domingo, 31 de julho de 2016

Cais

      Martin Heidegger, em seu famoso ensaio "Construir, habitar, pensar", comenta a diferença que há entre o construir e o habitar. Para o filósofo, habitar é uma relação mais profunda, visto que nela existe um laço integrador entre o habitante e a habitação que se faz na ordem do pertencimento, porque habitar é parte da essência do ser. Para Heidegger, habitar significa de-morar-se sobre a terra e, para isso, é preciso tecer com o onde se habita um sentimento de resguardar: de libertar-se na essência da habiatção, visto que resguardar significa pôr-se em contato com sua essência, libertando-se das demais forças que sobre si e sobre as coisas se operam. É nessa ordem que para habitar está na relação de ter entre si o lugar um sentimento de pertencimento. Nessa linha, ao de-morar-se sobre a terra, habitando-a, o ser estabele relações integradoras com o todo.
      Nesse sentido, a habitação será sempre um lugar que, como ele também discute em outro texto, "...poeticamente o homem habita...", o habitante "cria" uma relação de pertencimento, visto que só é possível habitar dentro da força produtora e criadora que existe no poético, pois, usando da metáfora de Hölderlin, "poeticamente o homem habita / esta terra". Logo, todo habitar é uma criação e é, também, uma relação criativa. 
       Morei em muitos lugares, muitas casas, embora tenha habitado, de fato, muito poucas. Habitei - e talvez habite - Ouro Preto tendo morado muito pouco lá, na mesma intensidade ou talvez em intensidade maior do que meu sentimento de habitação em Mariana, onde morei de fato. Porque de-morei-me em Ouro Preto, resguardei-me lá tecendo com a cidade, como fiz em Mariana, uma relação fundamental do meu ser e estar sobre o mundo. Da mesma maneira,  nunca morei em Vitória, mas estou certo de que a habitei muito mais do que Vila Velha, onde morei. Habito em BH e a habitei em todos os lugares onde vivi. Habito em BH aqui nas margens do Velho Chico, rio que aos poucos se torna, também, meu habitar.
       Nesta casa nova, de paredes antigas e largas, coexistem muitas habitações simultâneas. Tateamo-nos ainda, criando esse laço lento que pode ser mais profundo do que o de outras habitações por onde passei. Sentir-me pertencido e resguardado nela e pertencê-la e resguardá-la, numa mútua habitação que se constrói, de onde brotam outras habitações novas, cheias de novas estradas e trilhas, construções integradoras.
       Buscando a habitação na morada, palmilho as paredes na noite. Nossa insônia mútua, essa casa acostumada a madrugadas e sorrisos. Seu chão colorido, ladrilhado do sem fim, onde é possível pensar novas geometrias, redesenhar-me. E em tudo um tom solene, como se os vínculos criados produzissem mais formas e caminhos, permitissem a criação de lugares não existentes, como a ponte cria lugares a partir de si, na imagem que usa Heidegger no ensaio que citei no início.
       Como outras casas onde morei, essa casa está em processo de habitação. Processo: essa palavra de tentáculos. Ontem me chamaram a atenção para ela, das repetidas vezes que a uso nos últimos dias, meses. Processo. O de habitação, o de traçar no mapa onde será o próximo destino, sem ainda um tempo para que o ato se dê. O fim da necessidade de urgência e partida. O fim de estar à mureta de um cais - aqui em Januária, em Vitória, nos cais imaginários de barcos que zarpam diariamente nos horizontes de montanhas de Minas. Como diria o Milton, "para quem quer me seguir / invento o cais". Este cais. De outra arquitetura, porque todo habitar é criar um cais, é um libertar-se por fim.

domingo, 24 de julho de 2016

Cantar o dia como um minuto após o outro. Tempo. Pergunto ao rio retornando antigo a mim, verso duro e obscuro. Tempo. Onde meus olhos pousam, lentos, vagando vagabundos no tempo imenso de mim, atropelado por ponteiros e mágicas. O dia comprido cumprido onde o tempo é talvez um tom de cor nova, ainda não pensada ou vivida, talvez um tom de verde. Tempo. Essa novidade acústica que eu experimento com os dedos, sem saber de ser ou de estar, onde ser e estar se fundem num verbo inexistente na minha língua, de pensamento ambíguo impossível. Língua de rodopios e desgastes. Na essência dos verbos, estados e seres divididos, seus predicados e processos. Quando. Este tempo hoje, os muros da casa que abraçam, o sol de um fim de dia e de datas somadas, estranha maneira de sabor. No fim. Tempo. Hoje. Tempo: temperada temperatura do toque.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Atlântica - parte I


