domingo, 12 de janeiro de 2020

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Algumas coisas que eu diria a um (a) (e) (x) filho (a) (e) (x), caso tivesse:


. Você é o limite de si mesmo. Tenha consciência de si e de seus limites.
. Trabalhe o suficiente para ter uma vida digna. O dinheiro em excesso escraviza e cobrará um preço alto no futuro. O dinheiro escasso escraviza e cobrará um preço alto no futuro.
. Você morrerá. Como todo mundo.
. Tudo o que você tem ficará aqui depois que você morrer. Use as coisas pensando que o outro também poderá usar um dia.
 . Aprenda quantos idiomas quiser, não porque será bom para o mercado de trabalho, mas porque é importante conhecer outras culturas e, principalmente, o outro.
. Lute por justiça e por igualdade social sempre. Entenda que a caridade é necessária, mas que precisa ser transitória. A manutenção da caridade infinita implica na manutenção da desigualdade.
. Viaje. Sempre. Muito. Para e nos lugares, nos vinhos, nas poesias, nas palavras das pessoas.
. Viajar é estar-com. Esteja-com de forma a ter memórias, não fotografias.
. Aprenda com os animais o que é amar gratuitamente.
. Dance, sempre que puder.
. Seja sempre antifascista, antirracista, antimachista, anti-homofóbico.
. Saber cozinhar, cuidar de uma casa e de si sem precisar de ninguém é o maior gesto de liberdade.
. Dê presentes, em especial poemas escritos à mão, flores colhidas na rua, dobraduras de papel, abraços. Dê presentes que não precisem de dinheiro, mas que presentifiquem seu sentimento pela pessoa.
. Estude sempre com humildade. Você não sabe tudo e nunca saberá.
. Todos os saberes são importantes. Quando ouvir alguém dizer que um saber é inferior, desconfie das intenções dessa pessoa.
. Todas as perguntas são importantes.
. Respeite a dúvida, preste atenção ao óbvio, pense o clichê além do clichê.
. Entenda que em muitos casos a ignorância é um projeto. Pessoas são, muitas vezes ignorantizadas. Tente, com cuidado, sempre que possível, tirá-las de lá.
     . Ser alfabetizado é importante, mas não faz de você melhor que o analfabeto.
. Leia: livros, pessoas, situações, contextos, conjunturas, maneiras de vestir e de portar-se. Leia.
. Seja elegante. A elegância maior é a simplicidade.
. Simples não é o mesmo que fácil.
. O fácil nem sempre é ruim. É preciso sempre julgar o fácil de forma ética.
. Seja ético.
. Tenha prudência, paciência e tolerância, mas não seja resiliente. Lute para transformar as coisas que estão erradas no mundo. O que não falta é luta.
. Diga sempre eu te amo sempre que sentir vontade. As pessoas esquecem.
. Sempre que puder ser coletivo, seja. A coletividade é um direito humano. Lute pela coletividade.
. Diga sempre ao outro o quanto ele é importante para você.
. Lembre-se: você é o outro do outro.
. Olhe pro céu, sempre. A qualquer momento. O céu é o absoluto, o tempo, o espaço, a cor e o cosmos. O céu ensina o tempo.
. Viva ao máximo o hoje, sem antecipar o amanhã.
. Ande de moto, mesmo que seja perigoso. É preciso correr riscos na vida.
. A vida não é uma aposta. A vida não é um jogo. A vida não é um negócio. 
. Curta sempre cada etapa de tudo o que fizer. Aí está o segredo do seguir.
. Para todas as dores da alma, leia Fernando Pessoa. Três vezes ao dia, se preciso.
. Medique-se também com arte e literatura.
. Aprenda música.
. Cuide de saber odores, experimente ao máximo o tato e o paladar. Ouça sempre muito. Preste atenção em tudo. Cinco sentidos é coisa para caramba para apreender e usar.
. Não há inferno. Não seja bom com medo de ir para lá. Seja bom porque isso é o certo a fazer.
. Durma, cuide do sono e tente lembrar dos sonhos. Preste atenção neles.
. Ame-se e ame. Sempre. Muito. De todas as formas que você desejar.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

elegia


das marcas do hoje
esse sal

o chão onde colhi margaridas
um dia
é seco chão de piso duro
e venta por sobre o passado

o passado
- seu sal -
tempero antigo com que salgo porcos
tempero antigo com que faço unguentos
no meio do dia partido em quatro
no quarto partido em dois
no teto que abrigou o fim

das marcas do hoje
esse velório inacabável
esse réquiem infinito sem abraço
a noite profunda em que me banho no escuro

do passado
alguma lembrança do sol
o adiar perpétuo
do completo sem que define o dia
como se à aurora
nada fosse possível
com o mar multicor à praia

