quarta-feira, 14 de março de 2018

As minhas águas do mundo


Nasci às margens do Córrego da Serra. O da Serra deságua no Arrudas. Quando nasci, o Arrudas tomava a parte baixa de BH nas suas muitas enchentes. O da Serra nem era possível de ser visto e por anos achei que sua existência era lenda. Via-o sumir no Parque das Mangabeiras para o sem fim. O da Serra cai no Arrudas. O Arrudas segue para o das Velhas.
Conheci o das Velhas ainda criança. Cruzava a ponte sobre o das Velhas para chegar em Antônio dos Santos, distrito de Caeté, onde meus avós compraram um sítio. Tinha um rio que cortava o distrito, o Vermelho, alimentado por águas desse sítio. O Vermelho cai no das Velhas. 
O das Velhas nasce em Ouro Preto. 
O das Velhas cai no Chico. O Chico vai bater no meio do mar, como falava o Velho Gonzaga.
Morei às margens do Córrego do Seminário. O do Seminário deságua no Carmo, que corta Mariana. O do Carmo nasce em Ouro Preto. Quando o do Carmo abraça o Piranga, eles viram o Doce. O aurífero do Carmo, revirado pela eternidade pelo ventre de ouro. O do Carmo. Nome da padroeira, nome da Vila que sumiu quando a Fiel Cidade Mariana ganhou nome. O do Carmo. Da igreja que pegou fogo, dos reis congos do Rosário que vão à Mariana todo 16 de julho louvar a Virgem, receber o manto: o Capitão, a Tropa, a Corte, o Rei e a Rainha. Estava um dia na padaria, num 16 de julho de há muito, quando o Rei Congo entrou coroado, vestido de cetim azul. Levantei para Nossa Majestade, o Rei. Saudei o Rei. O Rei Congo. Nosso Rei Congo, que recebeu às escondidas o manto do Carmo da mão do prefeito, depois que o rei congo do Rosário de Ouro Preto lembrou que estava em outro reinado, de poder de outra monarquia. Nosso Rei Congo, da Vila do Ribeirão do Carmo. 
O Carmo abraça o Piranga. Desse amor, nasce o Doce. O Doce vai bater no meio do mar, como diria o Velho Gonzaga.
Depois, morei nas margens do Manhuaçu. O Manhuaçu alagava tudo em novembro, nas cheias. O Manhuaçu ainda alagada tudo, nas cheias. O Manhuaçu deságua no Doce. O Manhuaçu é o maior afluente do Doce.
  Por um tempo perto de um afluente do Chico. Por outro tempo, perto do futuro Doce, e de outro afluente. Por outro tempo, no Atlântico, onde deságuam o Chico e o Doce. 
Hoje moro às margens do Chico. 
Minha vida definida por dois rios: o Chico e o Doce. Ambos morrendo. O Doce, pelo minério. O Chico, pelo desmatamento e pelo assoreamento. Morrem também o da Serra, o Arrudas - há muito morto, só esgoto - o das Velhas. Morrem o do Carmo, cheio de mercúrio da mineração e cheio de esgoto, o Piranga, assoreado e cheio de esgoto, e o Doce, hoje só resíduo de minério. Morre o Manhuaçu, envenenado de agrotóxico das lavouras de café.
Tudo isso vai bater no meio do mar. O Atlântico. O meu Atlântico.

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