quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

postar é preciso


Limpei a máquina de escrever que esperava esse novo lugar na casa depois da mudança. Troquei-lhe a fita e é preciso comprar papel para as cartas que em breve volto a escrever, como fazia há muito. Ir ao correio, selar, postar. Postar mesmo, no serviço postal, usar o verbo no seu uso mais antigo, e não no que agora recebe, assim, banalizado. Quero postar mensagens para pessoas de variados lugares, mas que elas recebam as mensagens em papéis devidamente escolhidos, com suas cores e pesos, seus selos e carimbos, marcas de cola e cheiro de correio. Mensagens que aparecem por debaixo da porta e que podem ser guardadas em caixas, rasgadas ou queimadas, que ainda são respeitadas pelas leis do sigilo postal (em um mundo cada vez menos sigiloso).

E à máquina, na que me acompanha há muito. Ou mesmo à mão, com canetas escolhidas para escrever em folhas, mas de um único lado, para a carta ganhar aquele aspecto mais largo e elegante. Ou mesmo em folhas de caderno com envelopes feitos de folhas de A4, escritas às pressas porque o que deveria ser dito precisava de papel, qualquer que fosse.

Reli, esta noite, algumas das cartas que recebi ao longo desses 14 anos. Em algumas, fotos com rostos que não vejo há tanto, a letra miúda que contava de um tempo onde era possível acreditar. Um tempo em que encontros mágicos e inesperados surgiam nas ruas centenárias e que todo um cosmos era capaz de justificar a existência do encontro, longe das filosofias e das teorias, explicar muitas tardes de sábado. Nas letras, as cores das tintas e eu lembrando de tantos variados tons de verde enquanto lia tantas coisas. Cartas que me contavam do mundo, dos lugares que não conheço ainda, vindas de outras partes, de distantes continentes. Correspondentes que mantive por um tempo, em cartas que eram recheadas de telefonemas mais ansiosos, escritas em quartos, nas praças. Bilhetes que mandava nas férias a amigos lembrando que havia saudade do lado de cá das Minas.

Há envelopes, em breve haverá selos e teremos mais cartas à mão e à máquina, postadas. Não porque há nisso em mim um apego íntimo ao que some, somente, uma eterna nostalgia. É porque em tempos de imagens e palavras digitais, em tempos de velocidade de acontecimentos e de informação instantânea, minhas cartas, lentas e nos prazos dos correios, podem dizer mais de um tempo, alegrar, de alguma forma, quem as receber, alimentar em nós a beleza de que do outro lado da mensagem uma mão humana escreveu em um papel algo que pudesse passear de mão em mão em segredo.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Porque em meio a tudo que tenho ouvido...

... lembrei-me desse texto de Roberto Schwarz e repito: atenção aos tópicos 5, 8 e 12.

Com vocês, numa prática não habitual deste blog, Roberto Schwarz.

19 PRINCÍPIOS PARA CRÍTICA LITERÁRIA
Roberto Schwarz
1. Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo,os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

2. Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

3. Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso).

4. Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico. Vários acertos podem ser compensados por uma redação horrível.

5. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

6. Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apóie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

7. A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

8. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo  estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

9. Resolva sempre sem entrar no mérito da questão. 

10. Para as questões de ontologia, Wellek; para as de forma Kayser,e ultimamente Todorov. 

11. A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral. 

12. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela lingüística e pela filosofia das formas simbólicas.

13. Afrânio Coutinho e os Concretistas introduziram a crítica científica no Brasil.

14. Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los. Há quase 700.000 universitários no país.

15. Um doutoramento vale ouro.

16. O semantema glúteo em lingüística moderna tende à polissemia.

17. A crítica de nosso tempo é engajada e autêntica, e não descura de sua vocação profunda, de seu compromisso com o homem no que ele tem de eterno e no que tem de circunstancial, compromisso que irá cumprir resolutamente até o fim. Isto é que é importante.

18. Os livros editados pela Universidade de Indiana e importados pela livraria Pioneira são importantíssimos. Se pelo contrário você é de formação francesa, não deixe de aplicar o método de Chomsky e Propp. O resultado não se fará esperar.

