segunda-feira, 19 de dezembro de 2016


Um despertador de manhã. Uma vida corrida tentando provar que a vida vale a pena. Outro despertador de manhã. Uma página social dizendo a você que todos são felizes porque é preciso ser feliz. Outra guerra. Outras guerras. A vida pânica no terrorismo de estado. Os fantasmas de sobrecasaca. Numa encruzilhada da baixa, trombamos em um tiro de 1914. Um tiro de 1914! E medidas políticas anteriores ao século XX. E a nova valorização das castas.

Mas é Natal: entupa-se de ilusão e falsa caridade. Entupa-se de discursos para não lotar as ruas contra o caos armado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Lições do Rio São Francisco


1-) Diante de um rio calmo, o ser humano se sente maior que o rio.

2-) Um rio calmo esconde um fundo lodoso e turbulento. Um rio enfurecido mostra seu fundo de pedras.

3-) A praia depende da cheia. O lado da praia agora é a outra margem. Esta aqui agora é barranco, mas já foi praia.

4-) As ilhas dependem da cheia. No rio, elas navegam, trocam de lugar e porto.

5-) O rio é a soma de todos os rios que o formaram, mais o rio que é nesse instante, mais a soma dos outros que será logo em seguida com a soma de outras águas vindas sabe-se lá de onde.

6-) Outra margem é questão de perspectiva.

7-) Uma ponte cria infinitos lugares deste e daquele lado e os separa. Depende de onde se está.

8-) Um cais é sempre uma espera. Partir e chegar são partes do mesmo movimento. E tudo depende da cheia, de barcos, de movimento. Sem isso, a espera segue nos seres. Não no cais.

9-) Com ou sem pressa, turvo ou límpido, o rio sempre chega a algum lugar (seja um cano de abastecimento de água da cidade, um açude, uma hidrelétrica, um cânion ou o mar). E o rio não decide isso nem tem sobre isso qualquer controle. É uma questão de contingência. Uma vez deixada a margem, o rio receberá outros nomes para que esqueça que é rio. Mas sempre será rio.

10-) A travessia não existe. É travessura. Mas existe. E não é travessura.

11-) O tempo contábil não existe. É uma dimensão da matéria e nós não a entendemos bem, como também não entendemos bem o espaço e o movimento.

12-) Rio é um signo arbitrário, um conceito e uma metáfora.

13-) O rio é tudo o que se diz dele – suas lendas de várias línguas, seus nomes em várias geografias, todos os seus caboclos. Por isso vive nos cantos dos ribeirinhos.

14-) O canto (das lavadeiras, dos pescadores, dos barranqueiros, de Iara) é o enigma central e o mistério do fundo do rio.

15-) Uma cobra pode nadar em todas as direções nas águas. Se parar, irá sempre seguir em duas direções somadas. E nadar é um movimento no tempo e no espaço, dimensões que não entendemos bem.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Precisamos falar dos pais de Guilherme


Guilherme Irish não foi o único jovem militante de esquerda que teve um pai de direita. Muito provavelmente não foi o único jovem de esquerda com um pai fascista. Também creio que o pai de Guilherme não foi o único pai do país que tenha pelo menos uma das seguintes adjetivações a seguir: machista, misógino, homofóbico, racista, preconceituoso, xenofóbico, fundamentalista, ou todas juntas. Também creio que em muitos embates discursivos entre pai e filho, o pai de Guilherme o tenha obrigado a se calar, proibido de emitir suas opiniões, de defender seus ideais e heróis. E creio também que o pai de Guilherme não é o único pai do país que tenha garantido o seu direito particular de fala baseando-se no argumento hierárquico de que ele era pai. A frase “Me respeita, eu sou seu pai. Eu mando em você” (o que para muitos pais significa o direito ao desrespeito irrestrito e inconsequente da intimidade, da individualidade e das crenças de seus filhos). Mais ainda, o pai de Guilherme não foi o único, creio, que possa ter, mais de uma vez, usado o argumento vago e impreciso de que as opiniões omitidas pelo pai precisavam ser respeitadas, independente se elas não só desrespeitavam o filho como também eram, historicamente, carregadas de violências.

A diferença é que o pai de Guilherme puxou o gatilho contra o filho. E mesmo tendo puxado o gatilho porque não aceitava a postura política do filho, não alardeou ou apareceu nos jornais com a atenção devida. O pai de Guilherme passou de todos os limites, e isso, além de inegável, é inquestionável.

O pai de Guilherme chegou  às vias de fato. Muitos não chegam. E não são poucos os que, como ele, tecem com seus filhos e filhas discursos de ódio que desrespeitam, destroem psicologicamente, maltratam com base no direito irrestrito que creem ter por se colocarem nesse lugar complexo que é o de um pai. Muitos pais parecidos com ele muito provavelmente usam de outras formas de violência para matarem simbólica, discursiva e ideologicamente seus filhos e filhas.

Muitos pais espancam seus filhos e filhas por eles serem ou pensarem diferente. Não são poucos os dados de filhos e filhas gays expulsos de casa, espancados, silenciados, psicologicamente agredidos por pais como o pai de Guilherme. Não são poucos os casos de filhos e filhas que tiveram suas opiniões silenciadas, sejam elas políticas, religiosas, de gênero, etc, por pais como o pai de Guilherme. Mas o pai de Guilherme puxou o gatilho. Os outros já puxaram, puxariam?

