terça-feira, 7 de junho de 2016


É preciso me abrigar da chuva do frio e das marés. Mas não há chuva ou frio e as marés estão distantes. Mas há o passar das marés, seus distúrbios soltos e mórbidos, os navios ante o cais. É preciso me abrigar do sol e do vento, mas o sol é sempre e o vento um nem quase, onde tudo que há é poeira e tempo, esse jeito de abrir um maço esquecido de cigarros. O bolso vazio na calça velha, a praça, além. Além o que existe de sabores de além, onde o destino agora em caixas vazias de qualquer coisa hoje inútil. Mas é preciso o abrigo do vento e da chuva, o chapéu ao sol de quarta-feira.
      Quarta-feira, dia de ângulos. Porque às quartas-feiras chove uma chuva fina no sem-onde, mas não aqui neste sol de tarde quente. O azul, por fim esquecido. Mas me lembro. Lembro que gostava daquele abrigo da chuva, da marquise curta. Lembro, mas é uma lembrança quase opaca, era outro (e não eu) debaixo da marquise curta, abrigando-me desse outro que hoje está aqui sob o sol. Lembro-me que já sorri desses barulhos naquela marquise. Sorri sim, verdadeiramente. E hoje é a lembrança opaca daquilo, meio sem gosto, como um pão velho que aos poucos mofa.
É preciso me abrigar do mofo da umidade e dos ratos. Mas aqui não há umidade nem mofo e os ratos, poucos, os cães expulsam aos latidos violentos ou os gatos caçam. Mas lembro-me de mofo e ratos e umidade como me lembro das marquises apertadas, do abrigo. Tudo longe, quase esquecido, foto que desbota e que quando olho é um outro eu tão distante que hoje nem parece ter existido de fato. Inventado de um sonho, mas possível de comprovação nos documentos oficiais que carrego. Documentos que o fisco e o governo controlam, hoje onde tudo é controlado e ruim.
Lembro-me que não havia o controle e o hoje era um vislumbre em espelho de banheiro, bêbado, às quatro da madrugada. O hoje era a tarde de sol cinza debaixo de uma laranjeira ceca no meio de um quintal com musgos. O hoje era uma porta azul com aldrava preta frente a uma escada de pedras onde um velho, repetidas vezes, raspava ervas daninhas. O hoje era preciso. E era preciso saber o hoje que não vislumbrava. Um hoje distante e que hoje é pouco importante, bem diverso. Mas era o hoje que eu tinha, de que me lembro. O hoje que era só um vislumbre na marquise, aquele abrigo, cheio de umidade de um moletom empapado de chuva, que cheirava a guardado como cheiravam as calças e os sapatos. Como cheiravam os ombros dos amigos, misturados aos perfumes do possível entre cheiros de sabão e amaciante.
É preciso guardar os livros, cuidar deles e alimentá-los. Mas hoje os livros nutridos se formam nas estantes coloridas, sem tanta urgência de abrigo, mais lido e tratados como coisas. Instrumentos como furadeira, chave de fenda ou uma colher de cozinha. Livros sem mais a mistificação de livro, sem mais a coisa perdida, esse mistério absorto onde não sei de muita certeza e onde perdi qualquer verdade. Mas me lembro daqueles livros imantados e verticais, nas estantes, cheios de sonhos para aquele hoje vislumbrado e seco. Aquele hoje que nem entendo da memória, do cheiro velho das coisas velhas que hoje já não têm mais qualquer sentido, mas que existem aqui desfiguradas, quebradas e recolhidas.
É preciso organizar os móveis e a casa, arrumar a cama todo dia. Lembro-me que era preciso o vinco dos lençóis no centro do colchão velho. Um lençol com flores alaranjadas de trinta anos, desbotadas de trinta anos, velhas por fim em tudo e em mim também, mas hoje são flores de que me lembro e do vinco, mas não da obrigação de arrumar e organizar. As coisas sobem sobre as coisas e naquele hoje vislumbrado as coisas seriam organizadas e corretas. As coisas teriam seus momentos úteis. Hoje, só coisas.
Naquele antigo ontem onde lembro o pouco e distante, havia a certeza de amor. Havia amor, eu me lembro. Era palpável como um travesseiro, um chumaço de algodão. Mas é tão distante e esquecido que nem sei mais que gosto tem, se tem gosto, se era palpável. Está distante como o abrigo debaixo da marquise, como a chuva que caía, como o que se via além da porta azul de aldrava preta, para cima da laranjeira seca e do quintal com musgo. Para além das flores laranja desbotadas do lençol, seu vinco. Para além. Eu não me lembro mais do que existia para além.

