Quando fiz sete anos, sabia ler. Quando fiz dezessete, estava com a
coluna quebrada e recebi uma festa surpresa. Quando fiz 27, tinha
acabado de passar no mestrado da Ufes, morava em Vila Velha, já era
professor universitário há um ano. Agora, às vésperas dos 37,
estou com uma casa nas caixas, com uma mudança que atrasou mais de
um mês, mas sou professor universitário de uma universidade pública, como planejado há 20 anos.
A vida e suas voltas. Nos trinta anos que separam o aprendizado da
leitura à sala de aula de um curso de Letras, muita coisa aconteceu.
E todas elas estão em alguma coisa que já está encaixotada. As
coisas, suas forças no tempo, seus pesos. E nelas as lembranças
muitas, as alegrias e as tristezas, as noites em claro estudando. A
sensação de que o amanhã, depois dos livros, seria de segurança e
paz.
A paz se alcança aos poucos, na medida em que consigo reduzir a
estrada. Mas como reduzir a estrada, se nos últimos dezoito anos a
dinâmica foi mudar, trocar de telefone, de cep, de endereço, de
cidade? Como diminuir a estrada se ainda rodo seis horas no mínimo
por semana, mais de 300km, para trabalhar – eu que sempre trabalhei
em cidades diferentes das que moro, seja no pequeno espaço que
separava Ouro Preto e Mariana, Cariacica e Vitória de Vila Velha,
seja nas distantes cidades da zona da Mata, na distância que há
entre Januária e Montes Claros? Como vencer o fim dos ônibus, das
rodoviárias, dos guichês?
A segurança é sempre adiada. Porque agora é o governo quem ameaça
a educação. A ameaça que ronda as portas das universidades, os
fantasmas e os cortes nada fantasmagóricos de verbas. A incerteza da
manutenção do ensino e a necessidade de seguir lutando.
Mais uma mudança entre tantas, mais um tempo entre tantos. E nessa
estrada sem fim, perder amores. Porque é uma soma de perdas, de
amores que vão ficando para trás nessa jornada. De nomes que agora
figuram ladeados num diário, cada ano que passa mais distantes e
incomunicáveis, de vidas que parecem serem de outra encarnação,
tão diverso me torno de mim a cada ano. E mesmo que ressurjam vez
por outra, caem outra vez nessas distâncias, sempre mudas. A vida e
suas labutas. Essas mudanças.
Hoje, às vésperas dos 37, o ritmo de mudar é mais lento. O corpo
sente mais o peso das caixas e das fitas. O corpo sente mais a espera
do caminhão, o ligar para transferir telefone, a troca dos cadastros
residenciais. O decorar o novo cep. Saber onde ficam as coisas no
novo bairro. Tudo novo de novo, tudo outra vez e uma rotina a
reconstruir. O corpo sente mais esses cansaços e as distâncias e
não suporta mais mudar. Mas é resiliente quanto ao fato de que o
próximo endereço é mais um. Que o próximo cep é mais um. Que
essa estrada nunca sairá do horizonte e que nunca será possível um
repouso de um tempo num único lugar. E mais pessoas passarão, mais
amores ficarão pelo caminho. Mais estrada por fim, o único lugar
que habito.