Além dos tiros em Guilherme, quantos tiros metafóricos pais como o de Guilherme já não deram em seus filhos e filhas? Quantos não assassinaram psicologicamente seus filhos por eles divergirem dele em algum ponto? Quantos pais, munidos do direito auto-outorgado de plenos poderes sobre as mentes de seus filhos e suas filhas não foram, também, assassinos em potencial ou simbólicos de seus filhos e filhas?

O caso de Guilherme não é, infelizmente, um caso isolado. E não acredito que o fascismo que motivou o pai de Guilherme tenha sido, somente, resposta de um momento político levado às últimas consequências. Porque os pais como o de Guilherme ainda estão em muitas casas brasileiras, puxando outros tipos de gatilho, matando seus filhos aos poucos por eles não se enquadrarem nos desejos ideológicos e políticos que querem impor aos filhos e às filhas. O fascismo está dentro das casas, nos métodos de educação que formaram esses pais como o de Guilherme. No machismo de cada dia, na misoginia de cada dia. Em cada fala que um virtual pai de Guilherme tenha dito que “bandido bom é bandido morto”, “mulher é tudo vadia”, “homossexualidade é doença”, “preto não é gente”, “eu não confio em gente desse país”. Frases assim são ditas todos os dias pelos pais como o de Guilherme pelo país. Frases assim levaram o pai de Guilherme a matar o próprio filho, porque para o pai de Guilherme “comunista tem que morrer”, e ele cumpriu o dito. Matou um comunista, não o filho. Quando percebeu ter matado o filho, matou-se em seguida.

O que me preocupa é que outros pais de outros Guilhermes continuam por aí. E eu não sei mesmo até quando filhos e filhas serão assassinados de muitas maneiras por seus pais fascistas, sob a máxima de “Eu sou seu pai. Eu posso. Você é meu.”. Até quando veremos notícias desse tipo?

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Atlântica - VII

algo de remanso no fundo do rio quando bate a cara ao mar: amor, esse dilúvio.
enchendo os poros do corpo de outro corpo inalcançável, os dedos e os olhos comungam da mesma linguagem. amor, como o que esculpe o fundo do rio antes de, lento, bater a cara ao mar. o mar, tempo impreciso, revolverá o amor em seu ventre amplo e fundo. seu ventre maduro e inteiro, pleno de vida de antes. da vida anterior aos seres, época em que o planeta era só o fervilhar das entranhas, as lavas profundas de um amor primeiro.

algo estranho no remanso do rio: o ato. amar, um ato imperioso e impreciso, como o romper de uma crisálida, o estilhaçar a vidraça a pedras e correr. enquanto se corre, ter no rosto o beijo leve do amor que venta, secando becos e espalhando gotas de água suja da rua. água suja que chegará ao fundo do rio manso. esse rio, nossos rios, que se debatem profundos entrelaçando unhas e cabelos, linhas e salivas.

domingo, 2 de outubro de 2016

O rio

o que traz de novo esse fundo lodoso onde o tempo leva galhas e quilhas. sobra o mar no fundo do velho Chico. o mar ancestral que nos abraça e me rememora o cais, aquele mar que mirava distante de uma janela. as quilhas esquecidas no fundo do rio e as cavernas que o Chico esconde: rio-mar deste sertão. 

nele mergulho os pensamentos. é imprecisa a necessidade de ter nos dedos os pensares e os pesares, saber o tempo, a questão, o quanto. quanto de quanto há em todo o resto, nas coisas acumuladas e na vontade de esbarrar por aqui, de não mais seguir encaixotando e desencaixotando a vida, escolhendo casas para depois? 

voltam os papéis e os gráficos, as datas em sequência. tempo... onde, tempo, desencobre as pedras e os limos? onde, tempo, eu saberei o tempo do tempo, seu passar, os manuais que as pessoas usam para se decifrar já que o outro é distante como o fundo do Chico, lodoso como o fundo do rio-mar? onde, tempo, descer ao medo e descansar?

