domingo, 29 de junho de 2014

Do mundo das pequenas coisas

O mundo das pequenas coisas é muito grande e muito pequeno. Tem cores - e é bonito ver, de novo, as cores, seu encantamento - , é calmo e lento e tem com o tempo outro contato. É de momentos longos de longos silêncios e dos carinhos cotidianos das pessoas.

O mundo das pequenas coisas é feito de contato. Tem menos internet, menos telefone e se preenche com as peles que as pessoas expõem na rua, no trânsito, nos apartamentos mobilhados que dão de frente para a minha janela. É feito dos sons das madrugadas (porque nesse falso silêncio, nessa falsa calma, há pesadelos, contas a pagar, sonhos cheios de adultério, mensagens em segredo com o amante escondido, o grito de briga de um casal bêbado que estava bêbado de alegria e dorme bêbado de raiva). As ressacas dos outros na manhã de quarta, na vida em suspensão que esse tempo de Copa e futebol imprimiu em todos na cidade.

É estranho porque há muito não ficava tão profundamente ligado ao mundo das pequenas coisas, onde tudo é importante. Quando desligo o telefone - nas poucas vezes que o uso - fico minutos em silêncio. Minutos que se tornam horas, dias. Tudo isso, sempre, minutos. Um emudecimento que se preenche de sons de seres vivos - um cão que late no apartamento fechado, a conversa sobre a troca do piso do banheiro do vizinho, os amores adolescentes cantados em um violão que ainda nem conhece os demais acordes dissonantes, as meninas que se reúnem e suas vozes que saltam das janelas, elas organizando passeatas, manifestações e sonhos de mudança.

Nas pequenas coisas tudo muda constantemente. São várias tomadas daqueles filmes cheios de silêncio, onde o prato sobre a mesa fica minutos intermináveis na tela, a chama do cigarro demora a apagar e ficamos horas hipnotizados na fumaça. Enquanto a cena é lenta e em decomposição, as imagens das casas que morei reaparecem sobrepostas às imagens que lembram imagens de cinema lento, estão na memória, meus rostos são revisitados. Tantas posturas e mortos!

É dos mortos o mundo das pequenas coisas. Nele os mortos conversam, falam do que não aconteceu. Eu, que disse ter dito e não disse tudo, porque nunca se diz tudo. E os mortos ouvem as frases repetidas (e o quanto não disse para eles de efetivamente produtivo, de verdadeiro!). Os mortos estão nas fotografias impressas, nas do computador, no que apaguei e no que guardei deles na memória. As pessoas cristalizadas, sem mais mudanças, que não sei mais se reconheceria se passassem por mim nas ruas. E não saem disso, desses mortos, nem lágrimas, nem versos.

Mortas também estão as casas da memória, reformadas, recoloridas, preenchidas de outras almas e com outra vida, guardando outras histórias. E tento me ver (eu que também já estou morto, de certo, para aquele tempo daquelas casas) ali recolocado, reposto. Nada mais tem encaixe certo, mesmo que a gente force a peça para entrar no quadrado.

Busquei vozes amigas e encontrei, nas pequenas coisas, pessoas que estão no mesmo instante. Está lá a Vá, do outro lado da invisível linha, na mesma introspecção do mundo das pequenas coisas. E ela confessou belezas, como o pedalar para pôr em movimento o coração. Fiquei pensando: o que faço eu, nesse meu mundo de pequenas coisas, para acelerar o coração, se ainda não pedalo como ela? Aprendo música?

E sim, aprendo música. Comprei uma viola, suas histórias e os sonhos que ela carrega. Ela me disse, nesse mundo das pequenas coisas - porque nele, as coisas também falam conosco - que eu ando necessitado de poeira de estrada. De poeira e sertão, para ouvir histórias de pactários, ponteios sertanejos e palavras roseanas, aquela minha adiada viagem para às margens do Chico, para seguir até o liso do sussuarão. Ou estou eu, nesse mundo das pequenas coisas, no meu liso do sussuarão, desértico, metafórico, poético, cheio de histórias de pactários e de seus instrumentos? A viola preenche o espaço, começou a construir uma ponte entre o mundo das pequenas coisas e o das grandes sensações. Uma ponte que, na verdade, nunca será usada, porque a viola viajará comigo na estreita canoa entre as duas margens dessa história.

