos meus sapatos.


Até e sempre,


Danilo.

sexta-feira, 18 de julho de 2014

Do retornar


Numa praia de Vila Velha, esta semana, um filhote de baleia jubarte encalhou e morreu. O filhote pesava mais de uma tonelada e já apresentava as marcas das mandíbulas que tanto aprecio nas jubartes. Há muito, quando ainda morava na Ilha, no pequeno apartamento que recebeu esse nome em Vila Velha, falei com Luana que as baleias escolheram o mar, a sua liberdade e o que ele tem de ilimitado, o que fazia delas, para mim, os melhores animais dentre os seres vivos.
Quando uma baleia encalha, muitas coisas me passam em mente. A mais marcante é a razão pela qual vêm à praia, elas que desistiram da terra há milhares de anos. Por mais que os especialistas falem as muitas razões que trazem baleias às praias, algo nisso me impressiona, porque não é, para mim, um fenômeno de todo desligado do sentimento ancestral de voltar.
É teoria da ciência moderna que as baleias já foram, em algum momento da evolução, mamíferos terrestres que se alimentavam de pequenos crustáceos nas praias de um mundo anterior à humanidade. Por uma necessidade de adaptação, por cada vez mais entrarem no mar para buscar alimentos, as baleias evoluíram e, então, entraram definitivamente nas águas, deixando para trás o mundo terrestre e sua forte gravidade. Mas não perderam, nesse processo de evolução, seu amor ao ar que respiram.
Visto que a vida no planeta saiu do mar, a volta desse mamífero às águas é, a meu ver, como disse, um tipo particular de grito de liberdade. É uma escolha que mudou uma série de estruturas de biomas complexos, alterou a vida no planeta. Os maiores mamíferos do globo, ao voltarem ao mar, por sobrevivência, retornaram ao lugar do princípio e lá evoluíram, livres do peso do mundo.
Então, por que voltar à praia? Por que só algumas baleias encalham, só algumas são enterradas nas areias ancestrais que seus antepassados pisaram?
Penso sempre que vejo isso: as baleias sentem, de alguma maneira, saudades da praia. Mas algumas, só algumas, retornam, mesmo essa de que falo, a jubarte ainda filhote. E a saudade pode ser desastrosa nesses casos, porque sair do mar não fará as baleias voltarem a andar. E voltar, essa pulsão natural, pode ser a mais fatal das escolhas, causando-nos, por fim, a sensação de que tudo, enfim, pode encalhar. E se encalhar, morreremos, ou poderemos contar com as marés?

terça-feira, 15 de julho de 2014

do vermelho-alegria

Qualquer coisa a ser dita nesta profunda alegria é inútil. É inútil a metáfora de que a vida é barulhenta como um trem que passa por um túnel. Inútil também a metáfora de Caetano de que só o verso é capaz de botar mundos no mundo. É pouco a metáfora de Gilberto Gil de que toda menina baiana tem um jeito, ou dos versos de Drummond sobre a Bahia, ou mesmo aquele gostoso som das músicas de Caymmi na voz de Maria Bethânia. Talvez Maria Bethânia cantando Chico, mas ainda sim diria pouco. Talvez a metáfora severina de Cabral, porque tudo isso ainda diz pouco das fortes alegrias.

Alegria é um bom termo (mesmo que a palavra diga pouco). Lembrei de uma madrugada em que ouvimos na esquina (a gente chegando em casa) "Proibido proibir", do Caetano, e um senhor perguntou se a gente estava bem, passava bem, e estávamos para lá das roupas de festa. Lembrei do sorriso debaixo das palavras escritas sobre o convento, o cigarro à janela do apartamento em um banco que espera outro cigarro. Lembrei de vermelho-alegria, de sexta em supermercado e jantar de sábado. Lembrei de pequenos silêncios, de sono de domingo à tarde, de cozinha, café e panquecas.

Talvez a metáfora do sorriso na avenida: dividida no coração numeroso do mundo, nas cores tão vivas nesse proposital dia nublado, a alegria diminuta, como na música, ressurge bruta como um maracujá, uma pedra, uma declaração de amor dita de pé em um banco de bar. O barulho-mundo ama e sorri de tudo, em seus desdobramentos, e estamos sempre em choque nesse roda-moinho. Outra imagem, também boa: estar na rua, no redemoinho, como o diabo, pois a alegria se movimenta, cheia de uma gargalhada adocicada de pecado. E a vida pode ser surpreendentemente fascinante. E deixa esse sorriso no rosto (sorriso que não me deixa), essa alegria de, como Caetano, cantar: por que não?

domingo, 29 de junho de 2014

Do mundo das pequenas coisas

O mundo das pequenas coisas é muito grande e muito pequeno. Tem cores - e é bonito ver, de novo, as cores, seu encantamento - , é calmo e lento e tem com o tempo outro contato. É de momentos longos de longos silêncios e dos carinhos cotidianos das pessoas.

O mundo das pequenas coisas é feito de contato. Tem menos internet, menos telefone e se preenche com as peles que as pessoas expõem na rua, no trânsito, nos apartamentos mobilhados que dão de frente para a minha janela. É feito dos sons das madrugadas (porque nesse falso silêncio, nessa falsa calma, há pesadelos, contas a pagar, sonhos cheios de adultério, mensagens em segredo com o amante escondido, o grito de briga de um casal bêbado que estava bêbado de alegria e dorme bêbado de raiva). As ressacas dos outros na manhã de quarta, na vida em suspensão que esse tempo de Copa e futebol imprimiu em todos na cidade.

É estranho porque há muito não ficava tão profundamente ligado ao mundo das pequenas coisas, onde tudo é importante. Quando desligo o telefone - nas poucas vezes que o uso - fico minutos em silêncio. Minutos que se tornam horas, dias. Tudo isso, sempre, minutos. Um emudecimento que se preenche de sons de seres vivos - um cão que late no apartamento fechado, a conversa sobre a troca do piso do banheiro do vizinho, os amores adolescentes cantados em um violão que ainda nem conhece os demais acordes dissonantes, as meninas que se reúnem e suas vozes que saltam das janelas, elas organizando passeatas, manifestações e sonhos de mudança.