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que sobrou


Queria poder dizer coisas boas, Mariana, dos tempos que revivemos em 2013. Mas não me lembro de muitas. Lembro que entre nós ficou só a resolução de que nosso amor é passado, e lá onde ainda sobra alguma nostalgia nos conciliamos no sonho.
Ainda sonho com suas ladeiras de pedras e noites de frio. Ainda sonho que abro a velha casa do Beco, suas portas cinzas de duas abas, abro as janelas e estou ali clandestino morando novamente no número 57, com janelas para o muro da casa da frente e barulhos no forro do teto. Ainda sonho que entro e está na sala o velho sofá ganhado, a mesa laranja, minha cama comprada com dinheiro que ganhei vendendo salgados na rua. Mas é sempre outra casa no sonho, habitada por desconhecidos que me toleram a visita por respeito a uma memória que é minha, e não daqueles que na casa vivem.
Mas não tenho sonho dos nossos anos de 2013. Deles tenho uma amarga e estranha lembrança, entre um cinza e outro de dias de chuva sem bucolismo e lirismo, de mofo nas coisas que realmente incomodavam, de aranhas venenosas de coloridas descendo pela lateral dos muros que pouco compreendia, que davam para o Ribeirão do Carmo e seu odor me invadindo as janelas. A vista arrepiante do Espinhaço fechando o horizonte e mostrando a ponta do morro por onde passavam carros barulhentos.
Há a lembrança do penhasco que Thaís me apresentou, de paisagem mudada, mesmo que fundo e opaco como quando o vi pela primeira vez. A rua íngreme que eu subia pensando em ir embora todo dia, com saudade dos afetos de Vila Velha, da Rua da Lama e da Ufes, daquilo que fiz de mim nos anos capixabas e que gostava tanto, tão distantes naquele vale frio onde fui morar por escolha.
No retorno à Mariana, naquele ano, muito se quebrou. Perdi a saudade apertada que tinha de tudo. Perdi o encanto de olhar o ICHS quando chegava, aquela sensação de ir ver um velho companheiro de estrada. E quando ia lá era outra dor estranha e difusa, de falta de encaixe absoluto, como se visitasse uma encarnação passada onde aquele que era eu não se mirava.
Saía à rua e revia velhos rostos conhecidos, mudados pelo tempo e pelos hábitos. Nas filas dos bancos, muitos comentavam que a sensação e imutabilidade em Mariana era um fantasma de lençol sobre a cabeça. Como se tudo em nós mudasse fundo e rápido, mas a cidade seguisse lenta. E nesses rostos vistos, rostos queridos de outras eras, achasse aqui e acolá lembranças como âncoras capazes de me dar razão na escolha mais infundada que já tomei na vida, talvez meu maior erro, por mais que necessário.
Voltar à Mariana não era voltar ao que deixei. Era perder. E perdi. Perdi duras e importantes ilusões. Perdi a força pungente e mutante do mar, perdi meu sono e dias a fio de leituras e trabalho. Perdi o carinho que enfeitava meus anos de graduação, recheado de saudade e alegria. Perdi aquela alegria que era chegar à cidade em meio à neblina da madrugada.
Vivi muito pouco do que queria, de fato, viver lá. Fui menos do que queria aos bares mais queridos, e quando ia era uma perda estranha, um desencaixe. Não joguei sinuca com velhos camaradas em lugares que me foram felizes. Não fui nem o mínimo que desejava à Ouro Preto, que ainda hoje mantém em mim a alegria de antes, aquela paixão que tivemos à primeira vista quando a visitei pela primeira vez em 1999, que alterou vertiginosamente a minha vida.
De Mariana, hoje, remonto um imenso quebra-cabeças. Nele há os sambas que cantamos nas madrugadas cheias de juventude e esperança. Há as risadas com Fernando e Marcel na sala da casa do Beco, quando ainda se chamava Lém Kaza e não era um lugar distante, estranho e contrário ao que foi como hoje. Há noites na porta do Corujão e do Sagarana e conversas boas com Edmar e Toninho. Há os papos meus com Fabrício e Giu na esquina da Rua do Seminário, quando saíamos das aulas de literatura abalados com tudo que líamos e pensávamos. Há filas do Bandejão com Mazzetti, Boga, Ana e Maguinho, com tantos outros quando ríamos da vida leve que levávamos. Há tardes nos bancos do jardim com o Boy, quando falávamos de nossas primeiras experiências como professores. Há as tardes que passei com a Bia falando de arte e tomando café, os dias sentados pelo ICHS conversando com Vanessa, falando de seus poemas, os dias que sentei e desabafei coisas e devaneios com Murafá ouvindo Chico. Há o redondo e suas melhores horas de ácidas e sarcásticas piadas, com pessoas que se hoje lá estivessem e eu pudesse acioná-las, seria divertido. Hoje, são espaços vazios desses afetos cada um dos lugares onde tudo isso se deu.
Hoje sou eu o estranho no meio de tudo quando penso nessas lembranças todas. Estranho até a mim mesmo quando olho as fotos daquele tempo e quase não me vejo nelas. Estranho por entender que nada retornará e que é inútil sentir essa falta, falta que me motivou ao erro e que com ele trouxe esse gosto amargo que hoje carrego.
Por isso remontar o quebra-cabeças. Deslocar a lembrança para um lugar afável. A lembrança de um tempo até muito antes do meu retorno em 2013. Um tempo onde lembrar do tempo era bom. E não a Mariana onde soube que Adão morreu, que Thaís morreu, onde velei Zé Arnaldo. A cidade que me amanhecia cinza e de que me lembro de sol só na manhã de minha partida, com o pouco que sobrou de uma casa que chegou completa e se perdeu, naquele pequeno caminhão que me levou de volta para Belo Horizonte. Sol como vi no Rio de Janeiro quando, na casa do Leo, me decidi pela volta. E hoje, aqui, em Januária, nessa cidade que me abraça num abraço quente, reencontrar-me com o hiato que deixei quando saí de Vitória naquele dia de sol, suspenso, um pouco melhorado dos anos de BH. Voltei talvez para mim na saudade inconstante que estava de mim. Desse mim que o mar moldou e que o São Francisco dá acabamento. Mariana é um lugar nas pessoas, por isso o que me importa agora talvez sejam as pessoas para além desse lugar. Quero-as comigo, sem mais.

quarta-feira, 31 de agosto de 2016

Lutar

Hoje, meu silêncio enlutado. Meu recolhimento.