Sentado, na margem de cá, nas pequenas coisas, no quarto de infância com o telefone na mão, em silêncio diante da indiferença dele desligado, frio, esse objeto de plástico de onde me chegam vozes do além, do aquém, das partes do mundo, ali, mudo, pôs um quadro claro, pintando só em branco azulado as cores de tudo o que aconteceu. Nas pequenas coisas, está o branco azulado, aquele silêncio branco-azulado da indiferença. O que pensar, no mundo das pequenas coisas, sobre a solidão-branco-azulada?

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Da vida em tese

Nos últimos poucos encontros que pude ter com amigos que há muito não via, a resposta às perguntas corriqueiras de "como vai a vida" ou "como tem passado" são dadas com uma frase que acho, sempre que digo, bem curiosa: "minha vida vai em tese". Em dois sentidos bem específicos. O primeiro, o do andamento do trabalho de pesquisa, suas demandas de horas de leitura e escrita diárias, dos poemas que releio constantemente, a confirmar as fontes dos textos, suas fixações, suas edições. O contato diário com o que, de fato, é o trabalho, creio, de todo pesquisador: o entre.

E a tese põe tudo em tese, em seu sentido de abstração e de incerteza. Em tese, tudo acontece. Mas nada acontece de fato porque a vida, a vida de verdade, que pede atenção nas louças, nas roupas por lavar, na casa por arrumar, não é em tese. Os planos, as vontades de viagem, o sentir, não podem e não devem estar em tese. Mas, os espaços do meu dia, até há muito pouco, eram um tedioso estar em tese, e cansei de estar em tese.

Há uma busca por novidades, por vida de fato, cheia de detalhes e de presenças, de carinhos compartilhados. A ida ao supermercado, o andar de ônibus, a vida das pequenas coisas do cotidiano só passíveis de serem vivenciadas quando não se está em tese - como o aperto de mão, o abraço, o sorriso afetuoso de quem está nas ruas, de quem amamos, com suas vidas nada em tese, acontecendo no trânsito que é a permanência no existir.

Na busca por esse trânsito fora das teses, resoluções importantes, fora dos poemas que me dizem da vida. A experiência de sentir o mundo real sem tese, na música, no que ele oferta de dança e de preguiça; no que o tempo oferta de possibilidade aos olhos; no meu eterno interesse curioso pelo mundo, pelas pessoas, como a constante vontade de viver cada ano em um lugar distinto.

Para a tese, o tempo que é dela, sem medidas. Para o além-tese, vida de verdade, feita de café com pão, de arte de todo tipo (sobretudo de muita música), de cinema de fim de tarde, de caminhar na praça: de dividir, de verdade, a vida com quem pretende ter vida a receber.

E, por início e fim, é na música que busco a saída: "eu já tô com o pé nessa estrada/ qualquer dia a gente se vê".

quarta-feira, 11 de junho de 2014

sexta-feira, 2 de maio de 2014

vide o verso

eu busquei o verso que solucionasse. virei-o de ponta, do avesso. em vão. as escolhas, sobretudo as que não cabe a nós tomar, não se solucionam ou se fazem no verso. o verso abraça essas escolhas, envolve-as, sem solucioná-las. o verso complica sempre muito mais. é quando ele complica que eu posso me ver de novo ao espelho. e me sentir bem porque me revejo, enfim, desguarnecido de escolhas, solto. limpo de tantas colagens que ao meu rosto foram feitas, carregadas de expectativas - como quem cola cartazes na parede de um quarto. meu rosto, essa parede cheia de rachaduras, ou só as rachaduras para além das paredes, ou só o além das rachaduras, aos poucos reaparece. e outros versos surgem, maiores: "não sou nada", "nada me prende a nada", "minha matéria é o nada". quem sabe, só agora, a palavra esteja retirando-me da suspensão, porque, só agora, posso vislumbrar o caminho, refeito, que abandonei. e a escolha? é em vão, sempre foi. como a porta a que não cruzaram. para que, no fundo, abri-la, ela que dava para uma parede só rachaduras?

