Há
mordaça. Senti-lhe o gosto quando acordei com ela na boca, de
madrugada, retirando de mim o pouco ar que respiro. Uma mordaça que
impede ações tranquilas, gestos impensados e costumeiros, um
sorriso efetivamente alegre. Nela está escrito “aqui é proibido”
e a pena é ser preso e amarrado dentro de uma jaula de dedos onde há
um pêndulo afiado a passar sobre a barriga. Há mordaça porque
está-se sempre na linha tênue entre a ofensa, o grito e o
inevitável tumulto, pondo em risco a harmoniosa ordem. E para manter
a ordem, câmeras vigilantes feitas de um silêncio improdutivo e
pegajoso e um polvo branco que tudo abraça e comprime (bom em partir
os ossos dos dizeres, quebrar a espinha da poesia e ransgar a pele
das palavras em feridas) estão sempre atuantes. E além da mordaça,
do silêncio vigilante e do polvo branco, há um olho que tudo vê a
exigir autorizações, sendo preciso pedir-lhe permissão de passagem
em muitos postos de guarda, mandar-lhe textos para avaliação de
censores, evitar-se sempre chegar perto do muro para que assim o
polvo não quebre outro pescoço, que as câmeras não filmem outro
poema não comercial que tudo desvirtua e o silencie, para que nada,
nunca, provoque tumulto. Isso faz com que todos os donos da ordem
imponham-nos seus hábitos tecidos em alvas batas de paz feitas em
teares de medo. E o sorriso, agora moeda de troca, câmbio flutuante,
é a conquista máxima do olho que exige a felicidade a custo de
morte, impondo-a, obrigando-a a manifestar-se e transformando seres
mutantes em seres realizados, imutáveis e controlados, bons para
caberem como engrenagens em pleno funcionamento numa máquina azul. E
basta uma brisa, um desvio de conduta que chegue cheio de arte, um
sorriso verdadeiramente alegre ou um prazer simples para que o poema
suma na noite, amordaçado, jogado em vala comum com tantos outros
que nada mais dizem porque o polvo, além de esfolar suas palavras,
arrancou-lhes a língua.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2014
sexta-feira, 13 de dezembro de 2013
Meu ano se fecha sobre si mesmo como um caracol. Como todos os dias fecham anos, nada de extraordinário muda na noite em que meu ano se fecha sobre si.
No comum fechar sobre si é que mora a beleza do recomeçar que meu ano instaura em mim cheio de novas folhagens. Como planta que vai ao sol depois de dias, como eu no mergulho silencioso nas águas do mundo que quebram espumantes nas areias do Brasil.
segunda-feira, 9 de dezembro de 2013
Tear de Ondas: Lançamento
É com imenso prazer que o Desde que o samba é samba anuncia o lançamento do meu terceiro livro, Tear de ondas, publicado pelo projeto editorial Aves de água.
O livro, escrito ao longo de 2012, só agora vem a público em sua versão digital.
Para lê-lo, basta acessar a aba intitulada "Tear de ondas" ou clicar aqui!
É possível também ouvir um trecho do livro. Para ouvir, é só clicar em Tear de ondas, I, primeiro movimento.
E não deixem de conferir, também, a página do Projeto editorial Aves de Água no endereço http://www.avesdeagua.com.br
Espero que gostem!
quarta-feira, 4 de dezembro de 2013
Preparação de partida - parte I
Há preparação de partida, sem tantas histórias desta vez. Poucos
poemas escritos (ruins quase todos), nenhum texto em prosa que agrade
(e muitos parados empoeirando), algumas rugas, livros que se empilham
e questões teóricas cada dia mais profundas que sentem, em cada
dobra, o peso das decisões. Nenhum romance lido por inteiro num
sábado, a descoberta da poesia alemã do século XX, o estudo de
grego e hebraico antigos, Dante e Petrarca de foices em punho lutando
por um caminho no tempo da eternidade. Até o nada, a velha proposta,
parou – não sei se em suspensão ou em queda – ao som deste
constante rio em que pedras militantes lutam, como eu, contra a ordem
forçada que nos querem convencer a aceitá-las ao chamá-las “naturais”.