Amanhã recomeço. Mais forte e intragável, talvez no melhor de mim, lutando sabe-se até onde for possível para que o voto popular seja sempre respeitado. E a democracia não cairá assim, sem lutas.

Aviso aos navegantes: tempos turbulentos começam neste blog, na minha vida pessoal, na minha postura pública, no meu embate diário de cunho - sempre - político. E eu não estarei sozinho nesta luta.

Mas hoje, silêncio enlutado. Mas só por hoje.

sábado, 20 de agosto de 2016


nossos poros
em um poro
e as mãos
em uma
e a língua
            em fala

: palavra

onde nós nos deitamos inteiros
e abraçados somos
somas de formas difusas
curtas ondas de intenção
e força

nossa soma
no fundo do inverso
na busca por sim
onde o hoje
[o chão que pisamos]
é ontem e amanhã
e levantados no ar
de gravidades
sentimos a palavra
em que deitamos e somos
a palavra que nos abraça

sábado, 13 de agosto de 2016

Atlântica - III


mar
onde mergulho os sonhos
e zarpo barcos de papel
rumo à infinita linha que é curva
e que abriga
a espuma e o sal

mar
onde perco o fim desatado do azul impreciso
cheio de abismos como o nome
sob o céu e seus perigos
nas profundezas abissais

mar
onde molho estas mãos
profundas
e busco as ondas perdidas
o indefinido e incontido desejo em sal
cheio de poros azuis e marés
de braços dos laços no inaudito

mar
onde o que quero é sim
como o som do sumir da espuma nas bocas da areia
esta areia que trago nos bolsos para te dar
poucas conchas delicadas onde te escondo
para te redescobrir inteira
                                        nas ondas que procuro
                                              [teus destinos]

quarta-feira, 3 de agosto de 2016


é preciso vencer um limite
um passo
e impreciso dar um passo
um limite
onde o limite é também um passo
preciso
do que é impreciso

e

conjugar o verbo errado
num risco
para saber do risco
errado e errar pelo rio difuso
onde o hiato é todo o rio

perder-se no rio
sem caixas de bagagem
ou caminhos difusos
ou seres do outro lado do lago
no fundo das águas
aguardando na sombra
o bote

ser o bote
difuso 
o passo
nesse fio
onde há corpo
no plural do sim

corpo sem controle
pleno de desejo
sujo de vontade
preso debaixo de unhas carcomidas

é noite.

e os joelhos ao peito
dobram as sombras
porque é noite
e à noite
cabe talvez esse fio
fino
a que chamam dobra

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Atlântica - II

Faz falta a ponte na ponta da baía ao sol desse inverno. Fazem falta os navios ancorados no Penedo, os rebocadores branco e pretos e um pequeno barco que liga o centro de Vitória a Paul. Fazem falta os muitos quilômetros da Vitória à Minas, seus solavancos e o entardecer visto por suas janelas sujas do minério de Minas. Faz falta a Praça da Estação, as bagagens, os abraços de chegada. Faz falta o tobogã da Contorno à 21h da sexta, quando as pessoas resolvem entrar em casa e sair. Faz falta o Maletta, seus livros e bares. Faz falta a serra de Itabirito, o caminho. Faz falta ver Ouro Preto sob a neblina, ver o Ribeirão do Carmo entre rochedos e Mariana amanhecendo numa linha de sol. Faz falta a estrada, os cafezais de Manhuaçu em flor, o São Pedro no frio de Juiz de Fora. Faz falta o rosto no espelho. O mesmo que se viu refletido em retinas, lentes de óculos, vitrines de livrarias, garrafas de vinhos. Faz falta o rosto no espelho, esse rosto hoje que é também um amontoado de casas.

