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Um toque, e eis que a blandícia erra em tormento,
e cada abraço tece além do braço
a teia de problemas que existir
na pele do existente vai gravando.
Viver-não, viver-sem, como viver
sem conviver, na praça de convites?
Onde avanço, me dou, e o que é sugado
ao mim de mim, em ecos se desmembra;
nem resta mais que indício,
pelos ares lavados,
do que era amor e dor agora, é vício.
…...........................................................................”
Mineração do outro – Carlos Drummond de Andrade
Fazer as malas como quem compõe o corpo a ser decifrado. Escolher cada roupa e cada cor de roupa, escolher as cores mais nulas porque a cor, seu contraste, devia dar espaço ao corpo que compunha. Cumprir a coragem de romper silêncios e distâncias, naquela mala – corpo em composição – crendo haver no ato algo maduro, lúcido, sóbrio. Havia. Mas havia quilos de medo, apreensão, cicatrizes. Mas era preciso cumprir a coragem que a existência nos obriga, correr o risco, sim!, porque a vida é feita de correr riscos. E rompeu-se a distância no tempo presentificado e lento, sem haver depois – que haveria.
Abrir a mala como quem abre um corpo e retirar-lhe os sentimentos em camisas, peças íntimas, um par de chinelos velhos. Tirar do corpo, peça a peça, o que deveria – pesado e medido – dizer em precisão, em primazia. E o corpo abriu-se aos poucos, ainda cheio dos avisos do medo, mas cheio de coragem. Como romper as fortes águas do mar – que ali havia – bravio a ponto de expulsar, mas em calmaria incomum, de duvidar serem águas do mar a penetrar, calma e cristalina lagoa que se tornaria em onda despregada que não imaginava haver – e haveria?
Fechar a mala como quem costura um cadáver. Sem capricho porque o corpo não precisaria mais ser visto. Descomposto, confusos órgãos e sentimentos, medos e coragens, com corpos por costurar em mim, neste mim que em mim, profundo, esconde-se de tudo, pequenino. Desmembrado, rasgadas as partes sem nenhum cuidado, sem capricho. Tudo, de repente, cortado como a um mutilado, como corpo sem autópsia. Morto? Mas corpo ainda, sem destino, sem ação porque no aniquilamento foram-lhe cortadas as pernas. Para onde seguir, amor, sem corpo agora que seja seu, depois de aberto em flor e de rasgado a dentes espumantes, ódio pútrido? Houve a onda em fúria, e se partiu na areia.
Tiro do corpo amputado, a mala fria sem cuidado, os frangalhos da empreitada. Não houve o que o corpo, nu e composto, pensou encontrar? Há ainda algum corpo a vestir os sentimentos que, embolados e sujos, saem, um a um, da mala, para que agora, em casa, protegidos, possam ser lavados, perfumados, pendurados nos varais? E o segundo vigilante guardou o movimento da onda quebrando na areia, recuo das águas que não percebi porque mirava relaxado as estrelas, quando na sombra da noite o mar partiu camisas, mala, corpos e palavras? O segundo, será que ao menos o segundo teve piedade quando a onda partiu tudo cheia de ódio e fúria, barulhenta na praia dos destinos, sem nenhum cuidado ou gentileza? Guardou o segundo do quebra-mar a memória do vivido?
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