Nas pequenas coisas tudo muda constantemente. São várias tomadas daqueles filmes cheios de silêncio, onde o prato sobre a mesa fica minutos intermináveis na tela, a chama do cigarro demora a apagar e ficamos horas hipnotizados na fumaça. Enquanto a cena é lenta e em decomposição, as imagens das casas que morei reaparecem sobrepostas às imagens que lembram imagens de cinema lento, estão na memória, meus rostos são revisitados. Tantas posturas e mortos!

É dos mortos o mundo das pequenas coisas. Nele os mortos conversam, falam do que não aconteceu. Eu, que disse ter dito e não disse tudo, porque nunca se diz tudo. E os mortos ouvem as frases repetidas (e o quanto não disse para eles de efetivamente produtivo, de verdadeiro!). Os mortos estão nas fotografias impressas, nas do computador, no que apaguei e no que guardei deles na memória. As pessoas cristalizadas, sem mais mudanças, que não sei mais se reconheceria se passassem por mim nas ruas. E não saem disso, desses mortos, nem lágrimas, nem versos.

Mortas também estão as casas da memória, reformadas, recoloridas, preenchidas de outras almas e com outra vida, guardando outras histórias. E tento me ver (eu que também já estou morto, de certo, para aquele tempo daquelas casas) ali recolocado, reposto. Nada mais tem encaixe certo, mesmo que a gente force a peça para entrar no quadrado.

Busquei vozes amigas e encontrei, nas pequenas coisas, pessoas que estão no mesmo instante. Está lá a Vá, do outro lado da invisível linha, na mesma introspecção do mundo das pequenas coisas. E ela confessou belezas, como o pedalar para pôr em movimento o coração. Fiquei pensando: o que faço eu, nesse meu mundo de pequenas coisas, para acelerar o coração, se ainda não pedalo como ela? Aprendo música?

E sim, aprendo música. Comprei uma viola, suas histórias e os sonhos que ela carrega. Ela me disse, nesse mundo das pequenas coisas - porque nele, as coisas também falam conosco - que eu ando necessitado de poeira de estrada. De poeira e sertão, para ouvir histórias de pactários, ponteios sertanejos e palavras roseanas, aquela minha adiada viagem para às margens do Chico, para seguir até o liso do sussuarão. Ou estou eu, nesse mundo das pequenas coisas, no meu liso do sussuarão, desértico, metafórico, poético, cheio de histórias de pactários e de seus instrumentos? A viola preenche o espaço, começou a construir uma ponte entre o mundo das pequenas coisas e o das grandes sensações. Uma ponte que, na verdade, nunca será usada, porque a viola viajará comigo na estreita canoa entre as duas margens dessa história.

Sentado, na margem de cá, nas pequenas coisas, no quarto de infância com o telefone na mão, em silêncio diante da indiferença dele desligado, frio, esse objeto de plástico de onde me chegam vozes do além, do aquém, das partes do mundo, ali, mudo, pôs um quadro claro, pintando só em branco azulado as cores de tudo o que aconteceu. Nas pequenas coisas, está o branco azulado, aquele silêncio branco-azulado da indiferença. O que pensar, no mundo das pequenas coisas, sobre a solidão-branco-azulada?

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Da vida em tese

Nos últimos poucos encontros que pude ter com amigos que há muito não via, a resposta às perguntas corriqueiras de "como vai a vida" ou "como tem passado" são dadas com uma frase que acho, sempre que digo, bem curiosa: "minha vida vai em tese". Em dois sentidos bem específicos. O primeiro, o do andamento do trabalho de pesquisa, suas demandas de horas de leitura e escrita diárias, dos poemas que releio constantemente, a confirmar as fontes dos textos, suas fixações, suas edições. O contato diário com o que, de fato, é o trabalho, creio, de todo pesquisador: o entre.

E a tese põe tudo em tese, em seu sentido de abstração e de incerteza. Em tese, tudo acontece. Mas nada acontece de fato porque a vida, a vida de verdade, que pede atenção nas louças, nas roupas por lavar, na casa por arrumar, não é em tese. Os planos, as vontades de viagem, o sentir, não podem e não devem estar em tese. Mas, os espaços do meu dia, até há muito pouco, eram um tedioso estar em tese, e cansei de estar em tese.

Há uma busca por novidades, por vida de fato, cheia de detalhes e de presenças, de carinhos compartilhados. A ida ao supermercado, o andar de ônibus, a vida das pequenas coisas do cotidiano só passíveis de serem vivenciadas quando não se está em tese - como o aperto de mão, o abraço, o sorriso afetuoso de quem está nas ruas, de quem amamos, com suas vidas nada em tese, acontecendo no trânsito que é a permanência no existir.

Na busca por esse trânsito fora das teses, resoluções importantes, fora dos poemas que me dizem da vida. A experiência de sentir o mundo real sem tese, na música, no que ele oferta de dança e de preguiça; no que o tempo oferta de possibilidade aos olhos; no meu eterno interesse curioso pelo mundo, pelas pessoas, como a constante vontade de viver cada ano em um lugar distinto.

Para a tese, o tempo que é dela, sem medidas. Para o além-tese, vida de verdade, feita de café com pão, de arte de todo tipo (sobretudo de muita música), de cinema de fim de tarde, de caminhar na praça: de dividir, de verdade, a vida com quem pretende ter vida a receber.