domingo, 31 de julho de 2016

Cais

      Martin Heidegger, em seu famoso ensaio "Construir, habitar, pensar", comenta a diferença que há entre o construir e o habitar. Para o filósofo, habitar é uma relação mais profunda, visto que nela existe um laço integrador entre o habitante e a habitação que se faz na ordem do pertencimento, porque habitar é parte da essência do ser. Para Heidegger, habitar significa de-morar-se sobre a terra e, para isso, é preciso tecer com o onde se habita um sentimento de resguardar: de libertar-se na essência da habiatção, visto que resguardar significa pôr-se em contato com sua essência, libertando-se das demais forças que sobre si e sobre as coisas se operam. É nessa ordem que para habitar está na relação de ter entre si o lugar um sentimento de pertencimento. Nessa linha, ao de-morar-se sobre a terra, habitando-a, o ser estabele relações integradoras com o todo.
      Nesse sentido, a habitação será sempre um lugar que, como ele também discute em outro texto, "...poeticamente o homem habita...", o habitante "cria" uma relação de pertencimento, visto que só é possível habitar dentro da força produtora e criadora que existe no poético, pois, usando da metáfora de Hölderlin, "poeticamente o homem habita / esta terra". Logo, todo habitar é uma criação e é, também, uma relação criativa. 
       Morei em muitos lugares, muitas casas, embora tenha habitado, de fato, muito poucas. Habitei - e talvez habite - Ouro Preto tendo morado muito pouco lá, na mesma intensidade ou talvez em intensidade maior do que meu sentimento de habitação em Mariana, onde morei de fato. Porque de-morei-me em Ouro Preto, resguardei-me lá tecendo com a cidade, como fiz em Mariana, uma relação fundamental do meu ser e estar sobre o mundo. Da mesma maneira,  nunca morei em Vitória, mas estou certo de que a habitei muito mais do que Vila Velha, onde morei. Habito em BH e a habitei em todos os lugares onde vivi. Habito em BH aqui nas margens do Velho Chico, rio que aos poucos se torna, também, meu habitar.
       Nesta casa nova, de paredes antigas e largas, coexistem muitas habitações simultâneas. Tateamo-nos ainda, criando esse laço lento que pode ser mais profundo do que o de outras habitações por onde passei. Sentir-me pertencido e resguardado nela e pertencê-la e resguardá-la, numa mútua habitação que se constrói, de onde brotam outras habitações novas, cheias de novas estradas e trilhas, construções integradoras.
       Buscando a habitação na morada, palmilho as paredes na noite. Nossa insônia mútua, essa casa acostumada a madrugadas e sorrisos. Seu chão colorido, ladrilhado do sem fim, onde é possível pensar novas geometrias, redesenhar-me. E em tudo um tom solene, como se os vínculos criados produzissem mais formas e caminhos, permitissem a criação de lugares não existentes, como a ponte cria lugares a partir de si, na imagem que usa Heidegger no ensaio que citei no início.
       Como outras casas onde morei, essa casa está em processo de habitação. Processo: essa palavra de tentáculos. Ontem me chamaram a atenção para ela, das repetidas vezes que a uso nos últimos dias, meses. Processo. O de habitação, o de traçar no mapa onde será o próximo destino, sem ainda um tempo para que o ato se dê. O fim da necessidade de urgência e partida. O fim de estar à mureta de um cais - aqui em Januária, em Vitória, nos cais imaginários de barcos que zarpam diariamente nos horizontes de montanhas de Minas. Como diria o Milton, "para quem quer me seguir / invento o cais". Este cais. De outra arquitetura, porque todo habitar é criar um cais, é um libertar-se por fim.

domingo, 24 de julho de 2016

Cantar o dia como um minuto após o outro. Tempo. Pergunto ao rio retornando antigo a mim, verso duro e obscuro. Tempo. Onde meus olhos pousam, lentos, vagando vagabundos no tempo imenso de mim, atropelado por ponteiros e mágicas. O dia comprido cumprido onde o tempo é talvez um tom de cor nova, ainda não pensada ou vivida, talvez um tom de verde. Tempo. Essa novidade acústica que eu experimento com os dedos, sem saber de ser ou de estar, onde ser e estar se fundem num verbo inexistente na minha língua, de pensamento ambíguo impossível. Língua de rodopios e desgastes. Na essência dos verbos, estados e seres divididos, seus predicados e processos. Quando. Este tempo hoje, os muros da casa que abraçam, o sol de um fim de dia e de datas somadas, estranha maneira de sabor. No fim. Tempo. Hoje. Tempo: temperada temperatura do toque.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Atlântica - parte I


Hoje o mar, sua ampliadão. Nas noites geralistas, as margens impossíveis entre a travessia e o atravessar. Há o Chico que dá a lua, vermelha, na vazante de seu fluxo. Mas há além, onde o Chico quebra, a amplidão atlântica azulada das tardes desse inverno na linha final: ponta de areia onde o Velho Gigante se abraça ao sal.
      O Chico, em sal, no Atlântico. Atlântico como o Tejo, o Amazonas. Atlânticos rios que me passam na amplidão do mar, nessas tardes, onde o passar, seu vagar e ficar, são mais a calmaria de ontem, nesse céu de azul de doer.
E em tudo uma espera: a casa, lenta, que agora espera; o tempo das velhas panelas, com a tradição de mim em atropelos. As cozinhas fartas de amizades, de contos que, guardados, cabem na curva marrom mais fina da concha de um caramujo. O novo falar e o novo auscutar, porque há no sertão desses gerais outros sons sabores de saberes novos, encroados. De suores novos mal digeridos e o sal na língua que lambe a velha palavra dia: dia, constante como o tempo das galáxias.
É sal o sol da amplidão no barro das coisas atravancadas nas barrancas. E as criança em sal correm nas ruas de pedra nesse sol de julho, só sal. Branca, a nuvem solitária que passa me lembra: tudo tem fecho e segurança, tudo na amplidão de limites, para transpô-los como a um novo sabor, como a experiência que o corpo presenteia aos sentidos, quando em contato com uma inaugural madrugada. Tudo em sal por fim. Fino. Fino como o mais fino dos sais, porque – mínimos – se escondem nos poros.
Espera e sal: tudo na amplidão sem fechos fechados na esfera onde os rios são por fim o Atlântico, o Pacífico, os mares misturados. Hoje o mar, amplidão. Esse céu, meu inverno em mim azul de doer. Um inverno, sem frio possível, mas de rio e lendas. Cantam nas águas as vidas que estão além do abismo, a gruta que no fundo do rio levará a todos para o que temos de mais.

segunda-feira, 11 de julho de 2016


Não saia da verdade
deixando aberta a vida como quem desfila um carnaval.
Queira a mim em mim e
o que em mim habita,
louco,
cheio de seus novos poros e palavras,
sem mais as explicações de seus delírios.