sexta-feira, 3 de junho de 2016


a calma do rio, seu passar. as noites longas onde tudo é árvore, nuvens pesadas e estrelas. o som do tempo nas coisas, os espinhos e o que de mar tem ainda nos poros. onde o passar? onde esse tempo grosso? nas coisas esquecidas do dia, ao sol, essas frutas pelo chão e o quintal que se limpa de folhas de limão, o muro caiado que me mira, sem cercar de fato o que tem. os novos verbos nunca usados, cheios, carregados e pesados, de sabores de cajá, um fardo de cana nos carros de boi que cortam as estradas, as memórias dos vapores e das balsas. o silêncio do rio majestoso e pleno, de águas sagradas onde os jacarés se banham. banhar-me de tempo nesse acaso de nome palavra que pulsa comendo a memória de meus medos e a forma de minhas palavras. há estrada, há cais. onde o cais?

terça-feira, 3 de maio de 2016

de onde eu vim

de onde vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos. de onde eu vim, mata-se por qualquer motivo, por uma pichação, por nem isso, por estar acompanhado, estando acompanhado, de dia, de noite, de madrugada. mata-se com regularidade semanal. sem a palavra. de onde eu vim, implanta-se a culpa onde nada há e prende-se por decreto, por desacato. os tempos sombrios e os becos, lá, nunca sumiram. aumentaram os becos, quiseram iluminá-los, derrubaram casas e mais casas, desalojaram rapidamente muita gente pela urbanidade. em vão. lá de onde eu vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos. e há paz combinada que de tempos em tempos acaba. há paz para que milhares de trabalhadores e trabalhadoras saiam ainda pelas ruas na madrugada. rompida a paz, há horas de recolher, horas para sair, e silêncio nos ônibus, nos sacolões, nas padarias, nos bares. há botas e fardas que cercam e prendem. matam por muito menos. matam dos dois lados, como matavam antes. lá, o direito é um susto e uma camisa a mortalha. lá, de onde eu vim, é o troca-tiro e as torturas, dos dois lados, é um sofá em chamas em barricada no meio da madrugada, velha murada, é ônibus incendiado e corpos como em poucos lugares do planeta. de onde eu vim, ainda se está muito longe do estado de direito. e o pouco estado de direito que lá chegou, se é que chegou de fato, pode voltar a sumir. porque de onde eu vim, falar é quase um crime e mata-se por muito menos.

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Luta




Escrevi o poema acima no meio da graduação. Ele foi escrito muitas vezes, em apostilas, textos, etc. Hoje o reencontrei, ainda à mão. O poema esperou o dia de hoje para ganhar as cores. Esperou o dia de hoje para chegar neste formato. Ficou guardado numa cópia de um livro de um autor russo esperando o momento do salto.

Na época que o escrevi estava envolvido com o movimento estudantil. Se não me falha a memória, foi um poema escrito quando apoiava e fazia campanha para uma chapa de DCE encabeçada por amigos dos cursos do ICHS-UFOP, chapa que ganhou uma quente eleição e que levava a palavra luta em seu nome. No calor daquela eleição só pensava nos sete degraus da luta por que passávamos. Naquele momento, a luta era feroz - por votos, por discussões, por lugares de debates, por mudanças das posturas da universidade diante de questões que até hoje aquecem os debates dos alunos da UFOP - moradia, amparo estudantil, segurança, melhores condições de ensino e permanência. Uma luta diária em meio a  um corpo discente dividido naquela disputa de duas chapas com aspirações opostas e com diálogos calorosos. Em mim o eco era esse, como está aí no poema. 

Hoje é outro tempo e a luta para que eleições ainda possam trazer esse calor. Para que a democracia siga, cada vez mais madura, propiciando a construção daquilo que fazemos aos poucos, na constante luta política que nos move. Hoje, meu poema diz mais do que eu queria dizer naquela época. E dentre as muitas coisas que diz, diz que o ato de lutar é sempre múltiplo e este poema, o poema, a escrita, é meu lugar de luta. Escrever também é lutar, "lutar com palavras", citando Drummond. E quando o ciclo do dia se consumir, a luta prosseguirá nas ruas do sono, na noite, esperando o raiar de outro dia.  

domingo, 3 de abril de 2016

pensar o dia, a hora, e não ser. pensar o que traz o mar, o que tem na concha, o que existe de distância no vento que percorre o rio. pensar no rio, seus peixes de nomes conhecidos e desconnhecidos, seus mistérios, em Iara no fundo comendo os precipícios. pensar no que existe além da canoa, na terceira margem que liga o aqui e o não aqui, parada no grande seguir das águas. pensar no calor sob um céu azul que nem cabe tanto azul e sentir saudades das espumas das ondas, do penedo, das noites frente ao cais desabitado com seus barcos e pescas para depois.

