quinta-feira, 27 de março de 2014

agora sim uma resposta, ou o devido e-mail que devia

pra Vença

do princípio,

comecei preenchendo a linha do endereço de e-mail com o título da mensagem. Os títulos têm mexido à beça comigo ultimamente. Parei naqueles títulos do Graciliano, a capacidade de concisão em uma palavra - Angústia, Insônia. É difícil isso em português, esse mínimo.

Daí tenho vivido aqui nesse mínimo. De olhar as mínimas coisas do dia. Tem um beija-flor que fica sempre no mesmo lugar do estacionamento, um lugar estranhamente sem flores, estas sempre atrás dele, numa longa árvore. Vi umas bonitas crisálidas na casa de minha tia, crisálidas de onde sairão borboletas amarelas que viverão pouquíssimo pelo que me contou minha mãe. E as crisálidas lá, marrons, brilhantes. Disse-me mãe que elas se espalharam pela casa toda, dentro de porta-coisas, lugares escuros. A que vi estava na biblioteca, num tubo de papel cartão, desses que servem para guardar grandes mapas, projetos frios de engenharia, desenhos de alunos das artes, cheios de vontades de mais.

Tenho andado pela cidade das mínimas coisas. Das pessoas munidas de seus problemas diminutos - no ônibus, no tráfego - ou de seus problemas maiores - no avião, no tráfico. As pessoas sempre em seus cotidianos, como o grande cartaz amarelo que vi em uma loja do centro da cidade escrito em uma língua oriental - ideogramas chineses, japoneses, sei lá. E fiquei imaginando o que ofereciam essas palavras em uma língua quase desconhecida aqui. Pode ser desde um pedido de desculpas, uma oferta de emprego, um anúncio de um crime. Lá, parece indecifrável, e é tão pequeno frente à cidade o cartaz, em dois ideogramas. Mínimo como os títulos do Graciliano.

Mas tenho vivido também a cidade das macro situações. Há uma onda de crimes no bairro que cresci. Crimes violentos, cheios de marcas de balas pelos muros do bairro. Junto, tenho visto o grande elefante do transporte levar e trazer milhares de pessoas. E as grandes confusões que se fazem em torno do futebol, do preço da cerveja, dos impostos e das imposições.

Fui ao Maletta mais de uma vez. Tenho ido lá, passado por lá. Lembrei de tanta coisa! Lembrei de nossa última vez lá, nossos ires e vires. Nosso eterno re-ocupar-de mudança, sossego, paz e desarranjo. Lembrei-me de a gente falando besteira também e deu saudade. Há tanto nessa vida a se ver, no micro e no macro espaço, aquilo tudo muito cheio de água e de fumaça, muito cheio de verdade, seja ela qual seja, eu que ainda não sei o que isso significa.

O movimento. A minha questão agora é movimento. É um ser de tentáculos. O trânsito diuturno do tempo. Pequeno, como o espaço do dia, imenso como a viagem estelar da via láctea rumo ao seu previsto choque com Andrômeda (e aí está um espetáculo divino que queria ver, o amor destruidor de duas galáxias em choque, criando outra). E será que desse encontro, em quantos bilhões de anos, vida inteligente surgirá, dessa vez relegada a uma espécie melhor que a nossa?

Há saudades. Sempre. E há café à sua espera.

