quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Simpatia do amor

trago seu amor
em cigarro que apaga
para reacendê-lo
entre chama e brasa

trago seu amor
em toda fumaça
me matando aos poucos
se me chama à brasa

só não é certo o retorno
se me chama
e me acha
mas como todo trabalho
vai terminar em nada

terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte III


Há na mudança um ar de perda, uma tristeza. Uma melancolia impossível, dessas que talvez ficaram por anos guardadas nas gavetas. Encaixotada a vida, tudo o que sobra são coisas, restos de coisas, buracos na parede, marca dos móveis na pintura. A vida que ocupava o espaço agora é suspensão, é travessia, hiato sem preenchimento onde tempo, calendário e relógio estão em conflito pela verdade. Desfeita a casa, nesse hiato de tempo, nada acontece aqui dentro. E quando nada acontece, tudo pode acontecer de repente, como a chegada de uma boa nova por correio – nesse endereço que já se despede de mim – ou um livro a ser comprado na chegada. Uma boa nova como um pedido de desculpas, o conhecer um novo bar na cidade já tão conhecida, rever um velho amigo que veio, a passeio, viver a saudade que tornarei a sentir em uns meses. Uma alegre surpresa como um barco prestes a zarpar para o mundo, sem saber se amanhã tem almoço na hora, se há como fazer qualquer notícia, como se a travessia fosse sempre o destino de chegada.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Preparação de partida - parte II


É sempre um céu azul quando as caixas chegam. Em maio, deixei Vila Velha com um belo sol de outono, céu que passei a gostar nos últimos seis anos. Quando deixei Juiz de Fora era noite, era setembro, fazia um calor ameno e a estrada era provisória. Quando deixei Manhuaçu, o dia era um pouco nublado, uma manhã estranha, meio chorosa, em meados de outro maio. Quando deixei Mariana, há praticamente nove anos, em abril, garoava leve de manhã e era tão pouca coisa a se levar, comparada à mudança de hoje! Mas em todas as mudanças, as caixas chegaram em um dia de sol.
Volta o cheiro de fita, de pincel escrevendo o conteúdo nas caixas, de papelão, de papel de jornal. A vida empacotada de novo, ela que já coube toda em uma mala preta, agora deixando para trás móveis, partes de uma vida que se estendeu nesses quase quatorze anos entre partir e voltar para BH. A casa já vai se tornando, como das outras vezes, neutra, como um rosto de um artista que tira a maquilagem depois de uma apresentação, desta vez uma breve temporada. E vai acabando o tempo em solo inconfidente de forma tranquila e cética, por eu estar mais sóbrio de mim, menos iludido de mundo, preciso para outras decisões, porque esse solo sempre me ensina algo, nem que seja o de ser sempre um lugar a lembrar. O que faz do rosto que volta também outro, muito diverso do daquele menino que a deixou numa manhã de agosto, que a custo reconheço quando fito os retratos enquanto os encaixoto.
Passei pela passagem, enfim. Passagem necessária, importante, imperiosa para não deixar nenhuma dúvida futura que viesse a surgir, alguma ilusão agora perdida. Passei a passagem de suas horas e sei que, mesmo distante de uma máquina do mundo a qual eu abdique, haverá outro horizonte, de céu largo e azul-violeta, um céu que leve os meus olhos em memória, fitando a linha das montanhas, sempre de volta ao mar. Um céu capaz sempre de me dizer que os pés podem alcançar as linhas do mundo, todas elas, nas muitas cidades que ainda pretendo morar, alimentando esse meu jeito cigano, esse meu prazer íntimo de sempre cair na estrada e partir para uma outra história, outra conversa, outro verso que se apanhe na beira de um caminho.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Hoje ela silenciou.

Profundo, o silêncio me desfez por completa e me pôs em face a mim mesmo, no início da estrada. Abri a mala e joguei pela janela os restos que sobravam, limpei a casa, e as barreiras se dissolveram.

Quando ela silenciou, sorriu um gato no ar. O sorriso suspenso trouxe a mão esquerda da menina que atravessou o espelho.

