quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

O polvo branco


Há mordaça. Senti-lhe o gosto quando acordei com ela na boca, de madrugada, retirando de mim o pouco ar que respiro. Uma mordaça que impede ações tranquilas, gestos impensados e costumeiros, um sorriso efetivamente alegre. Nela está escrito “aqui é proibido” e a pena é ser preso e amarrado dentro de uma jaula de dedos onde há um pêndulo afiado a passar sobre a barriga. Há mordaça porque está-se sempre na linha tênue entre a ofensa, o grito e o inevitável tumulto, pondo em risco a harmoniosa ordem. E para manter a ordem, câmeras vigilantes feitas de um silêncio improdutivo e pegajoso e um polvo branco que tudo abraça e comprime (bom em partir os ossos dos dizeres, quebrar a espinha da poesia e ransgar a pele das palavras em feridas) estão sempre atuantes. E além da mordaça, do silêncio vigilante e do polvo branco, há um olho que tudo vê a exigir autorizações, sendo preciso pedir-lhe permissão de passagem em muitos postos de guarda, mandar-lhe textos para avaliação de censores, evitar-se sempre chegar perto do muro para que assim o polvo não quebre outro pescoço, que as câmeras não filmem outro poema não comercial que tudo desvirtua e o silencie, para que nada, nunca, provoque tumulto. Isso faz com que todos os donos da ordem imponham-nos seus hábitos tecidos em alvas batas de paz feitas em teares de medo. E o sorriso, agora moeda de troca, câmbio flutuante, é a conquista máxima do olho que exige a felicidade a custo de morte, impondo-a, obrigando-a a manifestar-se e transformando seres mutantes em seres realizados, imutáveis e controlados, bons para caberem como engrenagens em pleno funcionamento numa máquina azul. E basta uma brisa, um desvio de conduta que chegue cheio de arte, um sorriso verdadeiramente alegre ou um prazer simples para que o poema suma na noite, amordaçado, jogado em vala comum com tantos outros que nada mais dizem porque o polvo, além de esfolar suas palavras, arrancou-lhes a língua.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Meu ano se fecha sobre si mesmo como um caracol. Como todos os dias fecham anos, nada de extraordinário muda na noite em que meu ano se fecha sobre si.

No comum fechar sobre si é que mora a beleza do recomeçar que meu ano instaura em mim cheio de novas folhagens. Como planta que vai ao sol depois de dias, como eu no mergulho silencioso nas águas do mundo que quebram espumantes nas areias do Brasil.


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Tear de Ondas: Lançamento



É com imenso prazer que o Desde que o samba é samba anuncia o lançamento do meu terceiro livro, Tear de ondas, publicado pelo projeto editorial Aves de água.

O livro, escrito ao longo de 2012, só agora vem a público em sua versão digital.

Para lê-lo, basta acessar a aba intitulada "Tear de ondas" ou clicar aqui!

É possível também ouvir um trecho do livro. Para ouvir, é só clicar em Tear de ondas, I, primeiro movimento.

E não deixem de conferir, também, a página do Projeto editorial Aves de Água no endereço http://www.avesdeagua.com.br


 Espero que gostem!


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Preparação de partida - parte I


Há preparação de partida, sem tantas histórias desta vez. Poucos poemas escritos (ruins quase todos), nenhum texto em prosa que agrade (e muitos parados empoeirando), algumas rugas, livros que se empilham e questões teóricas cada dia mais profundas que sentem, em cada dobra, o peso das decisões. Nenhum romance lido por inteiro num sábado, a descoberta da poesia alemã do século XX, o estudo de grego e hebraico antigos, Dante e Petrarca de foices em punho lutando por um caminho no tempo da eternidade. Até o nada, a velha proposta, parou – não sei se em suspensão ou em queda – ao som deste constante rio em que pedras militantes lutam, como eu, contra a ordem forçada que nos querem convencer a aceitá-las ao chamá-las “naturais”.
Houve neste tempo o vermelho, poucas discussões efetivamente políticas, densas, como as que minha cozinha estava tão acostumada! E esta falta frustrou as panelas, as xícaras, os pratos de vidro, os garfos e, principalmente, as facas. O sumiço da política no almoço deu lugar a discussões de praça que passavam ao largo de tudo isso que antes era pão, café, arroz e feijão. Falam tão pouco desses assuntos! Mas postam fotos, frases prontas no tempo dos novos aforismos sem contexto e de frases sumárias que impõem o silêncio.
     Sinto nos dedos o tempo do fim dos debates, a morte do espaço em que se discutir qualquer assunto era possível, mesmo que em tom discordante. As listas com os nomes de quem diz "não", creio, já estão em redação em algum lugar. Sobrou de tudo a vontade de quebrar o vaso proibido, do alto do aparador, relíquia de família, só para ver que barulho faz quando cai. Caiu e não fez barulho e assustou mais pelos cacos do que pelo efeito da queda, a magia do vaso na fração do ar.
Há caixas que nem saíram e outras que nem chegaram. Há um encontro adiado cheio de amores e dores entre mim e ela que me espera, diferente de quando a deixei, tão diferente e florida naquela manhã de agosto. E nossos desafetos, nossas risadas, nosso ainda encontro casual se dá, repentino, quando uma flor se lança suicida na avenida. Compusemo-nos, os dois, no tempo que nos distanciamos, de carícias íntimas, esses grandes amores que, por amedrontadores, cativam-nos e nos doem nos ossos.
Mudamos, enfim. De mudanças e mudanças, todo ato é partida, toda decisão é uma flor suicida na avenida, curtindo o vento da queda antes de atropelada por um ônibus. E a partida, desta vez, é o vaso-relíquia que caiu da estante e não fez barulho, nem trouxe reprimenda nem castigo, mas quebrou a tradição de família: aquela que insiste, de alguma maneira, em guardar nas coisas o ar respirado por nosso passado e pelos nossos ancestrais. A isso, creio, não chamo mais de lar.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

dos mapas antigos

                         