E, por início e fim, é na música que busco a saída: "eu já tô com o pé nessa estrada/ qualquer dia a gente se vê".

quarta-feira, 11 de junho de 2014

sexta-feira, 2 de maio de 2014

vide o verso

eu busquei o verso que solucionasse. virei-o de ponta, do avesso. em vão. as escolhas, sobretudo as que não cabe a nós tomar, não se solucionam ou se fazem no verso. o verso abraça essas escolhas, envolve-as, sem solucioná-las. o verso complica sempre muito mais. é quando ele complica que eu posso me ver de novo ao espelho. e me sentir bem porque me revejo, enfim, desguarnecido de escolhas, solto. limpo de tantas colagens que ao meu rosto foram feitas, carregadas de expectativas - como quem cola cartazes na parede de um quarto. meu rosto, essa parede cheia de rachaduras, ou só as rachaduras para além das paredes, ou só o além das rachaduras, aos poucos reaparece. e outros versos surgem, maiores: "não sou nada", "nada me prende a nada", "minha matéria é o nada". quem sabe, só agora, a palavra esteja retirando-me da suspensão, porque, só agora, posso vislumbrar o caminho, refeito, que abandonei. e a escolha? é em vão, sempre foi. como a porta a que não cruzaram. para que, no fundo, abri-la, ela que dava para uma parede só rachaduras?

segunda-feira, 28 de abril de 2014

retratos populares - parte II

...em um bar da rua ceará eu encontrei o choro, um cardápio que era um LP e duas fotos da Dalva que acho lindas. fui ao conservatório ouvir a um recital de uma pianista russa interpretando Rachmaninoff. fui ao cinema duas vezes numa mesma semana ver filmes razoáveis e encontrei um belo livro de poemas de Ondjaki, autor que eu conhecia só da prosa, e fiquei tentado com o livro de Valter Hugo Mãe, o já famoso "Máquina de fazer espanhóis" e o novo que será lançado essa semana no Brasil. estou me ajeitando para ir ao cinema ver ao Woody Allen em um filme que não é dele, nem por ele dirigido - e é tão raro ver o Woody Allen atuando em filmes de outras pessoas, soa estranho tanto quanto ver o Tarantino em película que não a dele. "Abraçaço" do Caetano é realmente muito bom, um disco e tanto, e o primeiro do Pó de ser emoriô também é, cheio de uma musicalidade nova, um trabalho gostoso e bonito de ouvir e de passar essas últimas tardes. as últimas tardes que se despedaçam nesse bonito sol de outono, aqui, numa manhã um pouco fria, sabendo que a dois quarteirões a vida pulsa indomada nos ônibus, nos restaurantes que se preparam para a hora do almoço, nas loterias, dentro de algum livro cheio de idas e vindas, cheio de escolhas. é preciso fazer escolhas, sempre, como a de dobrar uma esquina.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Memórias do blog: Abril - Amizade de cozinha


Abrindo a série “Memórias do blog”, apresentamos "Amizade de cozinha", um dos textos mais comentados pelos leitores. Foi escrito em virtude de um encontro que tive com amigos em 2010, em Mariana, cidade que ainda ocupa um lugar especial no meu coração (bem menor hoje, depois dos últimos momentos que vivi lá, seguramente). Porém, meus amigos (os que lá vi na ocasião e os demais, que juntamente com esses, há muito não vejo), sim sempre serão mais que especiais.

“Amizade de cozinha” foi e ainda é, sem dúvida, um dos textos que os leitores mais se identificam, fazendo a ele loas de todas as espécies. Por conta deste, inclusive, recebi um convite de montar um livro de fotografias e histórias de cozinhas que, ainda, não saiu do papel. O estranho é que, mesmo sendo o texto que os leitores e amigos mais comentam comigo, ocupa o sétimo lugar na lista dos mais visitados. Creio que por uma questão simples: alguns dos outros apresentam em seus títulos termos que caem facilmente nas teias de pesquisa do Google, o que acaba favorecendo a um texto aqui e acolá, e desfavorece este em especial.

É estranho pensar na amizade de que trata o texto no dia em que estou indo ver outras cozinhas de quem sou amigo. Além disso, abril é um mês importante para mim nesse sentido, porque é quando geralmente posso comemorar com velhos conhecidos minhas amizades, nem que seja num breve oi ao telefone.

Como este é o primeiro da série, e será um por mês, (sempre na semana do dia 10, como disse na nota sobre a retomada da periodicidade), a título de explicação, apresentarei sempre os primeiros parágrafos do texto e o link que direcionará o leitor a ele. Assim, o leitor pode conferirr por ele mesmo o que comentaram as pessoas ao longo do tempo.

Com vocês, então, “Amizade de cozinha”, publicado em 16 de setembro de 2010.

“Nascer em Minas é saber que as amizades mais íntimas são à cozinha da sua casa.

Ninguém é tão seu amigo se não for ‛da cozinha da casa da sua mãe’, ‛da cozinha lá de casa’. O lugar, então, é mais que o lugar da fome e das panelas. É onde o mineiro passa seu maior tempo. Nas cozinhas de Minas se discute política, economia, futebol, religião. Foi de uma cozinha nas vertentes que a Inconfidência saiu.

Mais que um cômodo, as cozinhas de Minas guardam as histórias de gerações, guardam a fome do período do ouro, os adultérios, os divórcios. [...]”

Para conferir o texto na íntegra, clique em

http://desdequeosambaesamba.blogspot.com.br/2010/09/amizade-de-cozinha.html

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A volta da periodicidade

Desde que o samba é samba retoma, a partir desta semana, sua periodicidade, em comemoração aos 5 anos que este blog completará no dia 10 de outubro.

Além de textos semanais, selecionarei, ao longo dos meses, os sete textos mais visualizados ao longo destes cinco anos. Assim, o leitor poderá rever alguns dos mais lidos (e nem sempre re-lidos) textos aqui publicados. 

Os textos da série "Memórias do Blog" serão publicados na semana do dia 10 de cada mês até outubro, sempre com algum comentário meu a respeito do que ouvi e li desses textos, do que me disseram leitores, amigos e leitores-amigos.