talvez olhar o mar mais uma vez de olhos apertados e chorar. talvez lembrar que há água em mim por inteiro e que volto para perto dela, seus amanheceres. talvez olhar o rio largo sob a ponte, as croas e os manuelzinhos, os pássaros de muitos nomes, as docas e as dornas, um vocabulário novo e espinhento como um pequi por dentro. talvez encher a língua de espinhos quase invisíveis para lamber o outro. lambida espinhenta que traduza esse vário sentir, para arranhar e ferir como fazem as galhas ao fundo das chalanas.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Parte III de A contraposição das marés, poema do livro "é corpo seu norte", em produção (quase concluída)


A contraposição das marés

III

quero o som
dos afogados
dos seres na praça
dos inquilinos
já que as pessoas não sabem mais o que dizem umas as outras
e o verso aos poucos silencia.

mas é preciso fazer gritar os versos porque
não sei a dor que neles cabe e
não entendo nessa dor outra forma de dor e
não quero mais a dor dos corpos banhados de sal e de saliva
espreguiçando-se mudos nas calçadas do tempo
colhendo algodão, trigo e pão para alimentar seus sonhos:
as flores com que cobrem o visco da praça.

preciso do visco da praça, seu sentimento de tarde
pois a noite não é mais outra verdade.

vereda a vereda meu corpo busca o limite e não quer a dor
ou a contraposição que compõe os afogados,
mas seu sussurro, seu sorriso, seu álbum de retratos
picotados
como esmolas aos pobres que se anovelam.

quero o abraço quente dos pobres que se anovelam.
nesta casa, meu poema.
quero o som que cantam em voz dura de povo para

só então trazer à casa o bom-dia e a cor do dia
trazer o povo
para um tempo possível de verdade. Um tempo de abraços
potentes como as pedras do rochedo
translúcido como o fundo de um rio.
como o movimento do rio do qual não sei de seu início e fim,
sem destino para o depois.

já incerto do que não diz
já incerto como o olhar ao balão que sobe
[à cor que sobe no azul de sentimentos]
agora que o sentimento nada tem de transmissão
de saudade captada em mil delírios
é que preciso gritar os versos que silenciam.

gritar

como um beijo que ninguém comete na noite
como a delícia aos perdidos
como os segredos da fome
e o minúsculo compartilhar.

usar as palavras que não querem o caminho perdido do silêncio
e não se acomodam no tempo de seus predicados.
nas palavras, esse suor que transpiro,
trazer o povo em seu sal que se limpa na madrugada
com manga de camisa
e busca o infinito do dia
e quer a verdade consumada:
gente que ri de tudo neste apesar
em meio a esta dura vertigem.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

Um silêncio de 1000 compassos na morte de Mozart de Oliveira.


Morreu Seu Mozart. É dura a nota, mas simples, porque ele gostava desta palavra. Simples como o gesto calmo, como a precisão musical. Simples como o jeito de sorrir ao desconhecido, a quem, iniciante ou velho de choro, se aproximava de seu violão. E a morte é simples, mesmo que para nós, que ficamos sem a música de Mozart, não a entendamos assim.
Ouvi Mozart algumas vezes, menos do que muitos amantes do choro em Belo Horizonte. Conheci-o no Bar do Salomão, o franco sorriso no rosto, o amor ao choro e à música com uma qualidade rara. Quando o interpelei pela primeira vez, ele me disse emocionado: “Estão fazendo um filme sobre mim. Vai se chamar ‘Simplicidade’. Esse é o choro que eu mais gosto. Eu acho que na vida, o mais importante é a simplicidade”.
Partiu Mozart num domingo. Domingo, o primeiro dia da simplicidade. O dia da Luz, na tradição cristã. E foi enterrado na segunda, neste 23, e hoje, logo segunda, foi o primeiro choro no Bar do Salomão sem a possibilidade do choro do Mozart.
Hoje, Mozart, Belo Horizonte chorou. Chorou uma chuva forte, cheia da sua difícil e importante simplicidade. A Luz, a primeira, aquela simplicidade que marcou na tradição cristã a criação de um dia de partida, o dia do princípio, do seu princípio de luz em outra caminhada, acabou hoje, Mozart, só no Bar do Salomão, enquanto seus meninos chorões tocavam os choros que você conhecia de cor. Baixaram-se as portas do bar e o samba tocou muitas músicas. Tocaram “Naquela mesa”, e faltou você. Sempre faltará você, Seu Mozart. Sempre faltará sua tão difícil, importante e urgente simplicidade.
Fui pego de surpresa com a notícia. O silenciar de um violão é sempre urgente, nostálgico, nada simples. Ficou sua lição: nada é simples, mas isso não nos impede de tentar a simplicidade em tudo. Em paz, Mozart, vai contigo meu choro (comum, sem música).