As três coisas que Thaís mais detestava em mim na época do nosso relacionamento eram eu chamar as meninas das Intocáveis de "minhas meninas"; da maneira como eu abraçava minhas amigas e de quando eu me sentava no Corujão.
Uma vez, quando reatamos - nas muitas vezes em que reatamos até 2007 -, num bar em um posto de gasolina em Manhuaçu, Thaís sorriu quando eu disse que era estranho vê-la sentar-se em um bar e não reclamar de tudo e ela confessou que aprendeu a gostar deles comigo, em especial nas intermináveis noites no Corujão.
Foram intermináveis noites. Como se tudo só fizesse sentido quando o sol nascia e eu ainda estava lá, sentado com os pés para cima, enquanto lavavam o chão. Intermináveis noites que precisei esperar as seis da manhã para raspar a conta e pagar minha parte no mexidão e nas cervejas. Noites de insônia que tive à porta da Sé, sentado jogando conversa fora, olhando o movimento do Corujão sem nem lá entrar porque não tínhamos dinheiro para tomar cerveja e o intuito era mesmo ficar na porta da Sé jogando conversa fora.
No Corujão discuti o pensamento de Foucault, aprendi sobre História da Arte, sobre Teoria da Literatura, sobre samba, sobre marxismo, sobre Freud. Tudo recheado de leveza, de uma bobagem ou outra, de muita risada. Lá foi o primeiro bar que amanheci com o meu violão - o meu, que quase nunca saía de casa, mas que passeava pelas ruas de Mariana nas praças, no coreto e, principalmente, no Corujão. Lá, todas as vezes, toquei sempre dois sambas-canção: Boemia e Mulambo. Muitas dessas noites viraram histórias. Boas histórias.
Cada reforma, cada mudança de lugar do balcão, cada mesa trocada, cada inovação eram recebidos por mim como piada. Mas o Corujão era preciso sempre, ali, como uma porta aberta ao meu eterno ser insone e notívago, que precisa da noite para ver o melhor e o pior das pessoas, seus arroubos mais profundos de medos, falsidades e de amor verdadeiro a qualquer coisa - porque uma vez um amigo me disse que não há amor mais verdadeiro que o de um bêbado para outro bêbado quando esses se declaram um para o outro.
A precisão do Corujão - estar ali por toda a madrugada - sempre me acalmou de alguma forma. Porque, mesmo depois de sair de Mariana, nos lugares de onde saía para ir para lá e chegar de madrugada, eu sabia que poderia esperar o nascer do dia no Corujão, em uma daquelas mesas, e alguém que conheço há muito estaria lá, e eu me sentaria a mesa e beberia, porque todos, em algum momento, sempre terminavam lá.
Há muito de romantismo no que digo, claro, porque todo sentimento dessa linha o é - em especial os bregas sentimentos de saudade que temos quando algo simplesmente acaba (o que é comum no caso de bares e comércios). Mas, mesmo que eu não consiga passar por esse embelezamento e romantização dos vícios - comuns nos sambas que amo - há algo meu que sumiu e que some aos poucos.
Nos últimos anos, Mariana muda profundamente. A lama da Samarco riscou do mapa vidas, histórias, famílias e suas memórias. Algumas dessas pessoas atingidas, depois de passado o caos, talvez numa noite de sufoco em que é preciso desafogar a cabeça de tantas dores e perdas, foram recebidas no Corujão para aquela dose de ilusão de alegria que os bares estão repletos. Para tentar achar um caminho qualquer. Muitas vezes, antes mesmo da lama da Samarco, era lá que os trabalhadores, saindo de seus turnos da mineração, iam comer o último prato, beber uma cerveja e dormir até o próximo turno, no vai-e-vem que são os ônibus das mineradoras. Lá, os guias de turismo comentavam as altas e baixas das temporadas, gastavam o dinheiro de seu trabalho. Lá, os estudantes de muitas épocas, os professores de muitas épocas, iam esquecer um pouco a dor da solidão que é morar longe dos seus enquanto se estuda, solidão compartilhada que faz com que em nós haja sempre um sentimento de acolhida e amor onde quer que hoje cada uma daquelas pessoas esteja.
Então, para além do romantismo, o Corujão foi palco do que a vida hodierna nos dá: o massacre lento do trabalho, o desgaste do discurso que está por trás do sonho, o espaço onde todos são iguais e podem, num hiato de noite, se verem livres de suas dores e preocupações e xingar o presidente - seja do Clube de Futebol, da Empresa, do País.
E o Corujão fechou. E todo esse movimento de ilusão será assumido por outro bar, como em todo lugar. E tudo seguirá igual: as mineradoras explorando seus funcionários nos turnos malucos - porque as mineradoras nunca dormem - os estudantes com as dores por trás de seus sonhos discutindo teorias e falando da vida dos outros, os desempregados que conseguiram um trocado, um amante que terminou um amor. Tudo em outro espaço. Mas não mais no Corujão, que em Mariana, era o meu.
Nenhum comentário:
Postar um comentário