Então, obrigado leitores pelas quase 30.000 visitas que o Desde que o samba é samba teve nesses últimos anos e que, nos meses seguintes, possamos nos divertir e compartilhar mais alegrias, indignações e indagações.


quarta-feira, 2 de abril de 2014

desses poemas que se pregam em paredes de sala



Grande é o poema que ensina. E leio poemas todos os dias para me lembrar que no sufoco das horas é possível encontrar o desenlace. Como nos versos

"Chegou um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
.........................................................................................."

de "Os ombros suportam o mundo", de Carlos Drummond de Andrade. Ou como Drummond me ensina, à essa hora do dia, a solidão imensa dos seres em "A bruxa":

"Nesta cidade do Rio,
de dois milhões de habitantes,
estou sozinho no quarto,
estou sozinho na América"
..................................................".

Preocupado com a escrita sempre monográfica das teses, ficou difícil falar de Drummond sem compromisso. E eu já passei muitas tardes falando de Drummond com os que amam falar de poesia, meus amigos de longa caminhada, como hoje falo tardes inteiras ao telefone de filosofia com o Leo e de cinema experimental, saudade e passagem com Vanessa. Quantas vezes pelos corredores das universidades por que passei a meu nome havia a alcunha de drummondiano, quase como um sobrenome, como se nisso vissem um amigo inseparável (que o poeta se tornou, de fato), por eu sempre falar nele, com ou sem compromisso. Só que há muito falo nele só com compromisso, com prazos e datas, e anotações e mais anotações.

Mas é nessas horas, quando esses versos pulam do livro, em meio a milhares de indagações e de perguntas que se desdobram em mais perguntas, que me lembro dessa importância do descompromisso. Tinha o hábito de ler poemas aos que percebia se interessarem por poemas enquanto ainda os sabia interessados por poemas. Como quem dá flores. Mas nem todos sabem ganhar flores, nem todos sabem ganhar poemas, e tenho parado lentamente. E de repente um verso tudo explica, assim, potente, e me emudeço. E percebo que me fazem falta as tardes em que lia poesia assim, de forma mais descontraída, como quem dá flores, poemas!

Vivi isso, em especial, em uma tarde que passei com Bia Lesoing falando da importânica que Drummond tem em minha vida (e hoje não me lembro se falei em frente ao mar, na cantina, em sua casa) e ela emendou dizendo que não era o poeta quem me dizia coisas, mas eu mesmo que me fazia, dada a grande leitura, outro eu drummondiano, fazia dele cartilha de conduta.
Faz certo sentido esse olhar da Bia ao dizer que eu me fiz, à minha maneira, um ser drummondianamente constatável. Afinal, leio-o já num montante de tempo que soma a metade de minha vida. E sobretudo, há sim uma verdade enquanto sou e estou aí também nesses versos, como nos de "O malvindo" ou de "Elegia 1938" (aliás, sou eu também que descubro nas noites, quando durmo, que dormindo, os problemas me dispensam de morrer). Eu, um eu drummondiano? Tem tantos nesse eu!

E é estranho pensar no poema "O malvindo", porque sempre tendo a usá-lo como metáfora de um eu possível em mim nesses eus drummondianos que em mim habitam, que tenho o hábito de lê-lo sempre na edição que ganhei da Alessandra, com um bonito cartão que guardei, presente pelo fim do ensino médio. E mesmo que esteja com a edição da obra completa em minha frente, castigada de se ler e se estudar, tem uma graça diferente ler "O malvindo" na edição que ela me deu, ela que eu nunca mais vi, personificada aqui na edição na estante. Como alguns poemas que consulto, sempre com o carinho de sempre, na edição de seleção de poemas de Drummond que Alice me deu há tanto, com o cuidado de reparar que em assuntos meus, Drummond sempre ganha.

Falar desses poemas é lembrar o que digo aos que me são próximos: "o que há de mim está aí, nesses poemas todos, em só um poema. E o que há de mim está além desses poemas todos, em nenhum poema". E fico curioso porque é novamente esse disparo, como a bruxa solta na noite, os mortos de sobrecasaca, os retratos de família, este eu que adensa-se quando diz "Amor é compromisso / com algo mais terrível do que amor?", de "Mineração do outro", que me faz falar dele, novamente, de forma livre. Isso me dá a velha lição e me lembra: eu estou mesmo em todos esses poemas, em um só deles, em nenhum deles.


terça-feira, 1 de abril de 2014

agora, amar

eu e meus relógios moramos em muitos lugares neste tempo. porque não se engane: a vida, essa que corre sem parar enquanto escrevo essas palavras, é tempo, só tempo. e não se paga esse tempo porque ele não está nos relógios. não está nos calendários nem nas agendas. eu e meus relógios tentamos entender isso há anos e, por isso, mudamos tanto – de lugar, de opinião, de medos – porque há nessas mudanças todas, também, certo charme. sei que eles me confortam a ideia de que eu estou a caminho diário para o eterno agora, quando essa divisão não será mais um tormento, mas o tempo escorre nos meus olhos ao perceber que é tempo que tenho, e que ele acaba. por isso busco amar: porque não há tempo a perder. não há espaço no meu tempo para dores e incômodos desnecessários, obrigações diuturnas das quais podemos sempre nos desvencilhar até o impossível desvencilhamento, mas há tanto espaço para amar, para colher esse amar – que como sempre digo, não deve ser restrito no nome amor, como o pão é restrito no nome pão e ar no nome correlato. amar é uma potência, um eterno agir. e a ação de amar é no tempo, e ele está a passar agora, desperdiçado enquanto escrevo. porque amar é privilégio, além, muito além dos calendários. muito além das folhas que deixei de consultar para saber “agora, há um compromisso chato e tedioso, sem amar” do qual eu tenho que extrair um sacrificado amor (aí sim, o nome bem restrito e acabado, escrito em um crachá de portaria, pronto para sorrir sem sentido e sentimento) e então enfarar-me de tudo, e este tempo ter-se perdido em vão, sem esse agir. e no charme dos meus relógios, é sempre mais amanhã, sem ontem. o ontem é um baú desgovernado. mas como amar sem ontem, sem a dor toda da empreitada – porque na vida, sobra amor e falta amar – onde, se no espaço do entre é dor, descaso e desconsolo? como não se enfurecer diante de uma vida que nos adia sempre para o amanhã – seja na carreira, nos negócios, nos encontros – porque amanhã tudo se resolverá? e se não houver amanhã porque há ontem demais e o agora quase não existe, espremido que está entre esses dois gladiadores? o que fazemos com o amar agora, no presente do indicativo, ou no infinitivo, no gerúndio, sem pretérito – este tempo que sobra na gramática? como amar por fim, só adiante, como os relógios que amam o seguir em frente, mesmo que amanhã acabe a corda? e se a corda toda acabar de repente, o que ficará, a nostalgia do não-vivido, do podia-ser, do amanhã, como a prestação do apartamento, o crédito bancário, a nossa ilusão de eternidade? e se a eternidade for só agora. agora, nesse instante? então façamos assim: agora tudo é eterno. agora, e nunca amanhã. agora, muito mais que ontem, sem ontem, sem mais nada. só há agora e mais agora. Por isso agora, amar.

