quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

elegia


das marcas do hoje
esse sal

o chão onde colhi margaridas
um dia
é seco chão de piso duro
e venta por sobre o passado

o passado
- seu sal -
tempero antigo com que salgo porcos
tempero antigo com que faço unguentos
no meio do dia partido em quatro
no quarto partido em dois
no teto que abrigou o fim

das marcas do hoje
esse velório inacabável
esse réquiem infinito sem abraço
a noite profunda em que me banho no escuro

do passado
alguma lembrança do sol
o adiar perpétuo
do completo sem que define o dia
como se à aurora
nada fosse possível
com o mar multicor à praia

o hoje de chão e sal

como saber
se no fim está densa fumaça que a tudo opaca
e o sorriso que boia na noite
e a valsa vazia dos dias
e o samba a sós no canto do quarto
é o que tem no dia
seu almoço complacente de nãos e depois

nãos e depois
- uma vida -
a idade madura e seus ossos que rangem
a idade madura de um poema antigo
o amor que se desacredita
e que escapa
opaco
no fundo de um som possível de nós

os nós de depois
seus ossos em chamas aos deuses
amanhã – esse inexistente mistério que me carrega de fins
amanhã – essa aurora e a promessa

aqui os cacos do que ainda brilha
os cacos dos copos que joguei ao chão de raiva
os cacos de mim nos copos
os dedos partidos de agonia

fonte de eterno frio
naquele poema antigo
uma elegia
a longa elegia do fim que não inaugura nada
nada cria
nada cuida

sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O tempo mão


De repente a mão se abre e solta. É simples como dar um passo. Abre a mão e solta. Quando solta, um mundo de possibilidades se abre. A mão, que carregou inútil peso por longo tempo, está livre para novos tatos e novos contatos. Não aguenta mais as bolhas que as coisas lhe causaram, as dores da importância ao inútil, as dores suportáveis e diárias das pequenas ofensas e dos pequenos deixares-de-lado. A mão que sustentou o mundo, equilibrou pratos, fez afagos e vibrou fechada de ódio, sem revidar. A mão que concentrou o medo e quis esconder o rosto, que mostrou-se torta e, por ser torta, foi chamada de louca. De repente, a mão solta tudo isso e livre, alisa outra face.
A nova face que a mão alisa, livre da carga carregada, é o hoje. Está a face leve sem marcas do passado. Na nova face, todas as possibilidades, outras, sem caminhos, espinhos e dores velhas e gastas, já exaustas antes de saírem da cama. A nova face, calma, é um sorriso de companhia. Um sorriso de café com torradas à tarde, de range-rede abraçado de sábado. É a possibilidade de passeio no parque da cidade, de pedras lançadas ao lago, de lenços de partidas e abraços de chegada cada vez mais raros porque não há distância, de horas de silêncio compartilhado mirando o céu pela janela.
A mão, de repente, solta. E vê a tranquilidade da meia idade num embrulho de um livro ao pé da porta. O hoje é um livro embrulhado ao pé da porta. Uma carta que chega, a resposta das milhares de cartas enviadas sem resposta. Uma carta-bilhete, com perfume e letras corridas, mas real e de papel. Comum para além dos boletos. O embrulho na porta, o livro, e tudo o que ele contém de fúria e de sorriso, de improviso no hoje. Um livro que não precisa de estrada, que não é viciado de riscos, que não corta os dedos nas pontas. Um livro, um simples livro para se ler, no hoje, o afago da tarde.

