quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O polvo branco


Há mordaça. Senti-lhe o gosto quando acordei com ela na boca, de madrugada, retirando de mim o pouco ar que respiro. Uma mordaça que impede ações tranquilas, gestos impensados e costumeiros, um sorriso efetivamente alegre. Nela está escrito “aqui é proibido” e a pena é ser preso e amarrado dentro de uma jaula de dedos onde há um pêndulo afiado a passar sobre a barriga. Há mordaça porque está-se sempre na linha tênue entre a ofensa, o grito e o inevitável tumulto, pondo em risco a harmoniosa ordem. E para manter a ordem, câmeras vigilantes feitas de um silêncio improdutivo e pegajoso e um polvo branco que tudo abraça e comprime (bom em partir os ossos dos dizeres, quebrar a espinha da poesia e ransgar a pele das palavras em feridas) estão sempre atuantes. E além da mordaça, do silêncio vigilante e do polvo branco, há um olho que tudo vê a exigir autorizações, sendo preciso pedir-lhe permissão de passagem em muitos postos de guarda, mandar-lhe textos para avaliação de censores, evitar-se sempre chegar perto do muro para que assim o polvo não quebre outro pescoço, que as câmeras não filmem outro poema não comercial que tudo desvirtua e o silencie, para que nada, nunca, provoque tumulto. Isso faz com que todos os donos da ordem imponham-nos seus hábitos tecidos em alvas batas de paz feitas em teares de medo. E o sorriso, agora moeda de troca, câmbio flutuante, é a conquista máxima do olho que exige a felicidade a custo de morte, impondo-a, obrigando-a a manifestar-se e transformando seres mutantes em seres realizados, imutáveis e controlados, bons para caberem como engrenagens em pleno funcionamento numa máquina azul. E basta uma brisa, um desvio de conduta que chegue cheio de arte, um sorriso verdadeiramente alegre ou um prazer simples para que o poema suma na noite, amordaçado, jogado em vala comum com tantos outros que nada mais dizem porque o polvo, além de esfolar suas palavras, arrancou-lhes a língua.

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