quinta-feira, 27 de março de 2014

agora sim uma resposta, ou o devido e-mail que devia

pra Vença

do princípio,

comecei preenchendo a linha do endereço de e-mail com o título da mensagem. Os títulos têm mexido à beça comigo ultimamente. Parei naqueles títulos do Graciliano, a capacidade de concisão em uma palavra - Angústia, Insônia. É difícil isso em português, esse mínimo.

Daí tenho vivido aqui nesse mínimo. De olhar as mínimas coisas do dia. Tem um beija-flor que fica sempre no mesmo lugar do estacionamento, um lugar estranhamente sem flores, estas sempre atrás dele, numa longa árvore. Vi umas bonitas crisálidas na casa de minha tia, crisálidas de onde sairão borboletas amarelas que viverão pouquíssimo pelo que me contou minha mãe. E as crisálidas lá, marrons, brilhantes. Disse-me mãe que elas se espalharam pela casa toda, dentro de porta-coisas, lugares escuros. A que vi estava na biblioteca, num tubo de papel cartão, desses que servem para guardar grandes mapas, projetos frios de engenharia, desenhos de alunos das artes, cheios de vontades de mais.

Tenho andado pela cidade das mínimas coisas. Das pessoas munidas de seus problemas diminutos - no ônibus, no tráfego - ou de seus problemas maiores - no avião, no tráfico. As pessoas sempre em seus cotidianos, como o grande cartaz amarelo que vi em uma loja do centro da cidade escrito em uma língua oriental - ideogramas chineses, japoneses, sei lá. E fiquei imaginando o que ofereciam essas palavras em uma língua quase desconhecida aqui. Pode ser desde um pedido de desculpas, uma oferta de emprego, um anúncio de um crime. Lá, parece indecifrável, e é tão pequeno frente à cidade o cartaz, em dois ideogramas. Mínimo como os títulos do Graciliano.

Mas tenho vivido também a cidade das macro situações. Há uma onda de crimes no bairro que cresci. Crimes violentos, cheios de marcas de balas pelos muros do bairro. Junto, tenho visto o grande elefante do transporte levar e trazer milhares de pessoas. E as grandes confusões que se fazem em torno do futebol, do preço da cerveja, dos impostos e das imposições.

Fui ao Maletta mais de uma vez. Tenho ido lá, passado por lá. Lembrei de tanta coisa! Lembrei de nossa última vez lá, nossos ires e vires. Nosso eterno re-ocupar-de mudança, sossego, paz e desarranjo. Lembrei-me de a gente falando besteira também e deu saudade. Há tanto nessa vida a se ver, no micro e no macro espaço, aquilo tudo muito cheio de água e de fumaça, muito cheio de verdade, seja ela qual seja, eu que ainda não sei o que isso significa.

O movimento. A minha questão agora é movimento. É um ser de tentáculos. O trânsito diuturno do tempo. Pequeno, como o espaço do dia, imenso como a viagem estelar da via láctea rumo ao seu previsto choque com Andrômeda (e aí está um espetáculo divino que queria ver, o amor destruidor de duas galáxias em choque, criando outra). E será que desse encontro, em quantos bilhões de anos, vida inteligente surgirá, dessa vez relegada a uma espécie melhor que a nossa?

Há saudades. Sempre. E há café à sua espera.

retratos populares - parte I


...Um mendigo me pediu R$ 0,50 para comprar cachaça e eu não tinha para dar, dei da cerveja que bebia e ele dançou ao som de uma banda que tocava na praça. Uma foto enorme de Serra Pelada, de Sebastião Salgado, está tanto no CCBB quanto no Memorial Minas Vale (em uma exposição só com fotos dele, além de uma árvore de frases do Guimarães Rosa e de ternos e camisas com versos do Drummond queimados no tecido, e a voz dele recitando poemas pela sala de livros e vestuário – a poesia, nossa roupa). No CCBB, há uma bonita foto da Pagu, um gol de bicicleta do Leônidas da Silva e o Lula em São Bernardo, como líder sindical. As obras do BRT MOVE, o maior engodo do governo Lacerda, ainda param a cidade e não saíram do papel, reafirmando que o maior legado da Copa é a manifestação popular democrática nas ruas do país. Na biblioteca pública, uma funcionária, caloura de história da UFMG, diz como todas as pessoas a desestimulam à docência, assim como a prefeitura e o governo de Minas, responsáveis pela educação básica. Nos táxis, ninguém fala da tucanada se escondendo embaixo do tapete, querendo tapar uma corrupção estadual e nacional fazendo polêmica sobre investigação já em andamento. Na feira-hippie, como há muitos anos e ainda em progressão, vê-se cada vez menos hippies, mas na praça 7 eles estão em maior número que os pregadores de fé, que os vendedores de loteria mineira, que os cambistas dos jogos do Atlético e que os catireiros - cada dia mais em menor número no café Nice.