Houve neste tempo o vermelho, poucas discussões efetivamente
políticas, densas, como as que minha cozinha estava tão acostumada! E esta falta frustrou as panelas, as xícaras, os pratos de vidro, os garfos e, principalmente, as facas. O sumiço
da política no almoço deu lugar a discussões de praça que
passavam ao largo de tudo isso que antes era pão, café, arroz e
feijão. Falam tão pouco desses assuntos! Mas postam fotos, frases
prontas no tempo dos novos aforismos sem contexto e de frases
sumárias que impõem o silêncio.
Sinto nos dedos o tempo do fim dos debates, a morte do espaço em que se discutir qualquer assunto era possível, mesmo que em tom discordante. As listas com os nomes de quem diz "não", creio, já estão em redação em algum lugar. Sobrou de tudo a vontade de quebrar o vaso proibido, do alto do aparador, relíquia de família, só para ver que barulho faz quando cai. Caiu e não fez barulho e assustou mais pelos cacos do que pelo efeito da queda, a magia do vaso na fração do ar.
Sinto nos dedos o tempo do fim dos debates, a morte do espaço em que se discutir qualquer assunto era possível, mesmo que em tom discordante. As listas com os nomes de quem diz "não", creio, já estão em redação em algum lugar. Sobrou de tudo a vontade de quebrar o vaso proibido, do alto do aparador, relíquia de família, só para ver que barulho faz quando cai. Caiu e não fez barulho e assustou mais pelos cacos do que pelo efeito da queda, a magia do vaso na fração do ar.
Há caixas que nem saíram e outras que nem chegaram. Há um encontro
adiado cheio de amores e dores entre mim e ela que me espera,
diferente de quando a deixei, tão diferente e florida naquela manhã de agosto. E nossos desafetos, nossas
risadas, nosso ainda encontro casual se dá, repentino, quando uma flor se lança
suicida na avenida. Compusemo-nos, os dois, no tempo que nos distanciamos, de carícias
íntimas, esses grandes amores que, por amedrontadores, cativam-nos e nos doem nos ossos.
Mudamos, enfim. De mudanças e mudanças, todo ato é partida, toda
decisão é uma flor suicida na avenida, curtindo o vento da queda
antes de atropelada por um ônibus. E a partida, desta vez, é o
vaso-relíquia que caiu da estante e não fez barulho, nem trouxe
reprimenda nem castigo, mas quebrou a tradição de família: aquela
que insiste, de alguma maneira, em guardar nas coisas o ar respirado
por nosso passado e pelos nossos ancestrais. A isso, creio, não chamo mais de lar.
terça-feira, 5 de novembro de 2013
dos mapas antigos

Se estiver perdido, compre um mapa. Mas não desses que a Google faz,
cheio de coisas que acontecem agora, que você pode colocar no vidro
da janela do carro e se guiar. Compre um mapa antigo, difícil de se
ver o caminho nele traçado, o nome do lugar que nem existe mais. E
veja bem de perto que o cartógrafo errou a latitude, perdeu a conta
da longitude e nunca você encontrará aquele lugar. É ali que
começa tudo: onde as coordenadas nada dizem, é literatura. Lá,
sempre haverá civilização, conforto, conflito, dor a sobrar e uma
fina agulha. Procure essa agulha loucamente e costure as coordenadas
achadas no mapa comprado na mão do alfarrábio árabe que fechou a
livraria para investir em outro negócio. Costure essa matemática e
ela guiará você, quem sabe – e só se tiver muita sorte – para
o mundo que exite dentro da boca de Pantagruel. E ao sair, passando
pela civilização que planta repolhos, você talvez encontre um
cachalote, um marinheiro louco, um pirata gatuno que atende às vezes
pelo nome de Monte Cristo, uma nave que é capaz de levá-lo à lua,
um balão que o faz chegar em Londres, um livro vermelho que uma
menina aperta contra o peito, uma família que se consome na dúvida,
um dono de fazenda, acordado na noite, escrevendo a história de
Viçosa de Alagoas, um velho jagunço deitado na rede. Se
encontrá-lo, diga que eu mandei notícias e pergunte: existe?
quarta-feira, 16 de outubro de 2013
do pé na estrada
Há sempre uma rua que se pode seguir até seu fim e nela virar em
outra e assim chegar a uma rodovia. E nela, seguir até seu fim para
chegar onde acaba o asfalto e seguir pela estrada de terra que se
tornará uma trilha até que, de repente, o caminho então será
estreito e, ao olhar para trás, será inútil voltar.