retratos populares - parte I


...Um mendigo me pediu R$ 0,50 para comprar cachaça e eu não tinha para dar, dei da cerveja que bebia e ele dançou ao som de uma banda que tocava na praça. Uma foto enorme de Serra Pelada, de Sebastião Salgado, está tanto no CCBB quanto no Memorial Minas Vale (em uma exposição só com fotos dele, além de uma árvore de frases do Guimarães Rosa e de ternos e camisas com versos do Drummond queimados no tecido, e a voz dele recitando poemas pela sala de livros e vestuário – a poesia, nossa roupa). No CCBB, há uma bonita foto da Pagu, um gol de bicicleta do Leônidas da Silva e o Lula em São Bernardo, como líder sindical. As obras do BRT MOVE, o maior engodo do governo Lacerda, ainda param a cidade e não saíram do papel, reafirmando que o maior legado da Copa é a manifestação popular democrática nas ruas do país. Na biblioteca pública, uma funcionária, caloura de história da UFMG, diz como todas as pessoas a desestimulam à docência, assim como a prefeitura e o governo de Minas, responsáveis pela educação básica. Nos táxis, ninguém fala da tucanada se escondendo embaixo do tapete, querendo tapar uma corrupção estadual e nacional fazendo polêmica sobre investigação já em andamento. Na feira-hippie, como há muitos anos e ainda em progressão, vê-se cada vez menos hippies, mas na praça 7 eles estão em maior número que os pregadores de fé, que os vendedores de loteria mineira, que os cambistas dos jogos do Atlético e que os catireiros - cada dia mais em menor número no café Nice.

Belo Horizonte reúne e separa. De alguma maneira, tudo pulsa aqui a seu modo, menos desesperado que no mundo. Reúne. Abraça tudo como um polvo cheio de tentáculos, e separa. Tem tanto, quer tanto, espera tanto enquanto reúne: seja na mesa do café às cinco, na praça 7, no mercado, no trânsito parado da Afonso Pena, na vista dos prédios que se acotovelam vistos da praça do Papa. E nisso tudo, separa como o desenho das plantas da praça da Liberdade, na separação que dá entre o povo e o governo, seja por um portão, seja por uma rodovia, seja pelos anos de impunidade e de ouvidos surdos aos apelos da população.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Carta ao mar - parte II


Mar,

é com  saudade que miro-o no fundo de um espelho de banheiro. Você, que não aparece nesse espelho, mas nos meus olhos, no negro das retinas cansadas de um carnaval. Não tem você nesta quarta de cinzas cinza e triste a me lembrar que os dias nunca se repetem embora os erros sempre sejam recorrentes. Lembrar em seu verde-azul capixaba, rugindo contra as pedras na entrada da baía, rasgado pelos navios do globo, que tudo é só travessia, tudo é o seu liso rosto em movimento e tudo é força íntima e cósmica, como as ondas e as marés.

Aprender com você que o sentir profundo não tem raízes como a flor e o abacateiro, mas tem um universo de vida indomada que procria no seu ventre, e tem monstros abissais, tem afogados viúvos de mulheres de toda sorte, tesouros que talvez nunca encontremos.

 A saudade, mar, é de sal. Como é de sal todos os demais sentimentos que tornam-se lágrimas. O seu sal, mar, que a tudo criou. O sal com que sempre se terminam carnavais.





terça-feira, 4 de março de 2014

esquecido horizonte



O que tinha de ficar, ficou, e o que tinha de partir, partiu. Sedimentou-se o sal das relações, mantendo os meus por perto – em seus telefones, seus encontros, nossas divergências harmoniosas, saudáveis, violentas – e levou os que por muito achei que se manteriam por perto. Tirou muitas sólidas convicções mostrando que nada têm de sólidas, mudou a minha opinião sobre o mundo porque o mundo tem muitos olhos e ouvidos, transformou meu rosto, trocou de lugar o lugar de pensar (nas tardes, quando paro e olho o longo e esquecido horizonte). Manteve as janelas das cidades, seus milhares de problemas enquanto outra supernova surge em um lugar esquecido do universo. Mostrou que o verso resolve quase tudo, mas que é impossível resolver o verso. Trouxe-me perdas de tempo, de dinheiro, de alegria e de ilusão em cada ruga que pousou sobre meu rosto, este que vai entre o tempo do meu início até quando tudo será o que ficou por ser feito, essa eterna incompletude. Tirou desse tempo o tempo mesmo que por muitos anos gastei em vão e ensinou, por fim, que permanecer é, sobretudo, abandonar.