 Se estiver perdido, compre um mapa. Mas não desses que a Google faz, cheio de coisas que acontecem agora, que você pode colocar no vidro da janela do carro e se guiar. Compre um mapa antigo, difícil de se ver o caminho nele traçado, o nome do lugar que nem existe mais. E veja bem de perto que o cartógrafo errou a latitude, perdeu a conta da longitude e nunca você encontrará aquele lugar. É ali que começa tudo: onde as coordenadas nada dizem, é literatura. Lá, sempre haverá civilização, conforto, conflito, dor a sobrar e uma fina agulha. Procure essa agulha loucamente e costure as coordenadas achadas no mapa comprado na mão do alfarrábio árabe que fechou a livraria para investir em outro negócio. Costure essa matemática e ela guiará você, quem sabe – e só se tiver muita sorte – para o mundo que exite dentro da boca de Pantagruel. E ao sair, passando pela civilização que planta repolhos, você talvez encontre um cachalote, um marinheiro louco, um pirata gatuno que atende às vezes pelo nome de Monte Cristo, uma nave que é capaz de levá-lo à lua, um balão que o faz chegar em Londres, um livro vermelho que uma menina aperta contra o peito, uma família que se consome na dúvida, um dono de fazenda, acordado na noite, escrevendo a história de Viçosa de Alagoas, um velho jagunço deitado na rede. Se encontrá-lo, diga que eu mandei notícias e pergunte: existe?

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

do pé na estrada


Há sempre uma rua que se pode seguir até seu fim e nela virar em outra e assim chegar a uma rodovia. E nela, seguir até seu fim para chegar onde acaba o asfalto e seguir pela estrada de terra que se tornará uma trilha até que, de repente, o caminho então será estreito e, ao olhar para trás, será inútil voltar.
Ali, neste lugar-nenhum, de nome ignorado, eu também possa ser nenhum, de nome ignorado. Falsear a idade, pedir roupas e sapatos, talvez algum prato de comida. Pedir algum serviço simples, braçal, e ficar quieto no lugar, esquecido do mundo. É provável que perto do lugar haja alguma urbanidade, com alguma escola, algum médico, ou nem isso. Então, largar o emprego na roça e trabalhar em algum desses lugares, numa padaria, num bar, num armazém, com um salário pequeno para pagar um aluguel de um quarto de pensão, que já tenha lá algum almoço incluído, com uma dona rabugenta que não tenha a menor noção de onde eu vim, de para onde vou, se tenho ou não família.
Como desconhecido, posso tornar-me conhecido por outro apelido, ou por um nome qualquer que pouco importa. Criarei ali outra história de mim mesmo, recheada de notícias inverídicas. Poderei refazer tudo: minha maneira de me dirigir às pessoas, o trato que dou a mim e aos demais. Poderei fingir-me analfabeto para ver até onde vai a boa-fé humana, testar o que muitos chamam caridade. Deixar-me esquecer de tudo e quando todos já me derem por morto, lá na rua que havia deixado, voltar para o que hoje sou, neste nome, nestes traços. Aparecer, repentinamente, na vida completamente outra para este outro eu que refizer no mundo mais distante, no lugar-nenhum. Chegar quando meus livros já tiverem extraviado, meu diário lido, relido, comentado, meus objetos pessoais vasculhados sem respeito como se vasculham os pertences de um morto. Talvez aí eu entenda o meu rosto que me ronda.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

O rebocador amarelo


Chove há quase 10 dias e o mar está em tudo pela casa. A cômoda sente falta da janela onde um dia passou um paraquedista vermelho contra um azul doído, no fim da ilha. A rede, sem janelas nesta sala só com portas, não vê mais o poema de Neruda escrito no vidro da janela, com o Convento ao fundo. O cheiro de rio que me entra casa adentro (deste rio aurífero e secular, revolvido pelos muitos cobiçosos que atravessaram as águas, tingiram-na de sangue) é outro cheiro, carregado de fantasmas sobrepostos que descem rumo aos fantasmas dos afogados.
O rio quer fazer encontrar os mortos, todos: os desta serra onde só chove, os dos sertões já tão bravios, dos milhares de índios massacrados pelos campos do país, dos negros torturados, açoitados, mutilados e mortos nestas minas hoje só covas vazias recheadas de ecos e de dores. Todos os mortos reúnem-se no mar, o maior dos ventres do mundo. E este mar é vida em profusão.
É só vida, o mar, porque os afogados e os mortos de terra, nas águas profundas, transformam-se nos mais diversos seres. São crustáceos, baleias, ostras, algas. E eu, que me associo a todos os seres do mundo, vivos e mortos, por ter o mar dissolvido no sangue das veias, sinto a falta desta vida potente e azul, e as coisas da minha casa sentem-na também.
Falta o mar neste chão, em mim, nesta página. E por isso li Ode Marítima: porque na mesa, entre Camões e Pessoa, entre Drummond e Cabral, entre os milhares de riachos feitos de letras impressas que seguem para o mar da linguagem, este berço dos mortos, se eu fechar apertado os olhos, vejo o paquete entrando à baía, ouço os cargueiros que levam e trazem o mundo, sinto o cheiro do Atlântico que um dia foi a rotina das minhas narinas.