domingo, 13 de outubro de 2019

A consciência do fim


À medida que a vida passa, eu fico cada vez mais lento. É uma força bruta em mim. E os dias cada vez mais rápidos. Eu demoro duas vezes mais do que demorava para me arrumar para ir ao trabalho. Demoro duas vezes mais para comer ou para tomar banho. Mesmo que eu acorde nos mesmos horários e repita meticulosamente os rituais diários que repito. Como me mudei muitas vezes de casa, tinha em mente uma velocidade prática de mudança que hoje é só uma teoria. A última vez que me mudei demorou mais do que qualquer outra, tomou-me três longos meses de preparação, o que antes se resolveria em vinte dias.
Estou mais lento para pensar. Demoro mais a chegar a conclusões. Não porque o raciocínio está mais lento. Mas porque há mais elementos a se considerar. Elementos que não considerava antes, que não dava importância, que não sabia ou não conhecia. E todas as vezes que o cérebro dá sinais de lentidão, troco algo na alimentação, mudo uma rotina – aumento um pouco as horas de sono, evito as redes sociais (esses lugares de dispersão), concentro-me mais nos livros, mudo rotinas. Porque o cérebro é o que eu tenho de mais precioso e do qual mais dependo. E ele fica, como todo o corpo, mais lento.
Quanto mais lento eu fico, mais rápido o tempo passa. Ontem era maio e eu estava me preparando para um concurso, dias depois meu pai faleceu. Ontem era 2015 e eu defendia o meu doutorado. Foi ontem que entrei na Universidade, e esse ontem já bate a casa dos vinte anos no ano que vem. Tudo ontem. Para mim, 1970 ainda dista de mim vinte anos, e não o ano 2000. E eu tenho ficado lento para acompanhar o crescimento dos filhos dos meus amigos, as idades dos meus amigos, seus movimentos de vida. Lento para ler editais e textos, lento num tempo cada vez mais rápido, em que tudo ao meu redor apita – a geladeira se fica muito tempo aberta; os carros em que ando se não fecho bem a porta e se não coloco o cinto de segurança; os caminhões que dão ré na rua, o telefone, esse aparelho maldito que precisa me avisar que há uma nova foto, uma nova mensagem que nunca é urgente de fato, mas que todos consideram assim.
O mundo tem pressa, e eu não tenho. Agora, querem que eu me acelere para acompanhá-los e eu penso: como me acelerar se ainda tenho tantos livros a ler e sei que não dará mais tempo de ler todos? Como me acelerar se ainda não li A montanha mágica nem Proust, e preciso deles com urgência, mas há um relatório, uma minuta, um edital, um post no Facebook, o último e novíssimo livro de Richard Sennett, o último disco do Gil, o último show de Elza Soares, os movimentos na prisão do Lula e as sandices do Presidente que Governa a Prefeitura Brasil? E eu, lento para isso tudo, que ainda preciso de horas para fumar meu cachimbo na poltrona enquanto leio revistas impressas, que sei que meu cachimbo novo vai demorar vinte anos para chegar no ponto ideal, amaciado lentamente dia a dia. Como acompanhar a tudo isso sem entrar em pânico ou sem me sentir deixado para trás?
Dentro disso chega a noção de fim. Acabará, tudo. Porque a morte é um fato e é de repente. Não se sabe quando vem e se me levará a razão antes de chegar. Se eu ainda estarei vivo quando outro sistema econômico posterior ao capitalismo vier, um sistema mais cruel e violento que poderá acabar com toda e qualquer forma de emprego e deixar milhões na miséria (porque eu não sou otimista de que o capitalismo vai morrer no florescer da economia colaborativa), nesse mundo cada vez mais imbecilizado pelas mídias digitais que desprezam livros e impressos com a desculpa que se deve poupar o mundo dos papéis (mas não dos panfletos de loja e dos santinhos de políticos que inundam e imundam as ruas das cidades).
Tudo acabará e é um exercício lento de aceitação de que é preciso priorizar. O tempo não pode ser desperdiçado com coisas ruins. Não a maior parte do nosso tempo. É preciso priorizar o afeto, o estar-com. Como diria Heidegger, ocupar-se do tempo de forma própria, sem se preocupar com as atualizações, com o que vem depois. Ocupar-se do agora e vivê-lo, porque só ele restará, por fim. Essa dinâmica importante que me traz a idade. Eu, lento, tento depurá-la. Ainda não a alcancei. Mas é um exercício diário até o porvir.
Por isso, ficarei nos livros. Neles, entendendo que todos, Adorno, Heidegger, Kant, Schiller, Homero, Drummond, Pessoa, Shakespeare, todos morreram sem ler tudo o que queriam ler. Os livros carregam os mortos e alguns que estarão mortos um dia. Mas neles sei que é preciso ficar. Porque eles me ensinam que para escrever, para pensar, é preciso tempo. Tempo que não nos dão mais, com o trabalho nos acordando na madrugada em apitos de telefones, urgências nas horas em que tudo está fechado, menos os bares. A Universidade ainda não é uma drogaria vinte e quatro horas, e eu não preciso estar a postos como um balconista de plantão. Vou me dar o tempo, o silêncio e a ausência das redes no priorizar os livros. Porque eu vou morrer um dia, e não quero passar a vida entre documentos formais e relatórios. Sinto muito por quem quer viver assim.

