Chove há quase 10 dias e o mar está em tudo pela casa. A cômoda
sente falta da janela onde um dia passou um paraquedista vermelho
contra um azul doído, no fim da ilha. A rede, sem janelas nesta sala
só com portas, não vê mais o poema de Neruda escrito no vidro da
janela, com o Convento ao fundo. O cheiro de rio que me entra casa
adentro (deste rio aurífero e secular, revolvido pelos muitos
cobiçosos que atravessaram as águas, tingiram-na de sangue) é outro
cheiro, carregado de fantasmas sobrepostos que descem rumo aos
fantasmas dos afogados.
O rio quer fazer encontrar os mortos, todos: os desta serra onde só
chove, os dos sertões já tão bravios, dos milhares de índios
massacrados pelos campos do país, dos negros torturados, açoitados,
mutilados e mortos nestas minas hoje só covas vazias recheadas de
ecos e de dores. Todos os mortos reúnem-se no mar, o maior dos
ventres do mundo. E este mar é vida em profusão.
É só vida, o mar, porque os afogados e os mortos de terra, nas
águas profundas, transformam-se nos mais diversos seres. São
crustáceos, baleias, ostras, algas. E eu, que me associo a todos os
seres do mundo, vivos e mortos, por ter o mar dissolvido no sangue
das veias, sinto a falta desta vida potente e azul, e as coisas da
minha casa sentem-na também.
Falta o mar neste chão, em mim, nesta página. E por isso li Ode
Marítima: porque na mesa, entre Camões e Pessoa, entre Drummond
e Cabral, entre os milhares de riachos feitos de letras impressas que
seguem para o mar da linguagem, este berço dos mortos, se eu fechar
apertado os olhos, vejo o paquete entrando à baía, ouço os
cargueiros que levam e trazem o mundo, sinto o cheiro do Atlântico
que um dia foi a rotina das minhas narinas.
Saudade das terras capixabas, é?
ResponderExcluirImaginei que um dia esse sentimento bateria a sua porta e invadiria a sua casa e vejo que agora o fez...
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