19. Muito Cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.

* Texto de 1970, extraído do livro “O Pai de família e outros Estudos” da editora Paz e Terra.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

do que tenho visto por aí




… e tenho lido trechos, só trechos, sem muito além. e na avenida há gente de todo o tipo e cada dia é um rosto novo, um jeito novo, um olhar novo. e passam ônibus coloridos com números e destinatários, como as cartas, cheios de gente e de selos, de avisos de permitido passar. e nas estantes do supermercado acho a marca de café que bebo, mas ainda não acho o café, mas acho as coisas que via antes do caos, antes da grande pausa. acho as pessoas nas estantes dos supermercados, entre suas contas, seus casamentos, seus divórcios, suas solidões (porque há em tudo certa solidão), acho mais asfalto quando pensava impossível mais asfalto. acho garçons, mulheres que caminham para manter a forma como no calçadão da Paria da Costa, e aqui há também jovens que param na caminhada para comer açaí como no calçadão da Praia da Costa. e daí descubro que os calçadões da Praia da Costa cortam o Brasil, porque ouço aqui mais das praias do que ouvia em Vila Velha, e recebo no ônibus as novas da Prainha que nem quando morava na Prainha ouvia. e me dá uma saudade da vista, do convento, da janela onde entrava o barulho da baía. mas a baía aqui é só palavra e calçadão com jovens tomando açaí. e as palavras do taxista que esteve na praia do morro, ou de meu irmão que esteve em Jacaraípe, ou das fotos de Adolfinho de um Transcol com sombrinhas na janela. e no trevo do Alphaville, vindo com a mudança para cá, lá de Mariana, vi um Transcol aposentado, hoje ônibus de trabalhadores de mina, passar sem sentir o sol, os terminais, os transeuntes, talvez nutrindo a mesma saudade que eu de ser de uma linha que ligava, sabe-se lá, Serra Sede a Laranjeiras, ou de ser uma linha entre Novo México e Itaparica ou mesmo de querer ser um 507 entre Vila Velha e Laranjeiras, parando em Goiabeiras, desses ônibus azuis pegados de empréstimo para quebrar suas rotinas como se fossem amarelos.

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Simpatia do amor

trago seu amor
em cigarro que apaga
para reacendê-lo
entre chama e brasa

trago seu amor
em toda fumaça
me matando aos poucos
se me chama à brasa

só não é certo o retorno
se me chama
e me acha
mas como todo trabalho
vai terminar em nada

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte III


Há na mudança um ar de perda, uma tristeza. Uma melancolia impossível, dessas que talvez ficaram por anos guardadas nas gavetas. Encaixotada a vida, tudo o que sobra são coisas, restos de coisas, buracos na parede, marca dos móveis na pintura. A vida que ocupava o espaço agora é suspensão, é travessia, hiato sem preenchimento onde tempo, calendário e relógio estão em conflito pela verdade. Desfeita a casa, nesse hiato de tempo, nada acontece aqui dentro. E quando nada acontece, tudo pode acontecer de repente, como a chegada de uma boa nova por correio – nesse endereço que já se despede de mim – ou um livro a ser comprado na chegada. Uma boa nova como um pedido de desculpas, o conhecer um novo bar na cidade já tão conhecida, rever um velho amigo que veio, a passeio, viver a saudade que tornarei a sentir em uns meses. Uma alegre surpresa como um barco prestes a zarpar para o mundo, sem saber se amanhã tem almoço na hora, se há como fazer qualquer notícia, como se a travessia fosse sempre o destino de chegada.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte II