Hoje o mar, sua ampliadão. Nas noites geralistas, as margens impossíveis entre a travessia e o atravessar. Há o Chico que dá a lua, vermelha, na vazante de seu fluxo. Mas há além, onde o Chico quebra, a amplidão atlântica azulada das tardes desse inverno na linha final: ponta de areia onde o Velho Gigante se abraça ao sal.
      O Chico, em sal, no Atlântico. Atlântico como o Tejo, o Amazonas. Atlânticos rios que me passam na amplidão do mar, nessas tardes, onde o passar, seu vagar e ficar, são mais a calmaria de ontem, nesse céu de azul de doer.
E em tudo uma espera: a casa, lenta, que agora espera; o tempo das velhas panelas, com a tradição de mim em atropelos. As cozinhas fartas de amizades, de contos que, guardados, cabem na curva marrom mais fina da concha de um caramujo. O novo falar e o novo auscutar, porque há no sertão desses gerais outros sons sabores de saberes novos, encroados. De suores novos mal digeridos e o sal na língua que lambe a velha palavra dia: dia, constante como o tempo das galáxias.
É sal o sol da amplidão no barro das coisas atravancadas nas barrancas. E as criança em sal correm nas ruas de pedra nesse sol de julho, só sal. Branca, a nuvem solitária que passa me lembra: tudo tem fecho e segurança, tudo na amplidão de limites, para transpô-los como a um novo sabor, como a experiência que o corpo presenteia aos sentidos, quando em contato com uma inaugural madrugada. Tudo em sal por fim. Fino. Fino como o mais fino dos sais, porque – mínimos – se escondem nos poros.
Espera e sal: tudo na amplidão sem fechos fechados na esfera onde os rios são por fim o Atlântico, o Pacífico, os mares misturados. Hoje o mar, amplidão. Esse céu, meu inverno em mim azul de doer. Um inverno, sem frio possível, mas de rio e lendas. Cantam nas águas as vidas que estão além do abismo, a gruta que no fundo do rio levará a todos para o que temos de mais.

segunda-feira, 11 de julho de 2016


Não saia da verdade
deixando aberta a vida como quem desfila um carnaval.
Queira a mim em mim e
o que em mim habita,
louco,
cheio de seus novos poros e palavras,
sem mais as explicações de seus delírios.

Não saia pela porta
e não vire mais as chaves ao contrário em mim,
trancafiando as suas decisões como a serpentes.
Não ignore o meu reclame,
mais que a minha luxúria ou minha ira.
Não queira de mim poucos esforços,
não me descontente,
não me descontinue.
Não me finja amar, subterfúgio,
e nem me queira pelos ciúmes.

Ame apenas,
como quem mais não sabe o que fazer
ou como quem não consegue se ferir de outra forma
ou como quem não pretende mais nada com a voz solta,
com as palavras em silêncio.
Queira meus desejos sem corpo,
sem vontades claras,
buscando mais que a sede das minhas palavras
e queixe-se dessa vertigem.
Queixe-se por muitos anos desta falta de palavras.

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Tentei morar na palavra.
Em vão.

Primeiro levou os livros.
Depois levou o transporte.
Por fim levou a comida.

Saí de lá.
É mais seguro o chão firme deste cais.

sábado, 2 de julho de 2016

sobre assaltos


Fui assaltado pela primeira vez aos 10 anos voltando da padaria. Levaram uns chicletes que comprei para uma competição de festa junina na escola. A segunda vez que me assaltaram eu tinha 11 anos. Estava indo para a escola. Levaram meus vales-transporte. A terceira vez que fui assaltado foi na volta da padaria. Levaram o troco e um pedaço do pão. A quarta vez que fui assaltado foi na escola. Levaram um estojo com meu material escolar. A quinta vez que me assaltaram foi voltando da escola. Nessa, estavam com uma barra de ferro e eu estava com duas colegas. Levaram uma calculadora e algumas moedas. A sexta vez que me assaltaram foi indo para a escola. Levaram a alça de uma mochila porque a segurei no ponto de ônibus e não deixei que me levassem livros e cadernos. A sétima vez que fui assaltado foi voltando da casa de uma ex-namorada, na madrugada de uma segunda-feira de carnaval. Fui espancado por umas trinta e cinco pessoas, de idades e gêneros diferentes. O número de pessoas foi estipulado pela polícia quando registramos a ocorrência. Levaram uma pochete com um canivete e poemas, um ticket refeição e dois vales-transporte; um dos meus dentes, quebrado a chutes; meu relógio de pulso. Fiquei com o rosto arrebentado por um mês e com fortes dores nos rins.
      Fui assaltado sete vezes dos 10 aos 18 anos.
Além desses assaltos, no mesmo intervalo de tempo, fui abordado incontáveis vezes, sem assalto, porque estava sem nada nos bolsos. Tentaram levar meus chinelos, uma vez, sem sucesso: eram velhos. Tentaram levar o que tivesse nos bolsos, sem sucesso, porque andava só com a chave de casa. Não usava nada que fosse caro ou de marca ou que chamasse atenção. Andava com o dinheiro nas meias, quando andava com dinheiro. Fiquei 16 anos sem ser assaltado, mesmo tendo sido abordado duas vezes em Vitória, mas estava sem nada nos bolsos.
Nos últimos noventa dias, tive minha casa invadida três vezes, sofri dois assaltos em menos de trinta dias. Levaram uma bicicleta, uma furadeira, uma serra tico-tico, um jogo de panelas, um jogo de taças e de xícaras. Pelo menos dessas últimas vezes, não sofri no corpo, como na sétima. Acredito que muitos já foram assaltados mais vezes do que eu. Quis registrar isso para lembrar que, mesmo sendo tantas vezes assaltado, não acho que bandido bom é bandido morto.