o hoje de chão e sal

como saber
se no fim está densa fumaça que a tudo opaca
e o sorriso que boia na noite
e a valsa vazia dos dias
e o samba a sós no canto do quarto
é o que tem no dia
seu almoço complacente de nãos e depois

nãos e depois
- uma vida -
a idade madura e seus ossos que rangem
a idade madura de um poema antigo
o amor que se desacredita
e que escapa
opaco
no fundo de um som possível de nós

os nós de depois
seus ossos em chamas aos deuses
amanhã – esse inexistente mistério que me carrega de fins
amanhã – essa aurora e a promessa

aqui os cacos do que ainda brilha
os cacos dos copos que joguei ao chão de raiva
os cacos de mim nos copos
os dedos partidos de agonia

fonte de eterno frio
naquele poema antigo
uma elegia
a longa elegia do fim que não inaugura nada
nada cria
nada cuida

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O tempo mão


De repente a mão se abre e solta. É simples como dar um passo. Abre a mão e solta. Quando solta, um mundo de possibilidades se abre. A mão, que carregou inútil peso por longo tempo, está livre para novos tatos e novos contatos. Não aguenta mais as bolhas que as coisas lhe causaram, as dores da importância ao inútil, as dores suportáveis e diárias das pequenas ofensas e dos pequenos deixares-de-lado. A mão que sustentou o mundo, equilibrou pratos, fez afagos e vibrou fechada de ódio, sem revidar. A mão que concentrou o medo e quis esconder o rosto, que mostrou-se torta e, por ser torta, foi chamada de louca. De repente, a mão solta tudo isso e livre, alisa outra face.
A nova face que a mão alisa, livre da carga carregada, é o hoje. Está a face leve sem marcas do passado. Na nova face, todas as possibilidades, outras, sem caminhos, espinhos e dores velhas e gastas, já exaustas antes de saírem da cama. A nova face, calma, é um sorriso de companhia. Um sorriso de café com torradas à tarde, de range-rede abraçado de sábado. É a possibilidade de passeio no parque da cidade, de pedras lançadas ao lago, de lenços de partidas e abraços de chegada cada vez mais raros porque não há distância, de horas de silêncio compartilhado mirando o céu pela janela.
A mão, de repente, solta. E vê a tranquilidade da meia idade num embrulho de um livro ao pé da porta. O hoje é um livro embrulhado ao pé da porta. Uma carta que chega, a resposta das milhares de cartas enviadas sem resposta. Uma carta-bilhete, com perfume e letras corridas, mas real e de papel. Comum para além dos boletos. O embrulho na porta, o livro, e tudo o que ele contém de fúria e de sorriso, de improviso no hoje. Um livro que não precisa de estrada, que não é viciado de riscos, que não corta os dedos nas pontas. Um livro, um simples livro para se ler, no hoje, o afago da tarde.