É sempre um céu azul quando as caixas chegam. Em maio, deixei Vila Velha com um belo sol de outono, céu que passei a gostar nos últimos seis anos. Quando deixei Juiz de Fora era noite, era setembro, fazia um calor ameno e a estrada era provisória. Quando deixei Manhuaçu, o dia era um pouco nublado, uma manhã estranha, meio chorosa, em meados de outro maio. Quando deixei Mariana, há praticamente nove anos, em abril, garoava leve de manhã e era tão pouca coisa a se levar, comparada à mudança de hoje! Mas em todas as mudanças, as caixas chegaram em um dia de sol.
Volta o cheiro de fita, de pincel escrevendo o conteúdo nas caixas, de papelão, de papel de jornal. A vida empacotada de novo, ela que já coube toda em uma mala preta, agora deixando para trás móveis, partes de uma vida que se estendeu nesses quase quatorze anos entre partir e voltar para BH. A casa já vai se tornando, como das outras vezes, neutra, como um rosto de um artista que tira a maquilagem depois de uma apresentação, desta vez uma breve temporada. E vai acabando o tempo em solo inconfidente de forma tranquila e cética, por eu estar mais sóbrio de mim, menos iludido de mundo, preciso para outras decisões, porque esse solo sempre me ensina algo, nem que seja o de ser sempre um lugar a lembrar. O que faz do rosto que volta também outro, muito diverso do daquele menino que a deixou numa manhã de agosto, que a custo reconheço quando fito os retratos enquanto os encaixoto.
Passei pela passagem, enfim. Passagem necessária, importante, imperiosa para não deixar nenhuma dúvida futura que viesse a surgir, alguma ilusão agora perdida. Passei a passagem de suas horas e sei que, mesmo distante de uma máquina do mundo a qual eu abdique, haverá outro horizonte, de céu largo e azul-violeta, um céu que leve os meus olhos em memória, fitando a linha das montanhas, sempre de volta ao mar. Um céu capaz sempre de me dizer que os pés podem alcançar as linhas do mundo, todas elas, nas muitas cidades que ainda pretendo morar, alimentando esse meu jeito cigano, esse meu prazer íntimo de sempre cair na estrada e partir para uma outra história, outra conversa, outro verso que se apanhe na beira de um caminho.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Hoje ela silenciou.

Profundo, o silêncio me desfez por completa e me pôs em face a mim mesmo, no início da estrada. Abri a mala e joguei pela janela os restos que sobravam, limpei a casa, e as barreiras se dissolveram.

Quando ela silenciou, sorriu um gato no ar. O sorriso suspenso trouxe a mão esquerda da menina que atravessou o espelho.

Tudo isso potente e estranho, surgiu numa conversa de horas com uma amiga. Terminada a maior jornada da minha vida, de maior trabalho e estudo que reúne os dez anos que se processam desde o início da empreitada, voltei a olhar o menino que, com uma mala, se lançava ao mundo grande sem saber que este o traria para o mar. O menino que esqueceu ali, naquele marco, tudo o que era e carregou do que sobrou um nome além do seu. Passado o tempo entre início e de novo início, a trajetória que se concluiu abre outra trajetória, mais serena que a primeira. é outro que entrará na vida, para seguir na estrada.

Mas o que surge de estranho é que pude ouvir, dez anos depois da caminhada, o nome silencioso que tudo produziu. Foi num abril, numa conversa de uma meia hora, que tudo começou. Sentados um frente ao outro, distantes num abismo que nos divida, próximo no maior amor que compartilhava, o único real amor de uma vida inteira, que se esquivou do som que por tanto tempo pronunciei, me disse um não.

Ao me negar, ali, ela abria as portas do mundo que caminharia até aqui. Para o menino que cresceu pobre, que se descobriu em Drummond por acaso, que passou a vida ouvindo tiros de fuzil e e berros de assassinados na madrugada, no silêncio da ordem que tudo poda na cidade, que não esperava da vida mais que uma chance, ela me deu o mundo.

Ali, de ante de mim, com o castanho brilho que nunca mais vi em olhares. No jeito de soltar o corpo no sofá, sem pretensão ao movimento, passando a mão no cabelo. Disse séria o não que tudo movimentou e hoje, depois de tudo, o nome dela volta dentro do texto, sem esforço. De novo cair no buraco, aumentando e diminuindo de tamanho. De novo atravessar o espelho.

Todo o trabalho é dela. Sem o não que me custou o maior amor de todos, seria hoje impossível silenciar da mesma forma. Só hoje, sem medo, com a tranquilidade de quem aceita uma verdade, de quem bebe água. Aceitar que o nome sempre voltou nos dez anos que silenciou. Na noite, na cor da aurora, no perfume da tarde, na paisagem vista na janela, nas vozes enrouquecidas das pessoas, no leve sabor da clama.

Um dia disse a uma amiga: o amor existe quando é possível estar a sós e em silêncio com quem se ama, sem a obrigação de uma palavra que diga o amor, mas que no espaço que os concentra, o silêncio os envolva caloroso e potente como um abraço. Senti e sinto há dez anos a saudade do silêncio que hoje lembro. Naquele abril, o silêncio nos abraçava.