Ali, neste lugar-nenhum, de nome ignorado, eu também possa ser
nenhum, de nome ignorado. Falsear a idade, pedir roupas e sapatos,
talvez algum prato de comida. Pedir algum serviço simples, braçal,
e ficar quieto no lugar, esquecido do mundo. É provável que perto
do lugar haja alguma urbanidade, com alguma escola, algum médico, ou
nem isso. Então, largar o emprego na roça e trabalhar em algum
desses lugares, numa padaria, num bar, num armazém, com um salário
pequeno para pagar um aluguel de um quarto de pensão, que já tenha
lá algum almoço incluído, com uma dona rabugenta que não tenha a
menor noção de onde eu vim, de para onde vou, se tenho ou não
família.
Como desconhecido, posso tornar-me conhecido por outro apelido, ou
por um nome qualquer que pouco importa. Criarei ali outra história
de mim mesmo, recheada de notícias inverídicas. Poderei refazer
tudo: minha maneira de me dirigir às pessoas, o trato que dou a mim
e aos demais. Poderei fingir-me analfabeto para ver até onde vai a
boa-fé humana, testar o que muitos chamam caridade. Deixar-me
esquecer de tudo e quando todos já me derem por morto, lá na rua
que havia deixado, voltar para o que hoje sou, neste nome, nestes traços. Aparecer, repentinamente, na vida
completamente outra para este outro eu que refizer no mundo mais
distante, no lugar-nenhum. Chegar quando meus livros já tiverem extraviado, meu diário
lido, relido, comentado, meus objetos pessoais vasculhados sem
respeito como se vasculham os pertences de um morto. Talvez aí eu
entenda o meu rosto que me ronda.
terça-feira, 8 de outubro de 2013
O rebocador amarelo
Chove há quase 10 dias e o mar está em tudo pela casa. A cômoda
sente falta da janela onde um dia passou um paraquedista vermelho
contra um azul doído, no fim da ilha. A rede, sem janelas nesta sala
só com portas, não vê mais o poema de Neruda escrito no vidro da
janela, com o Convento ao fundo. O cheiro de rio que me entra casa
adentro (deste rio aurífero e secular, revolvido pelos muitos
cobiçosos que atravessaram as águas, tingiram-na de sangue) é outro
cheiro, carregado de fantasmas sobrepostos que descem rumo aos
fantasmas dos afogados.
O rio quer fazer encontrar os mortos, todos: os desta serra onde só
chove, os dos sertões já tão bravios, dos milhares de índios
massacrados pelos campos do país, dos negros torturados, açoitados,
mutilados e mortos nestas minas hoje só covas vazias recheadas de
ecos e de dores. Todos os mortos reúnem-se no mar, o maior dos
ventres do mundo. E este mar é vida em profusão.
É só vida, o mar, porque os afogados e os mortos de terra, nas
águas profundas, transformam-se nos mais diversos seres. São
crustáceos, baleias, ostras, algas. E eu, que me associo a todos os
seres do mundo, vivos e mortos, por ter o mar dissolvido no sangue
das veias, sinto a falta desta vida potente e azul, e as coisas da
minha casa sentem-na também.
Falta o mar neste chão, em mim, nesta página. E por isso li Ode
Marítima: porque na mesa, entre Camões e Pessoa, entre Drummond
e Cabral, entre os milhares de riachos feitos de letras impressas que
seguem para o mar da linguagem, este berço dos mortos, se eu fechar
apertado os olhos, vejo o paquete entrando à baía, ouço os
cargueiros que levam e trazem o mundo, sinto o cheiro do Atlântico
que um dia foi a rotina das minhas narinas.
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