Não saia pela porta
e não vire mais as chaves ao contrário em mim,
trancafiando as suas decisões como a serpentes.
Não ignore o meu reclame,
mais que a minha luxúria ou minha ira.
Não queira de mim poucos esforços,
não me descontente,
não me descontinue.
Não me finja amar, subterfúgio,
e nem me queira pelos ciúmes.

Ame apenas,
como quem mais não sabe o que fazer
ou como quem não consegue se ferir de outra forma
ou como quem não pretende mais nada com a voz solta,
com as palavras em silêncio.
Queira meus desejos sem corpo,
sem vontades claras,
buscando mais que a sede das minhas palavras
e queixe-se dessa vertigem.
Queixe-se por muitos anos desta falta de palavras.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Tentei morar na palavra.
Em vão.

Primeiro levou os livros.
Depois levou o transporte.
Por fim levou a comida.

Saí de lá.
É mais seguro o chão firme deste cais.

sábado, 2 de julho de 2016

sobre assaltos


Fui assaltado pela primeira vez aos 10 anos voltando da padaria. Levaram uns chicletes que comprei para uma competição de festa junina na escola. A segunda vez que me assaltaram eu tinha 11 anos. Estava indo para a escola. Levaram meus vales-transporte. A terceira vez que fui assaltado foi na volta da padaria. Levaram o troco e um pedaço do pão. A quarta vez que fui assaltado foi na escola. Levaram um estojo com meu material escolar. A quinta vez que me assaltaram foi voltando da escola. Nessa, estavam com uma barra de ferro e eu estava com duas colegas. Levaram uma calculadora e algumas moedas. A sexta vez que me assaltaram foi indo para a escola. Levaram a alça de uma mochila porque a segurei no ponto de ônibus e não deixei que me levassem livros e cadernos. A sétima vez que fui assaltado foi voltando da casa de uma ex-namorada, na madrugada de uma segunda-feira de carnaval. Fui espancado por umas trinta e cinco pessoas, de idades e gêneros diferentes. O número de pessoas foi estipulado pela polícia quando registramos a ocorrência. Levaram uma pochete com um canivete e poemas, um ticket refeição e dois vales-transporte; um dos meus dentes, quebrado a chutes; meu relógio de pulso. Fiquei com o rosto arrebentado por um mês e com fortes dores nos rins.
      Fui assaltado sete vezes dos 10 aos 18 anos.
Além desses assaltos, no mesmo intervalo de tempo, fui abordado incontáveis vezes, sem assalto, porque estava sem nada nos bolsos. Tentaram levar meus chinelos, uma vez, sem sucesso: eram velhos. Tentaram levar o que tivesse nos bolsos, sem sucesso, porque andava só com a chave de casa. Não usava nada que fosse caro ou de marca ou que chamasse atenção. Andava com o dinheiro nas meias, quando andava com dinheiro. Fiquei 16 anos sem ser assaltado, mesmo tendo sido abordado duas vezes em Vitória, mas estava sem nada nos bolsos.
Nos últimos noventa dias, tive minha casa invadida três vezes, sofri dois assaltos em menos de trinta dias. Levaram uma bicicleta, uma furadeira, uma serra tico-tico, um jogo de panelas, um jogo de taças e de xícaras. Pelo menos dessas últimas vezes, não sofri no corpo, como na sétima. Acredito que muitos já foram assaltados mais vezes do que eu. Quis registrar isso para lembrar que, mesmo sendo tantas vezes assaltado, não acho que bandido bom é bandido morto.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Só às palavras do tédio
cabem os conselhos.

Nelas, desfazem-se as vontades,
nossas cores,
o chão.

Nas palavras do tédio
o truncado vazio
a vaidade da vaia
o infortúnio da mão.

Nas forças de tudo
no tédio
nossas farsas
há tristeza escura
há sala de palavras.

Danilo Barcelos
verão de 2012.

