terça-feira, 8 de outubro de 2013

O rebocador amarelo


Chove há quase 10 dias e o mar está em tudo pela casa. A cômoda sente falta da janela onde um dia passou um paraquedista vermelho contra um azul doído, no fim da ilha. A rede, sem janelas nesta sala só com portas, não vê mais o poema de Neruda escrito no vidro da janela, com o Convento ao fundo. O cheiro de rio que me entra casa adentro (deste rio aurífero e secular, revolvido pelos muitos cobiçosos que atravessaram as águas, tingiram-na de sangue) é outro cheiro, carregado de fantasmas sobrepostos que descem rumo aos fantasmas dos afogados.
O rio quer fazer encontrar os mortos, todos: os desta serra onde só chove, os dos sertões já tão bravios, dos milhares de índios massacrados pelos campos do país, dos negros torturados, açoitados, mutilados e mortos nestas minas hoje só covas vazias recheadas de ecos e de dores. Todos os mortos reúnem-se no mar, o maior dos ventres do mundo. E este mar é vida em profusão.
É só vida, o mar, porque os afogados e os mortos de terra, nas águas profundas, transformam-se nos mais diversos seres. São crustáceos, baleias, ostras, algas. E eu, que me associo a todos os seres do mundo, vivos e mortos, por ter o mar dissolvido no sangue das veias, sinto a falta desta vida potente e azul, e as coisas da minha casa sentem-na também.
Falta o mar neste chão, em mim, nesta página. E por isso li Ode Marítima: porque na mesa, entre Camões e Pessoa, entre Drummond e Cabral, entre os milhares de riachos feitos de letras impressas que seguem para o mar da linguagem, este berço dos mortos, se eu fechar apertado os olhos, vejo o paquete entrando à baía, ouço os cargueiros que levam e trazem o mundo, sinto o cheiro do Atlântico que um dia foi a rotina das minhas narinas.

2 comentários:

  1. Imaginei que um dia esse sentimento bateria a sua porta e invadiria a sua casa e vejo que agora o fez...

    ResponderExcluir