Belo Horizonte reúne e separa. De alguma maneira, tudo pulsa aqui a seu modo, menos desesperado que no mundo. Reúne. Abraça tudo como um polvo cheio de tentáculos, e separa. Tem tanto, quer tanto, espera tanto enquanto reúne: seja na mesa do café às cinco, na praça 7, no mercado, no trânsito parado da Afonso Pena, na vista dos prédios que se acotovelam vistos da praça do Papa. E nisso tudo, separa como o desenho das plantas da praça da Liberdade, na separação que dá entre o povo e o governo, seja por um portão, seja por uma rodovia, seja pelos anos de impunidade e de ouvidos surdos aos apelos da população.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Carta ao mar - parte II


Mar,

é com  saudade que miro-o no fundo de um espelho de banheiro. Você, que não aparece nesse espelho, mas nos meus olhos, no negro das retinas cansadas de um carnaval. Não tem você nesta quarta de cinzas cinza e triste a me lembrar que os dias nunca se repetem embora os erros sempre sejam recorrentes. Lembrar em seu verde-azul capixaba, rugindo contra as pedras na entrada da baía, rasgado pelos navios do globo, que tudo é só travessia, tudo é o seu liso rosto em movimento e tudo é força íntima e cósmica, como as ondas e as marés.

Aprender com você que o sentir profundo não tem raízes como a flor e o abacateiro, mas tem um universo de vida indomada que procria no seu ventre, e tem monstros abissais, tem afogados viúvos de mulheres de toda sorte, tesouros que talvez nunca encontremos.

 A saudade, mar, é de sal. Como é de sal todos os demais sentimentos que tornam-se lágrimas. O seu sal, mar, que a tudo criou. O sal com que sempre se terminam carnavais.





terça-feira, 4 de março de 2014

esquecido horizonte



O que tinha de ficar, ficou, e o que tinha de partir, partiu. Sedimentou-se o sal das relações, mantendo os meus por perto – em seus telefones, seus encontros, nossas divergências harmoniosas, saudáveis, violentas – e levou os que por muito achei que se manteriam por perto. Tirou muitas sólidas convicções mostrando que nada têm de sólidas, mudou a minha opinião sobre o mundo porque o mundo tem muitos olhos e ouvidos, transformou meu rosto, trocou de lugar o lugar de pensar (nas tardes, quando paro e olho o longo e esquecido horizonte). Manteve as janelas das cidades, seus milhares de problemas enquanto outra supernova surge em um lugar esquecido do universo. Mostrou que o verso resolve quase tudo, mas que é impossível resolver o verso. Trouxe-me perdas de tempo, de dinheiro, de alegria e de ilusão em cada ruga que pousou sobre meu rosto, este que vai entre o tempo do meu início até quando tudo será o que ficou por ser feito, essa eterna incompletude. Tirou desse tempo o tempo mesmo que por muitos anos gastei em vão e ensinou, por fim, que permanecer é, sobretudo, abandonar.

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

postar é preciso


Limpei a máquina de escrever que esperava esse novo lugar na casa depois da mudança. Troquei-lhe a fita e é preciso comprar papel para as cartas que em breve volto a escrever, como fazia há muito. Ir ao correio, selar, postar. Postar mesmo, no serviço postal, usar o verbo no seu uso mais antigo, e não no que agora recebe, assim, banalizado. Quero postar mensagens para pessoas de variados lugares, mas que elas recebam as mensagens em papéis devidamente escolhidos, com suas cores e pesos, seus selos e carimbos, marcas de cola e cheiro de correio. Mensagens que aparecem por debaixo da porta e que podem ser guardadas em caixas, rasgadas ou queimadas, que ainda são respeitadas pelas leis do sigilo postal (em um mundo cada vez menos sigiloso).

E à máquina, na que me acompanha há muito. Ou mesmo à mão, com canetas escolhidas para escrever em folhas, mas de um único lado, para a carta ganhar aquele aspecto mais largo e elegante. Ou mesmo em folhas de caderno com envelopes feitos de folhas de A4, escritas às pressas porque o que deveria ser dito precisava de papel, qualquer que fosse.

Reli, esta noite, algumas das cartas que recebi ao longo desses 14 anos. Em algumas, fotos com rostos que não vejo há tanto, a letra miúda que contava de um tempo onde era possível acreditar. Um tempo em que encontros mágicos e inesperados surgiam nas ruas centenárias e que todo um cosmos era capaz de justificar a existência do encontro, longe das filosofias e das teorias, explicar muitas tardes de sábado. Nas letras, as cores das tintas e eu lembrando de tantos variados tons de verde enquanto lia tantas coisas. Cartas que me contavam do mundo, dos lugares que não conheço ainda, vindas de outras partes, de distantes continentes. Correspondentes que mantive por um tempo, em cartas que eram recheadas de telefonemas mais ansiosos, escritas em quartos, nas praças. Bilhetes que mandava nas férias a amigos lembrando que havia saudade do lado de cá das Minas.

Há envelopes, em breve haverá selos e teremos mais cartas à mão e à máquina, postadas. Não porque há nisso em mim um apego íntimo ao que some, somente, uma eterna nostalgia. É porque em tempos de imagens e palavras digitais, em tempos de velocidade de acontecimentos e de informação instantânea, minhas cartas, lentas e nos prazos dos correios, podem dizer mais de um tempo, alegrar, de alguma forma, quem as receber, alimentar em nós a beleza de que do outro lado da mensagem uma mão humana escreveu em um papel algo que pudesse passear de mão em mão em segredo.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Porque em meio a tudo que tenho ouvido...

... lembrei-me desse texto de Roberto Schwarz e repito: atenção aos tópicos 5, 8 e 12.

Com vocês, numa prática não habitual deste blog, Roberto Schwarz.