domingo, 13 de outubro de 2019

A consciência do fim


À medida que a vida passa, eu fico cada vez mais lento. É uma força bruta em mim. E os dias cada vez mais rápidos. Eu demoro duas vezes mais do que demorava para me arrumar para ir ao trabalho. Demoro duas vezes mais para comer ou para tomar banho. Mesmo que eu acorde nos mesmos horários e repita meticulosamente os rituais diários que repito. Como me mudei muitas vezes de casa, tinha em mente uma velocidade prática de mudança que hoje é só uma teoria. A última vez que me mudei demorou mais do que qualquer outra, tomou-me três longos meses de preparação, o que antes se resolveria em vinte dias.
Estou mais lento para pensar. Demoro mais a chegar a conclusões. Não porque o raciocínio está mais lento. Mas porque há mais elementos a se considerar. Elementos que não considerava antes, que não dava importância, que não sabia ou não conhecia. E todas as vezes que o cérebro dá sinais de lentidão, troco algo na alimentação, mudo uma rotina – aumento um pouco as horas de sono, evito as redes sociais (esses lugares de dispersão), concentro-me mais nos livros, mudo rotinas. Porque o cérebro é o que eu tenho de mais precioso e do qual mais dependo. E ele fica, como todo o corpo, mais lento.
Quanto mais lento eu fico, mais rápido o tempo passa. Ontem era maio e eu estava me preparando para um concurso, dias depois meu pai faleceu. Ontem era 2015 e eu defendia o meu doutorado. Foi ontem que entrei na Universidade, e esse ontem já bate a casa dos vinte anos no ano que vem. Tudo ontem. Para mim, 1970 ainda dista de mim vinte anos, e não o ano 2000. E eu tenho ficado lento para acompanhar o crescimento dos filhos dos meus amigos, as idades dos meus amigos, seus movimentos de vida. Lento para ler editais e textos, lento num tempo cada vez mais rápido, em que tudo ao meu redor apita – a geladeira se fica muito tempo aberta; os carros em que ando se não fecho bem a porta e se não coloco o cinto de segurança; os caminhões que dão ré na rua, o telefone, esse aparelho maldito que precisa me avisar que há uma nova foto, uma nova mensagem que nunca é urgente de fato, mas que todos consideram assim.
O mundo tem pressa, e eu não tenho. Agora, querem que eu me acelere para acompanhá-los e eu penso: como me acelerar se ainda tenho tantos livros a ler e sei que não dará mais tempo de ler todos? Como me acelerar se ainda não li A montanha mágica nem Proust, e preciso deles com urgência, mas há um relatório, uma minuta, um edital, um post no Facebook, o último e novíssimo livro de Richard Sennett, o último disco do Gil, o último show de Elza Soares, os movimentos na prisão do Lula e as sandices do Presidente que Governa a Prefeitura Brasil? E eu, lento para isso tudo, que ainda preciso de horas para fumar meu cachimbo na poltrona enquanto leio revistas impressas, que sei que meu cachimbo novo vai demorar vinte anos para chegar no ponto ideal, amaciado lentamente dia a dia. Como acompanhar a tudo isso sem entrar em pânico ou sem me sentir deixado para trás?
Dentro disso chega a noção de fim. Acabará, tudo. Porque a morte é um fato e é de repente. Não se sabe quando vem e se me levará a razão antes de chegar. Se eu ainda estarei vivo quando outro sistema econômico posterior ao capitalismo vier, um sistema mais cruel e violento que poderá acabar com toda e qualquer forma de emprego e deixar milhões na miséria (porque eu não sou otimista de que o capitalismo vai morrer no florescer da economia colaborativa), nesse mundo cada vez mais imbecilizado pelas mídias digitais que desprezam livros e impressos com a desculpa que se deve poupar o mundo dos papéis (mas não dos panfletos de loja e dos santinhos de políticos que inundam e imundam as ruas das cidades).
Tudo acabará e é um exercício lento de aceitação de que é preciso priorizar. O tempo não pode ser desperdiçado com coisas ruins. Não a maior parte do nosso tempo. É preciso priorizar o afeto, o estar-com. Como diria Heidegger, ocupar-se do tempo de forma própria, sem se preocupar com as atualizações, com o que vem depois. Ocupar-se do agora e vivê-lo, porque só ele restará, por fim. Essa dinâmica importante que me traz a idade. Eu, lento, tento depurá-la. Ainda não a alcancei. Mas é um exercício diário até o porvir.
Por isso, ficarei nos livros. Neles, entendendo que todos, Adorno, Heidegger, Kant, Schiller, Homero, Drummond, Pessoa, Shakespeare, todos morreram sem ler tudo o que queriam ler. Os livros carregam os mortos e alguns que estarão mortos um dia. Mas neles sei que é preciso ficar. Porque eles me ensinam que para escrever, para pensar, é preciso tempo. Tempo que não nos dão mais, com o trabalho nos acordando na madrugada em apitos de telefones, urgências nas horas em que tudo está fechado, menos os bares. A Universidade ainda não é uma drogaria vinte e quatro horas, e eu não preciso estar a postos como um balconista de plantão. Vou me dar o tempo, o silêncio e a ausência das redes no priorizar os livros. Porque eu vou morrer um dia, e não quero passar a vida entre documentos formais e relatórios. Sinto muito por quem quer viver assim.