Tudo isso potente e estranho, surgiu numa conversa de horas com uma amiga. Terminada a maior jornada da minha vida, de maior trabalho e estudo que reúne os dez anos que se processam desde o início da empreitada, voltei a olhar o menino que, com uma mala, se lançava ao mundo grande sem saber que este o traria para o mar. O menino que esqueceu ali, naquele marco, tudo o que era e carregou do que sobrou um nome além do seu. Passado o tempo entre início e de novo início, a trajetória que se concluiu abre outra trajetória, mais serena que a primeira. é outro que entrará na vida, para seguir na estrada.

Mas o que surge de estranho é que pude ouvir, dez anos depois da caminhada, o nome silencioso que tudo produziu. Foi num abril, numa conversa de uma meia hora, que tudo começou. Sentados um frente ao outro, distantes num abismo que nos divida, próximo no maior amor que compartilhava, o único real amor de uma vida inteira, que se esquivou do som que por tanto tempo pronunciei, me disse um não.

Ao me negar, ali, ela abria as portas do mundo que caminharia até aqui. Para o menino que cresceu pobre, que se descobriu em Drummond por acaso, que passou a vida ouvindo tiros de fuzil e e berros de assassinados na madrugada, no silêncio da ordem que tudo poda na cidade, que não esperava da vida mais que uma chance, ela me deu o mundo.

Ali, de ante de mim, com o castanho brilho que nunca mais vi em olhares. No jeito de soltar o corpo no sofá, sem pretensão ao movimento, passando a mão no cabelo. Disse séria o não que tudo movimentou e hoje, depois de tudo, o nome dela volta dentro do texto, sem esforço. De novo cair no buraco, aumentando e diminuindo de tamanho. De novo atravessar o espelho.

Todo o trabalho é dela. Sem o não que me custou o maior amor de todos, seria hoje impossível silenciar da mesma forma. Só hoje, sem medo, com a tranquilidade de quem aceita uma verdade, de quem bebe água. Aceitar que o nome sempre voltou nos dez anos que silenciou. Na noite, na cor da aurora, no perfume da tarde, na paisagem vista na janela, nas vozes enrouquecidas das pessoas, no leve sabor da clama.

Um dia disse a uma amiga: o amor existe quando é possível estar a sós e em silêncio com quem se ama, sem a obrigação de uma palavra que diga o amor, mas que no espaço que os concentra, o silêncio os envolva caloroso e potente como um abraço. Senti e sinto há dez anos a saudade do silêncio que hoje lembro. Naquele abril, o silêncio nos abraçava.

O polvo branco


Há mordaça. Senti-lhe o gosto quando acordei com ela na boca, de madrugada, retirando de mim o pouco ar que respiro. Uma mordaça que impede ações tranquilas, gestos impensados e costumeiros, um sorriso efetivamente alegre. Nela está escrito “aqui é proibido” e a pena é ser preso e amarrado dentro de uma jaula de dedos onde há um pêndulo afiado a passar sobre a barriga. Há mordaça porque está-se sempre na linha tênue entre a ofensa, o grito e o inevitável tumulto, pondo em risco a harmoniosa ordem. E para manter a ordem, câmeras vigilantes feitas de um silêncio improdutivo e pegajoso e um polvo branco que tudo abraça e comprime (bom em partir os ossos dos dizeres, quebrar a espinha da poesia e ransgar a pele das palavras em feridas) estão sempre atuantes. E além da mordaça, do silêncio vigilante e do polvo branco, há um olho que tudo vê a exigir autorizações, sendo preciso pedir-lhe permissão de passagem em muitos postos de guarda, mandar-lhe textos para avaliação de censores, evitar-se sempre chegar perto do muro para que assim o polvo não quebre outro pescoço, que as câmeras não filmem outro poema não comercial que tudo desvirtua e o silencie, para que nada, nunca, provoque tumulto. Isso faz com que todos os donos da ordem imponham-nos seus hábitos tecidos em alvas batas de paz feitas em teares de medo. E o sorriso, agora moeda de troca, câmbio flutuante, é a conquista máxima do olho que exige a felicidade a custo de morte, impondo-a, obrigando-a a manifestar-se e transformando seres mutantes em seres realizados, imutáveis e controlados, bons para caberem como engrenagens em pleno funcionamento numa máquina azul. E basta uma brisa, um desvio de conduta que chegue cheio de arte, um sorriso verdadeiramente alegre ou um prazer simples para que o poema suma na noite, amordaçado, jogado em vala comum com tantos outros que nada mais dizem porque o polvo, além de esfolar suas palavras, arrancou-lhes a língua.