19 PRINCÍPIOS PARA CRÍTICA LITERÁRIA
Roberto Schwarz
1. Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo,os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

2. Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

3. Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso).

4. Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico. Vários acertos podem ser compensados por uma redação horrível.

5. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

6. Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apóie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

7. A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

8. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo  estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

9. Resolva sempre sem entrar no mérito da questão. 

10. Para as questões de ontologia, Wellek; para as de forma Kayser,e ultimamente Todorov. 

11. A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral. 

12. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

13. Afrânio Coutinho e os Concretistas introduziram a crítica científica no Brasil.

14. Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los. Há quase 700.000 universitários no país.

15. Um doutoramento vale ouro.

16. O semantema glúteo em lingüística moderna tende à polissemia.

17. A crítica de nosso tempo é engajada e autêntica, e não descura de sua vocação profunda, de seu compromisso com o homem no que ele tem de eterno e no que tem de circunstancial, compromisso que irá cumprir resolutamente até o fim. Isto é que é importante.

18. Os livros editados pela Universidade de Indiana e importados pela livraria Pioneira são importantíssimos. Se pelo contrário você é de formação francesa, não deixe de aplicar o método de Chomsky e Propp. O resultado não se fará esperar.

19. Muito Cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.

* Texto de 1970, extraído do livro “O Pai de família e outros Estudos” da editora Paz e Terra.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

do que tenho visto por aí




… e tenho lido trechos, só trechos, sem muito além. e na avenida há gente de todo o tipo e cada dia é um rosto novo, um jeito novo, um olhar novo. e passam ônibus coloridos com números e destinatários, como as cartas, cheios de gente e de selos, de avisos de permitido passar. e nas estantes do supermercado acho a marca de café que bebo, mas ainda não acho o café, mas acho as coisas que via antes do caos, antes da grande pausa. acho as pessoas nas estantes dos supermercados, entre suas contas, seus casamentos, seus divórcios, suas solidões (porque há em tudo certa solidão), acho mais asfalto quando pensava impossível mais asfalto. acho garçons, mulheres que caminham para manter a forma como no calçadão da Paria da Costa, e aqui há também jovens que param na caminhada para comer açaí como no calçadão da Praia da Costa. e daí descubro que os calçadões da Praia da Costa cortam o Brasil, porque ouço aqui mais das praias do que ouvia em Vila Velha, e recebo no ônibus as novas da Prainha que nem quando morava na Prainha ouvia. e me dá uma saudade da vista, do convento, da janela onde entrava o barulho da baía. mas a baía aqui é só palavra e calçadão com jovens tomando açaí. e as palavras do taxista que esteve na praia do morro, ou de meu irmão que esteve em Jacaraípe, ou das fotos de Adolfinho de um Transcol com sombrinhas na janela. e no trevo do Alphaville, vindo com a mudança para cá, lá de Mariana, vi um Transcol aposentado, hoje ônibus de trabalhadores de mina, passar sem sentir o sol, os terminais, os transeuntes, talvez nutrindo a mesma saudade que eu de ser de uma linha que ligava, sabe-se lá, Serra Sede a Laranjeiras, ou de ser uma linha entre Novo México e Itaparica ou mesmo de querer ser um 507 entre Vila Velha e Laranjeiras, parando em Goiabeiras, desses ônibus azuis pegados de empréstimo para quebrar suas rotinas como se fossem amarelos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Simpatia do amor

trago seu amor
em cigarro que apaga
para reacendê-lo
entre chama e brasa

trago seu amor
em toda fumaça
me matando aos poucos
se me chama à brasa

só não é certo o retorno
se me chama
e me acha
mas como todo trabalho
vai terminar em nada

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte III


Há na mudança um ar de perda, uma tristeza. Uma melancolia impossível, dessas que talvez ficaram por anos guardadas nas gavetas. Encaixotada a vida, tudo o que sobra são coisas, restos de coisas, buracos na parede, marca dos móveis na pintura. A vida que ocupava o espaço agora é suspensão, é travessia, hiato sem preenchimento onde tempo, calendário e relógio estão em conflito pela verdade. Desfeita a casa, nesse hiato de tempo, nada acontece aqui dentro. E quando nada acontece, tudo pode acontecer de repente, como a chegada de uma boa nova por correio – nesse endereço que já se despede de mim – ou um livro a ser comprado na chegada. Uma boa nova como um pedido de desculpas, o conhecer um novo bar na cidade já tão conhecida, rever um velho amigo que veio, a passeio, viver a saudade que tornarei a sentir em uns meses. Uma alegre surpresa como um barco prestes a zarpar para o mundo, sem saber se amanhã tem almoço na hora, se há como fazer qualquer notícia, como se a travessia fosse sempre o destino de chegada.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte II


É sempre um céu azul quando as caixas chegam. Em maio, deixei Vila Velha com um belo sol de outono, céu que passei a gostar nos últimos seis anos. Quando deixei Juiz de Fora era noite, era setembro, fazia um calor ameno e a estrada era provisória. Quando deixei Manhuaçu, o dia era um pouco nublado, uma manhã estranha, meio chorosa, em meados de outro maio. Quando deixei Mariana, há praticamente nove anos, em abril, garoava leve de manhã e era tão pouca coisa a se levar, comparada à mudança de hoje! Mas em todas as mudanças, as caixas chegaram em um dia de sol.
Volta o cheiro de fita, de pincel escrevendo o conteúdo nas caixas, de papelão, de papel de jornal. A vida empacotada de novo, ela que já coube toda em uma mala preta, agora deixando para trás móveis, partes de uma vida que se estendeu nesses quase quatorze anos entre partir e voltar para BH. A casa já vai se tornando, como das outras vezes, neutra, como um rosto de um artista que tira a maquilagem depois de uma apresentação, desta vez uma breve temporada. E vai acabando o tempo em solo inconfidente de forma tranquila e cética, por eu estar mais sóbrio de mim, menos iludido de mundo, preciso para outras decisões, porque esse solo sempre me ensina algo, nem que seja o de ser sempre um lugar a lembrar. O que faz do rosto que volta também outro, muito diverso do daquele menino que a deixou numa manhã de agosto, que a custo reconheço quando fito os retratos enquanto os encaixoto.
Passei pela passagem, enfim. Passagem necessária, importante, imperiosa para não deixar nenhuma dúvida futura que viesse a surgir, alguma ilusão agora perdida. Passei a passagem de suas horas e sei que, mesmo distante de uma máquina do mundo a qual eu abdique, haverá outro horizonte, de céu largo e azul-violeta, um céu que leve os meus olhos em memória, fitando a linha das montanhas, sempre de volta ao mar. Um céu capaz sempre de me dizer que os pés podem alcançar as linhas do mundo, todas elas, nas muitas cidades que ainda pretendo morar, alimentando esse meu jeito cigano, esse meu prazer íntimo de sempre cair na estrada e partir para uma outra história, outra conversa, outro verso que se apanhe na beira de um caminho.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Hoje ela silenciou.