terça-feira, 7 de junho de 2016


É preciso me abrigar da chuva do frio e das marés. Mas não há chuva ou frio e as marés estão distantes. Mas há o passar das marés, seus distúrbios soltos e mórbidos, os navios ante o cais. É preciso me abrigar do sol e do vento, mas o sol é sempre e o vento um nem quase, onde tudo que há é poeira e tempo, esse jeito de abrir um maço esquecido de cigarros. O bolso vazio na calça velha, a praça, além. Além o que existe de sabores de além, onde o destino agora em caixas vazias de qualquer coisa hoje inútil. Mas é preciso o abrigo do vento e da chuva, o chapéu ao sol de quarta-feira.
      Quarta-feira, dia de ângulos. Porque às quartas-feiras chove uma chuva fina no sem-onde, mas não aqui neste sol de tarde quente. O azul, por fim esquecido. Mas me lembro. Lembro que gostava daquele abrigo da chuva, da marquise curta. Lembro, mas é uma lembrança quase opaca, era outro (e não eu) debaixo da marquise curta, abrigando-me desse outro que hoje está aqui sob o sol. Lembro-me que já sorri desses barulhos naquela marquise. Sorri sim, verdadeiramente. E hoje é a lembrança opaca daquilo, meio sem gosto, como um pão velho que aos poucos mofa.
É preciso me abrigar do mofo da umidade e dos ratos. Mas aqui não há umidade nem mofo e os ratos, poucos, os cães expulsam aos latidos violentos ou os gatos caçam. Mas lembro-me de mofo e ratos e umidade como me lembro das marquises apertadas, do abrigo. Tudo longe, quase esquecido, foto que desbota e que quando olho é um outro eu tão distante que hoje nem parece ter existido de fato. Inventado de um sonho, mas possível de comprovação nos documentos oficiais que carrego. Documentos que o fisco e o governo controlam, hoje onde tudo é controlado e ruim.
Lembro-me que não havia o controle e o hoje era um vislumbre em espelho de banheiro, bêbado, às quatro da madrugada. O hoje era a tarde de sol cinza debaixo de uma laranjeira ceca no meio de um quintal com musgos. O hoje era uma porta azul com aldrava preta frente a uma escada de pedras onde um velho, repetidas vezes, raspava ervas daninhas. O hoje era preciso. E era preciso saber o hoje que não vislumbrava. Um hoje distante e que hoje é pouco importante, bem diverso. Mas era o hoje que eu tinha, de que me lembro. O hoje que era só um vislumbre na marquise, aquele abrigo, cheio de umidade de um moletom empapado de chuva, que cheirava a guardado como cheiravam as calças e os sapatos. Como cheiravam os ombros dos amigos, misturados aos perfumes do possível entre cheiros de sabão e amaciante.
É preciso guardar os livros, cuidar deles e alimentá-los. Mas hoje os livros nutridos se formam nas estantes coloridas, sem tanta urgência de abrigo, mais lido e tratados como coisas. Instrumentos como furadeira, chave de fenda ou uma colher de cozinha. Livros sem mais a mistificação de livro, sem mais a coisa perdida, esse mistério absorto onde não sei de muita certeza e onde perdi qualquer verdade. Mas me lembro daqueles livros imantados e verticais, nas estantes, cheios de sonhos para aquele hoje vislumbrado e seco. Aquele hoje que nem entendo da memória, do cheiro velho das coisas velhas que hoje já não têm mais qualquer sentido, mas que existem aqui desfiguradas, quebradas e recolhidas.
É preciso organizar os móveis e a casa, arrumar a cama todo dia. Lembro-me que era preciso o vinco dos lençóis no centro do colchão velho. Um lençol com flores alaranjadas de trinta anos, desbotadas de trinta anos, velhas por fim em tudo e em mim também, mas hoje são flores de que me lembro e do vinco, mas não da obrigação de arrumar e organizar. As coisas sobem sobre as coisas e naquele hoje vislumbrado as coisas seriam organizadas e corretas. As coisas teriam seus momentos úteis. Hoje, só coisas.
Naquele antigo ontem onde lembro o pouco e distante, havia a certeza de amor. Havia amor, eu me lembro. Era palpável como um travesseiro, um chumaço de algodão. Mas é tão distante e esquecido que nem sei mais que gosto tem, se tem gosto, se era palpável. Está distante como o abrigo debaixo da marquise, como a chuva que caía, como o que se via além da porta azul de aldrava preta, para cima da laranjeira seca e do quintal com musgo. Para além das flores laranja desbotadas do lençol, seu vinco. Para além. Eu não me lembro mais do que existia para além.

sexta-feira, 3 de junho de 2016


a calma do rio, seu passar. as noites longas onde tudo é árvore, nuvens pesadas e estrelas. o som do tempo nas coisas, os espinhos e o que de mar tem ainda nos poros. onde o passar? onde esse tempo grosso? nas coisas esquecidas do dia, ao sol, essas frutas pelo chão e o quintal que se limpa de folhas de limão, o muro caiado que me mira, sem cercar de fato o que tem. os novos verbos nunca usados, cheios, carregados e pesados, de sabores de cajá, um fardo de cana nos carros de boi que cortam as estradas, as memórias dos vapores e das balsas. o silêncio do rio majestoso e pleno, de águas sagradas onde os jacarés se banham. banhar-me de tempo nesse acaso de nome palavra que pulsa comendo a memória de meus medos e a forma de minhas palavras. há estrada, há cais. onde o cais?

terça-feira, 3 de maio de 2016

de onde eu vim

de onde vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos. de onde eu vim, mata-se por qualquer motivo, por uma pichação, por nem isso, por estar acompanhado, estando acompanhado, de dia, de noite, de madrugada. mata-se com regularidade semanal. sem a palavra. de onde eu vim, implanta-se a culpa onde nada há e prende-se por decreto, por desacato. os tempos sombrios e os becos, lá, nunca sumiram. aumentaram os becos, quiseram iluminá-los, derrubaram casas e mais casas, desalojaram rapidamente muita gente pela urbanidade. em vão. lá de onde eu vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos. e há paz combinada que de tempos em tempos acaba. há paz para que milhares de trabalhadores e trabalhadoras saiam ainda pelas ruas na madrugada. rompida a paz, há horas de recolher, horas para sair, e silêncio nos ônibus, nos sacolões, nas padarias, nos bares. há botas e fardas que cercam e prendem. matam por muito menos. matam dos dois lados, como matavam antes. lá, o direito é um susto e uma camisa a mortalha. lá, de onde eu vim, é o troca-tiro e as torturas, dos dois lados, é um sofá em chamas em barricada no meio da madrugada, velha murada, é ônibus incendiado e corpos como em poucos lugares do planeta. de onde eu vim, ainda se está muito longe do estado de direito. e o pouco estado de direito que lá chegou, se é que chegou de fato, pode voltar a sumir. porque de onde eu vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Luta




Escrevi o poema acima no meio da graduação. Ele foi escrito muitas vezes, em apostilas, textos, etc. Hoje o reencontrei, ainda à mão. O poema esperou o dia de hoje para ganhar as cores. Esperou o dia de hoje para chegar neste formato. Ficou guardado numa cópia de um livro de um autor russo esperando o momento do salto.

