domingo, 28 de janeiro de 2018

Estudo de arquitetura - I


Perdi os afetos, suas sensações, por debaixo dos escombros. Numa noite de há muito, quando começou a demolição. Os nãos entraram num quarto frio, de madrugada, e eu estava sozinho. Cada um deles quebrou uma parte da arquitetura do quarto. No dia seguinte, mais vieram, com marretas e picaretas. No terceiro dia, outros, dirigindo tratores. Num determinado momento eram muitos e trabalhavam em turnos, sem cessar, quebrando cada parte da casa que com cuidado se construiu.
Ora bola de guindaste, ora lâmina de picareta, ora marretada, ora com as unhas, ora com os dentes, com as mãos, com a cabeça. Cada um quebrou uma parte da casa – ralo de banheiro, beira de porta, fechadura, cantoneira de estante, pedaço de vidro de janela, chuveiro, canos de água. Quebraram todo o reboco, o refino da tinta e as horas gastas escolhendo a cor de cada cômodo, a textura aveludada da tinta trabalhada para não deixar manchas nas paredes. Trituraram azulejos portugueses, comprados em raras feiras, escolhidos um a um, a rosa desenhada nos ladrilhos da sala, os pastilhados vermelhos de verniz sobre a pia de pedra onde houve um jarro de prata.
Por muito tempo gritei que parassem. Segurava-me nos móveis, aguerrido, impedindo que fossem lançados ao esquecimento. Punha-me em pé ante a parede. Tranquei correndo portas e janelas. Escondi segredos no quintal, debaixo de oco assoalho, nos batentes das portas. Gritei por ajuda na rua vazia, com braços ao ar, enquanto mais nãos chegavam aos batalhões – de variado formato e tamanho, brutamontes. Em vão. Todos os detalhes destroçados. Quebrados um a um com variada força e diversa violência. 
Acabou-se a tinta na parede. Se houve azulejo, como lembrá-lo a cor e o formato exatos? Não há mobília, lançada longe no primeiro movimento. Parafusos e pedaços de restos pelo chão, e pó que gruda nas calças, nas mãos, nos sapatos. Tudo é demolição.
Hoje, tijolos e rachaduras. Só a carne e os ossos da casa. Sua densa fundação.
      A crueza das rachaduras, seu ceticismo. Nelas não há nenhum sentimento além de densa tristeza: fundação do edifício. Opaca e irregular, subindo, preenchendo os espaços das rachaduras. Só elas, tijolos, uma densa argamassa cinza que os liga, material diverso do cimento. Tijolos feitos de material diverso do barro, mas vermelhos, pulsantes. As rachaduras vagas que não mostram o que há do outro lado, indo ao fundo das paredes, sustentadas de opaca cor.
Em pé na sala destelhada, aquele ceticismo concreto me olha. Terminado o quebrar, quando a sala ainda não estava por completo vazia para que eu pudesse olhar a carne e os ossos da casa, os nãos permaneceram ameaçadores, sem ação. Preparavam-se para demolir as paredes, pôr fim a tudo, de vez. Um exército experiente, capaz de uma violência conjunta. Todas as ferramentas e máquinas, fumaças azuis pelo céu, e o rosnar sedento de seres enormes com ferramentas em punhos prontos para se lançarem contra tudo. Eu estava em pé, na sala destelhada, olhando as paredes.
Ventou. Um vento frio, incomum, por entre as frestas. Baixei os olhos, desci os braços. O silêncio desceu inteiro na sala, no que havia sobrado da casa: seus destroços. Reluzia por entre as rachaduras uma memória de cor e, pela primeira vez, havia algo além. Cores disformes, ainda, sem muita esperança. E um silêncio pavoroso se fez, denso. Cobriu todos os nãos de profunda indiferença.
Não havia mais temor. Virei-me e fitei-os nos olhos. Fitando os nãos, um a um, eles nada comunicavam. Nada negavam porque nada os sustentava por trás. Olhei-os nos olhos cheio de indiferença. E eles berraram. Os nãos só amedrontam quando há algo de valor que eles negam. E os nãos berraram mais alto, cuspiram no meu rosto. Desesperados, rasgaram a minha camisa,  sacudiram meu corpo, bateram nos meus braços, nos meus ombros com dura violência que pude sentir o calor de suas mãos. Ameaçaram me destruir junto com a casa, aceleraram os motores. Em vão. Enquanto olhava a cada um nos olhos, braços iam descendo, vozes silenciando, e não havia nada, absolutamente nada neles. Vazios, por completo.
Então, penderam os braços, desligaram as máquinas, e saíram. Um por um, devagar. Quando o último não saiu, não tinha mais rosto ou forma de brutamontes. Era um menino, abraçado a um pedaço de pano, a quem afanei o cabelo e sorri. Um menino, pequeno e indefeso, o primeiro brutamontes que me entrou porta a dentro arremessando meus livros à rua. Um menino chorando, a quem afanei o cabelo. Saiu.
Hoje, a casa vazia, as rachaduras. Chutado um pedaço de caco de ladrilho, encontro um pedaço de afeto. Lembro-me dele, de um sonho! Vasculho um pouco mais os escombros e acho outro, grudado em uma carta. Mais um pouco, e salta outro de detrás de um caco de espelho.
É preciso buscar os afetos sufocados pelos escombros. Um a um, um por dia. Procurá-los à exaustão. Tentar lembrar suas cores, talvez partir delas para escolher novas, se já mortas. Deixar ventilar o ar entre as frestas das rachaduras. Separar, escolher, descartar, varrer com vassoura grossa. Achá-los onde as coisas se perdem. Um a um, um por dia. Redescobrir os afetos, descobri-los. Mas, sobretudo, no momento em que descobertos – nesse pequeno instante – olhá-los fixamente. Olhá-los para apreendê-los. Depois, deixá-los ir.

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