Profundo, o silêncio me desfez por completa e me pôs em face a mim mesmo, no início da estrada. Abri a mala e joguei pela janela os restos que sobravam, limpei a casa, e as barreiras se dissolveram.

Quando ela silenciou, sorriu um gato no ar. O sorriso suspenso trouxe a mão esquerda da menina que atravessou o espelho.

Tudo isso potente e estranho, surgiu numa conversa de horas com uma amiga. Terminada a maior jornada da minha vida, de maior trabalho e estudo que reúne os dez anos que se processam desde o início da empreitada, voltei a olhar o menino que, com uma mala, se lançava ao mundo grande sem saber que este o traria para o mar. O menino que esqueceu ali, naquele marco, tudo o que era e carregou do que sobrou um nome além do seu. Passado o tempo entre início e de novo início, a trajetória que se concluiu abre outra trajetória, mais serena que a primeira. é outro que entrará na vida, para seguir na estrada.

Mas o que surge de estranho é que pude ouvir, dez anos depois da caminhada, o nome silencioso que tudo produziu. Foi num abril, numa conversa de uma meia hora, que tudo começou. Sentados um frente ao outro, distantes num abismo que nos divida, próximo no maior amor que compartilhava, o único real amor de uma vida inteira, que se esquivou do som que por tanto tempo pronunciei, me disse um não.

Ao me negar, ali, ela abria as portas do mundo que caminharia até aqui. Para o menino que cresceu pobre, que se descobriu em Drummond por acaso, que passou a vida ouvindo tiros de fuzil e e berros de assassinados na madrugada, no silêncio da ordem que tudo poda na cidade, que não esperava da vida mais que uma chance, ela me deu o mundo.

Ali, de ante de mim, com o castanho brilho que nunca mais vi em olhares. No jeito de soltar o corpo no sofá, sem pretensão ao movimento, passando a mão no cabelo. Disse séria o não que tudo movimentou e hoje, depois de tudo, o nome dela volta dentro do texto, sem esforço. De novo cair no buraco, aumentando e diminuindo de tamanho. De novo atravessar o espelho.

Todo o trabalho é dela. Sem o não que me custou o maior amor de todos, seria hoje impossível silenciar da mesma forma. Só hoje, sem medo, com a tranquilidade de quem aceita uma verdade, de quem bebe água. Aceitar que o nome sempre voltou nos dez anos que silenciou. Na noite, na cor da aurora, no perfume da tarde, na paisagem vista na janela, nas vozes enrouquecidas das pessoas, no leve sabor da clama.

Um dia disse a uma amiga: o amor existe quando é possível estar a sós e em silêncio com quem se ama, sem a obrigação de uma palavra que diga o amor, mas que no espaço que os concentra, o silêncio os envolva caloroso e potente como um abraço. Senti e sinto há dez anos a saudade do silêncio que hoje lembro. Naquele abril, o silêncio nos abraçava.

O polvo branco


Há mordaça. Senti-lhe o gosto quando acordei com ela na boca, de madrugada, retirando de mim o pouco ar que respiro. Uma mordaça que impede ações tranquilas, gestos impensados e costumeiros, um sorriso efetivamente alegre. Nela está escrito “aqui é proibido” e a pena é ser preso e amarrado dentro de uma jaula de dedos onde há um pêndulo afiado a passar sobre a barriga. Há mordaça porque está-se sempre na linha tênue entre a ofensa, o grito e o inevitável tumulto, pondo em risco a harmoniosa ordem. E para manter a ordem, câmeras vigilantes feitas de um silêncio improdutivo e pegajoso e um polvo branco que tudo abraça e comprime (bom em partir os ossos dos dizeres, quebrar a espinha da poesia e ransgar a pele das palavras em feridas) estão sempre atuantes. E além da mordaça, do silêncio vigilante e do polvo branco, há um olho que tudo vê a exigir autorizações, sendo preciso pedir-lhe permissão de passagem em muitos postos de guarda, mandar-lhe textos para avaliação de censores, evitar-se sempre chegar perto do muro para que assim o polvo não quebre outro pescoço, que as câmeras não filmem outro poema não comercial que tudo desvirtua e o silencie, para que nada, nunca, provoque tumulto. Isso faz com que todos os donos da ordem imponham-nos seus hábitos tecidos em alvas batas de paz feitas em teares de medo. E o sorriso, agora moeda de troca, câmbio flutuante, é a conquista máxima do olho que exige a felicidade a custo de morte, impondo-a, obrigando-a a manifestar-se e transformando seres mutantes em seres realizados, imutáveis e controlados, bons para caberem como engrenagens em pleno funcionamento numa máquina azul. E basta uma brisa, um desvio de conduta que chegue cheio de arte, um sorriso verdadeiramente alegre ou um prazer simples para que o poema suma na noite, amordaçado, jogado em vala comum com tantos outros que nada mais dizem porque o polvo, além de esfolar suas palavras, arrancou-lhes a língua.