Hoje ela silenciou.
Profundo, o silêncio me desfez por completa e me pôs em face a mim mesmo, no início da estrada. Abri a mala e joguei pela janela os restos que sobravam, limpei a casa, e as barreiras se dissolveram.
Quando ela silenciou, sorriu um gato no ar. O sorriso suspenso trouxe a mão esquerda da menina que atravessou o espelho.
Tudo isso potente e estranho, surgiu numa conversa de horas com uma amiga. Terminada a maior jornada da minha vida, de maior trabalho e estudo que reúne os dez anos que se processam desde o início da empreitada, voltei a olhar o menino que, com uma mala, se lançava ao mundo grande sem saber que este o traria para o mar. O menino que esqueceu ali, naquele marco, tudo o que era e carregou do que sobrou um nome além do seu. Passado o tempo entre início e de novo início, a trajetória que se concluiu abre outra trajetória, mais serena que a primeira. é outro que entrará na vida, para seguir na estrada.
Mas o que surge de estranho é que pude ouvir, dez anos depois da caminhada, o nome silencioso que tudo produziu. Foi num abril, numa conversa de uma meia hora, que tudo começou. Sentados um frente ao outro, distantes num abismo que nos divida, próximo no maior amor que compartilhava, o único real amor de uma vida inteira, que se esquivou do som que por tanto tempo pronunciei, me disse um não.
Ao me negar, ali, ela abria as portas do mundo que caminharia até aqui. Para o menino que cresceu pobre, que se descobriu em Drummond por acaso, que passou a vida ouvindo tiros de fuzil e e berros de assassinados na madrugada, no silêncio da ordem que tudo poda na cidade, que não esperava da vida mais que uma chance, ela me deu o mundo.
Ali, de ante de mim, com o castanho brilho que nunca mais vi em olhares. No jeito de soltar o corpo no sofá, sem pretensão ao movimento, passando a mão no cabelo. Disse séria o não que tudo movimentou e hoje, depois de tudo, o nome dela volta dentro do texto, sem esforço. De novo cair no buraco, aumentando e diminuindo de tamanho. De novo atravessar o espelho.
Todo o trabalho é dela. Sem o não que me custou o maior amor de todos, seria hoje impossível silenciar da mesma forma. Só hoje, sem medo, com a tranquilidade de quem aceita uma verdade, de quem bebe água. Aceitar que o nome sempre voltou nos dez anos que silenciou. Na noite, na cor da aurora, no perfume da tarde, na paisagem vista na janela, nas vozes enrouquecidas das pessoas, no leve sabor da clama.
Um dia disse a uma amiga: o amor existe quando é possível estar a sós e em silêncio com quem se ama, sem a obrigação de uma palavra que diga o amor, mas que no espaço que os concentra, o silêncio os envolva caloroso e potente como um abraço. Senti e sinto há dez anos a saudade do silêncio que hoje lembro. Naquele abril, o silêncio nos abraçava.