Na época que o escrevi estava envolvido com o movimento estudantil. Se não me falha a memória, foi um poema escrito quando apoiava e fazia campanha para uma chapa de DCE encabeçada por amigos dos cursos do ICHS-UFOP, chapa que ganhou uma quente eleição e que levava a palavra luta em seu nome. No calor daquela eleição só pensava nos sete degraus da luta por que passávamos. Naquele momento, a luta era feroz - por votos, por discussões, por lugares de debates, por mudanças das posturas da universidade diante de questões que até hoje aquecem os debates dos alunos da UFOP - moradia, amparo estudantil, segurança, melhores condições de ensino e permanência. Uma luta diária em meio a  um corpo discente dividido naquela disputa de duas chapas com aspirações opostas e com diálogos calorosos. Em mim o eco era esse, como está aí no poema. 

Hoje é outro tempo e a luta para que eleições ainda possam trazer esse calor. Para que a democracia siga, cada vez mais madura, propiciando a construção daquilo que fazemos aos poucos, na constante luta política que nos move. Hoje, meu poema diz mais do que eu queria dizer naquela época. E dentre as muitas coisas que diz, diz que o ato de lutar é sempre múltiplo e este poema, o poema, a escrita, é meu lugar de luta. Escrever também é lutar, "lutar com palavras", citando Drummond. E quando o ciclo do dia se consumir, a luta prosseguirá nas ruas do sono, na noite, esperando o raiar de outro dia.  

domingo, 3 de abril de 2016

pensar o dia, a hora, e não ser. pensar o que traz o mar, o que tem na concha, o que existe de distância no vento que percorre o rio. pensar no rio, seus peixes de nomes conhecidos e desconnhecidos, seus mistérios, em Iara no fundo comendo os precipícios. pensar no que existe além da canoa, na terceira margem que liga o aqui e o não aqui, parada no grande seguir das águas. pensar no calor sob um céu azul que nem cabe tanto azul e sentir saudades das espumas das ondas, do penedo, das noites frente ao cais desabitado com seus barcos e pescas para depois.

talvez olhar o mar mais uma vez de olhos apertados e chorar. talvez lembrar que há água em mim por inteiro e que volto para perto dela, seus amanheceres. talvez olhar o rio largo sob a ponte, as croas e os manuelzinhos, os pássaros de muitos nomes, as docas e as dornas, um vocabulário novo e espinhento como um pequi por dentro. talvez encher a língua de espinhos quase invisíveis para lamber o outro. lambida espinhenta que traduza esse vário sentir, para arranhar e ferir como fazem as galhas ao fundo das chalanas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Parte III de A contraposição das marés, poema do livro "é corpo seu norte", em produção (quase concluída)


A contraposição das marés

III

quero o som
dos afogados
dos seres na praça
dos inquilinos
já que as pessoas não sabem mais o que dizem umas as outras
e o verso aos poucos silencia.

mas é preciso fazer gritar os versos porque
não sei a dor que neles cabe e
não entendo nessa dor outra forma de dor e
não quero mais a dor dos corpos banhados de sal e de saliva
espreguiçando-se mudos nas calçadas do tempo
colhendo algodão, trigo e pão para alimentar seus sonhos:
as flores com que cobrem o visco da praça.

preciso do visco da praça, seu sentimento de tarde
pois a noite não é mais outra verdade.

vereda a vereda meu corpo busca o limite e não quer a dor
ou a contraposição que compõe os afogados,
mas seu sussurro, seu sorriso, seu álbum de retratos
picotados
como esmolas aos pobres que se anovelam.

quero o abraço quente dos pobres que se anovelam.
nesta casa, meu poema.
quero o som que cantam em voz dura de povo para

só então trazer à casa o bom-dia e a cor do dia
trazer o povo
para um tempo possível de verdade. Um tempo de abraços
potentes como as pedras do rochedo
translúcido como o fundo de um rio.
como o movimento do rio do qual não sei de seu início e fim,
sem destino para o depois.

já incerto do que não diz
já incerto como o olhar ao balão que sobe
[à cor que sobe no azul de sentimentos]
agora que o sentimento nada tem de transmissão
de saudade captada em mil delírios
é que preciso gritar os versos que silenciam.

gritar

como um beijo que ninguém comete na noite
como a delícia aos perdidos
como os segredos da fome
e o minúsculo compartilhar.

usar as palavras que não querem o caminho perdido do silêncio
e não se acomodam no tempo de seus predicados.
nas palavras, esse suor que transpiro,
trazer o povo em seu sal que se limpa na madrugada
com manga de camisa
e busca o infinito do dia
e quer a verdade consumada:
gente que ri de tudo neste apesar
em meio a esta dura vertigem.