sábado, 28 de setembro de 2019

Amor listrado em preto e branco


Atlético: eu, você e esse sofrimento intermitente. Não é amor cheio de paz e tranquilidade. É amor cheio de dor e lágrima, cheio de sofrimento doentio e de alegria arrebatadora. Perversidade que me prende a você. Intenso amor, cheio de grito.
Amor listrado em preto: essa face obscura de todos nós. Na listra preta, nossas profundezas e recolhimentos. Você nos põe em contato com o que há de verdade em nós. Os lugares da alma em que você nos lança há mais de um século, nesse movimento estranho de existir para nos mostrar a razão limite, até onde podemos levar a dor e o viver, o pensar e o resistir. Até onde suportar? Como sobreviver a isso?
Amor listrado em branco: a noção de claridade ilusória a que essa dor obscura nos leva. A claridade de entender a luz, de ser arrebatado da dor. Porque você nos arrebata da dor de todo dia: do ônibus lotado, do salário atrasado, do aumento do aluguel, do preço do feijão. Você nos tira dessa dor diária de viver ao surgir nos noventa minutos em que existe em ação, ali, no centro do espetáculo mundo, o futebol. E não há atleticano que suporte viver sem esses noventa minutos em que você nos traz de volta uma esperança branca e preta, algo difícil de perceber.
Amor listrado em ambivalências: as duas cores do luto. As duas cores do noivado. As duas cores da festa. Há culturas que o branco é o símbolo do morrer, como o preto na nossa. Há culturas em que as noivas vestem preto, como na nossa vestem branco. Nas duas bodas que nos cercam, os elementos vitais do festejo e do desenlace, suas cores. As cores dos antigos pretos velhos, das antigas pretas velhas. As guias preto e brancas da ancestralidade negra de seus torcedores na cura e na doença de amar você, Atlético. Nas cores de Obaluaê, o Orixá da terra, da cura e da doença. O peso de carregar as cores de um deus.
Amor listrado e seus limites: um preto e um branco. Cada listra, um limite. Como transpor os limites do existir? Como viver os limites do amar? Como absorver os limites do pertencer a você, nossa pátria e nação, nosso lar e templo, nosso lugar de aceitação dos erros e dos acertos? Você nos prova sempre que perdoar é um ato de amor, porque sempre o perdoamos, mesmo depois da maior agonia. Você nos mostra que é preciso transpor o limite para o perdoar e o amar. Porque você carrega em si a ambivalência do existir.
Amor sem consenso: não há meio termo. Ou se sofre ou se é feliz. É quente, nada de morno. Talvez a única relação imutável, vermelha como a histórica camisa dos goleiros, como as cores dos números. Um galo de briga de olhos vermelhos. Um galo do povo que briga contra tudo e todos na esperança de vencer. E como o povo, perde mais do que ganha e suporta, e almeja a vitória, tem fé no futuro. E então o povo o ama, porque amanhã é outro dia e você existirá nele, no outro dia, lutando até o último suor do seu rosto que sobra na gola da camisa.
Amor sem vaidade: de todos, com todos. Amor sem veleidades: popular e honesto. Do povo. Sempre do povo. A alegria maior do povo porque repete a dor do povo, seu sofrer. Você lembra a quem não sabe o que é sofrer o sofrimento do povo: nas fábricas, nas lotações, no trabalho diário, no peso das sacarias nas costas. O povo entende de sofrimento, por isso o povo o entende, Atlético. Porque o povo sabe a dificuldade do pão e do cigarro, do feijão e da cachaça. E por isso, sabe o sabor da festa que você provoca na semana. O povo, só o povo o entende e o abraça, Atlético. Porque você não é só querido pelos seus. É amado. E os seus não têm por você essa vaidade barata. Têm orgulho de você. Como de um filho ou de uma filha que consegue vencer a dor diária, como a vitória da família vizinha que enfim saiu do aluguel, como o conseguir realizar um difícil sonho nessa selva que é o viver.
Um galo de briga de olhos vermelhos. Com sede de vitória que se levanta todos os dias às cinco da manhã para auxiliar no acordar das cidades. Como o povo que desperta antes de todos para pôr a cidade em movimento: dirigindo ônibus, fazendo pão, vendendo hortaliça, carregando caminhão, limpando rua, indo para o trabalho nas fábricas. Você é o partido do povo: seu representante e seu delírio.
Amor listrado em preto e branco. Amor limite do dia. Esse lembrar o sofre que você não se furta. A você, Atlético, meu delírio e alegria, minha dor e desamparo. Sempre.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

o sabor do sal - parte I


para ana

o amor, seus contratos e o que há mais, no que cabe de mais. o amor feito um guindaste, gigante e profundo como um precipício. onde, o amor, então? como segurá-lo entre as mãos sem que ele caia nessa via que segue serpenteando a montanha, com forte vento por trás, que nos carrega a alma seca de vertigens e velha como os dias das eras, antigas como o início dos tempos, mas hoje na ocupação diurna? como saber o amor, vivê-lo e condensá-lo num verso que seja capaz de exprimir com clareza além das letras de um nome, além das formas comuns, das pequenas coisas do dia? onde o amor está perdido e encontrado, raptado de seus ais sem muitos lances, onde cabe na verdade esse desvelo e meu jeito, onde durmo pesado? onde o amor me recupera das velhas feridas, dos tropeços e desenganos, desse mentir repetido a mim que em mim de fato pensava que cabia, e que não cabe, mas que punge na força dos dedos na noite, nas dores dos músculos da testa quando esvai a dor pelos poros, onde os atos e seus resultados se colocam empatados e não estamos mais no caminho da dúvida? como abrir mão do que se pensou e ouviu, seguindo uma velha lição, para chegar, no fim, na gema densa, essa joia dura de carbono e sal? enquanto o sal tiver sabor de sal. enquanto esse enfim se materializa?