segunda-feira, 28 de abril de 2014

retratos populares - parte II

...em um bar da rua ceará eu encontrei o choro, um cardápio que era um LP e duas fotos da Dalva que acho lindas. fui ao conservatório ouvir a um recital de uma pianista russa interpretando Rachmaninoff. fui ao cinema duas vezes numa mesma semana ver filmes razoáveis e encontrei um belo livro de poemas de Ondjaki, autor que eu conhecia só da prosa, e fiquei tentado com o livro de Valter Hugo Mãe, o já famoso "Máquina de fazer espanhóis" e o novo que será lançado essa semana no Brasil. estou me ajeitando para ir ao cinema ver ao Woody Allen em um filme que não é dele, nem por ele dirigido - e é tão raro ver o Woody Allen atuando em filmes de outras pessoas, soa estranho tanto quanto ver o Tarantino em película que não a dele. "Abraçaço" do Caetano é realmente muito bom, um disco e tanto, e o primeiro do Pó de ser emoriô também é, cheio de uma musicalidade nova, um trabalho gostoso e bonito de ouvir e de passar essas últimas tardes. as últimas tardes que se despedaçam nesse bonito sol de outono, aqui, numa manhã um pouco fria, sabendo que a dois quarteirões a vida pulsa indomada nos ônibus, nos restaurantes que se preparam para a hora do almoço, nas loterias, dentro de algum livro cheio de idas e vindas, cheio de escolhas. é preciso fazer escolhas, sempre, como a de dobrar uma esquina.

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Memórias do blog: Abril - Amizade de cozinha


Abrindo a série “Memórias do blog”, apresentamos "Amizade de cozinha", um dos textos mais comentados pelos leitores. Foi escrito em virtude de um encontro que tive com amigos em 2010, em Mariana, cidade que ainda ocupa um lugar especial no meu coração (bem menor hoje, depois dos últimos momentos que vivi lá, seguramente). Porém, meus amigos (os que lá vi na ocasião e os demais, que juntamente com esses, há muito não vejo), sim sempre serão mais que especiais.

“Amizade de cozinha” foi e ainda é, sem dúvida, um dos textos que os leitores mais se identificam, fazendo a ele loas de todas as espécies. Por conta deste, inclusive, recebi um convite de montar um livro de fotografias e histórias de cozinhas que, ainda, não saiu do papel. O estranho é que, mesmo sendo o texto que os leitores e amigos mais comentam comigo, ocupa o sétimo lugar na lista dos mais visitados. Creio que por uma questão simples: alguns dos outros apresentam em seus títulos termos que caem facilmente nas teias de pesquisa do Google, o que acaba favorecendo a um texto aqui e acolá, e desfavorece este em especial.

É estranho pensar na amizade de que trata o texto no dia em que estou indo ver outras cozinhas de quem sou amigo. Além disso, abril é um mês importante para mim nesse sentido, porque é quando geralmente posso comemorar com velhos conhecidos minhas amizades, nem que seja num breve oi ao telefone.

Como este é o primeiro da série, e será um por mês, (sempre na semana do dia 10, como disse na nota sobre a retomada da periodicidade), a título de explicação, apresentarei sempre os primeiros parágrafos do texto e o link que direcionará o leitor a ele. Assim, o leitor pode conferirr por ele mesmo o que comentaram as pessoas ao longo do tempo.

Com vocês, então, “Amizade de cozinha”, publicado em 16 de setembro de 2010.

“Nascer em Minas é saber que as amizades mais íntimas são à cozinha da sua casa.

Ninguém é tão seu amigo se não for ‛da cozinha da casa da sua mãe’, ‛da cozinha lá de casa’. O lugar, então, é mais que o lugar da fome e das panelas. É onde o mineiro passa seu maior tempo. Nas cozinhas de Minas se discute política, economia, futebol, religião. Foi de uma cozinha nas vertentes que a Inconfidência saiu.

Mais que um cômodo, as cozinhas de Minas guardam as histórias de gerações, guardam a fome do período do ouro, os adultérios, os divórcios. [...]”

Para conferir o texto na íntegra, clique em

http://desdequeosambaesamba.blogspot.com.br/2010/09/amizade-de-cozinha.html

quinta-feira, 3 de abril de 2014

A volta da periodicidade

Desde que o samba é samba retoma, a partir desta semana, sua periodicidade, em comemoração aos 5 anos que este blog completará no dia 10 de outubro.

Além de textos semanais, selecionarei, ao longo dos meses, os sete textos mais visualizados ao longo destes cinco anos. Assim, o leitor poderá rever alguns dos mais lidos (e nem sempre re-lidos) textos aqui publicados. 

Os textos da série "Memórias do Blog" serão publicados na semana do dia 10 de cada mês até outubro, sempre com algum comentário meu a respeito do que ouvi e li desses textos, do que me disseram leitores, amigos e leitores-amigos.

Então, obrigado leitores pelas quase 30.000 visitas que o Desde que o samba é samba teve nesses últimos anos e que, nos meses seguintes, possamos nos divertir e compartilhar mais alegrias, indignações e indagações.