sábado, 28 de setembro de 2019

Amor listrado em preto e branco


Atlético: eu, você e esse sofrimento intermitente. Não é amor cheio de paz e tranquilidade. É amor cheio de dor e lágrima, cheio de sofrimento doentio e de alegria arrebatadora. Perversidade que me prende a você. Intenso amor, cheio de grito.
Amor listrado em preto: essa face obscura de todos nós. Na listra preta, nossas profundezas e recolhimentos. Você nos põe em contato com o que há de verdade em nós. Os lugares da alma em que você nos lança há mais de um século, nesse movimento estranho de existir para nos mostrar a razão limite, até onde podemos levar a dor e o viver, o pensar e o resistir. Até onde suportar? Como sobreviver a isso?
Amor listrado em branco: a noção de claridade ilusória a que essa dor obscura nos leva. A claridade de entender a luz, de ser arrebatado da dor. Porque você nos arrebata da dor de todo dia: do ônibus lotado, do salário atrasado, do aumento do aluguel, do preço do feijão. Você nos tira dessa dor diária de viver ao surgir nos noventa minutos em que existe em ação, ali, no centro do espetáculo mundo, o futebol. E não há atleticano que suporte viver sem esses noventa minutos em que você nos traz de volta uma esperança branca e preta, algo difícil de perceber.
Amor listrado em ambivalências: as duas cores do luto. As duas cores do noivado. As duas cores da festa. Há culturas que o branco é o símbolo do morrer, como o preto na nossa. Há culturas em que as noivas vestem preto, como na nossa vestem branco. Nas duas bodas que nos cercam, os elementos vitais do festejo e do desenlace, suas cores. As cores dos antigos pretos velhos, das antigas pretas velhas. As guias preto e brancas da ancestralidade negra de seus torcedores na cura e na doença de amar você, Atlético. Nas cores de Obaluaê, o Orixá da terra, da cura e da doença. O peso de carregar as cores de um deus.
Amor listrado e seus limites: um preto e um branco. Cada listra, um limite. Como transpor os limites do existir? Como viver os limites do amar? Como absorver os limites do pertencer a você, nossa pátria e nação, nosso lar e templo, nosso lugar de aceitação dos erros e dos acertos? Você nos prova sempre que perdoar é um ato de amor, porque sempre o perdoamos, mesmo depois da maior agonia. Você nos mostra que é preciso transpor o limite para o perdoar e o amar. Porque você carrega em si a ambivalência do existir.
Amor sem consenso: não há meio termo. Ou se sofre ou se é feliz. É quente, nada de morno. Talvez a única relação imutável, vermelha como a histórica camisa dos goleiros, como as cores dos números. Um galo de briga de olhos vermelhos. Um galo do povo que briga contra tudo e todos na esperança de vencer. E como o povo, perde mais do que ganha e suporta, e almeja a vitória, tem fé no futuro. E então o povo o ama, porque amanhã é outro dia e você existirá nele, no outro dia, lutando até o último suor do seu rosto que sobra na gola da camisa.
Amor sem vaidade: de todos, com todos. Amor sem veleidades: popular e honesto. Do povo. Sempre do povo. A alegria maior do povo porque repete a dor do povo, seu sofrer. Você lembra a quem não sabe o que é sofrer o sofrimento do povo: nas fábricas, nas lotações, no trabalho diário, no peso das sacarias nas costas. O povo entende de sofrimento, por isso o povo o entende, Atlético. Porque o povo sabe a dificuldade do pão e do cigarro, do feijão e da cachaça. E por isso, sabe o sabor da festa que você provoca na semana. O povo, só o povo o entende e o abraça, Atlético. Porque você não é só querido pelos seus. É amado. E os seus não têm por você essa vaidade barata. Têm orgulho de você. Como de um filho ou de uma filha que consegue vencer a dor diária, como a vitória da família vizinha que enfim saiu do aluguel, como o conseguir realizar um difícil sonho nessa selva que é o viver.
Um galo de briga de olhos vermelhos. Com sede de vitória que se levanta todos os dias às cinco da manhã para auxiliar no acordar das cidades. Como o povo que desperta antes de todos para pôr a cidade em movimento: dirigindo ônibus, fazendo pão, vendendo hortaliça, carregando caminhão, limpando rua, indo para o trabalho nas fábricas. Você é o partido do povo: seu representante e seu delírio.
Amor listrado em preto e branco. Amor limite do dia. Esse lembrar o sofre que você não se furta. A você, Atlético, meu delírio e alegria, minha dor e desamparo. Sempre.

quarta-feira, 8 de maio de 2019

o sabor do sal - parte I


para ana

o amor, seus contratos e o que há mais, no que cabe de mais. o amor feito um guindaste, gigante e profundo como um precipício. onde, o amor, então? como segurá-lo entre as mãos sem que ele caia nessa via que segue serpenteando a montanha, com forte vento por trás, que nos carrega a alma seca de vertigens e velha como os dias das eras, antigas como o início dos tempos, mas hoje na ocupação diurna? como saber o amor, vivê-lo e condensá-lo num verso que seja capaz de exprimir com clareza além das letras de um nome, além das formas comuns, das pequenas coisas do dia? onde o amor está perdido e encontrado, raptado de seus ais sem muitos lances, onde cabe na verdade esse desvelo e meu jeito, onde durmo pesado? onde o amor me recupera das velhas feridas, dos tropeços e desenganos, desse mentir repetido a mim que em mim de fato pensava que cabia, e que não cabe, mas que punge na força dos dedos na noite, nas dores dos músculos da testa quando esvai a dor pelos poros, onde os atos e seus resultados se colocam empatados e não estamos mais no caminho da dúvida? como abrir mão do que se pensou e ouviu, seguindo uma velha lição, para chegar, no fim, na gema densa, essa joia dura de carbono e sal? enquanto o sal tiver sabor de sal. enquanto esse enfim se materializa?

quarta-feira, 1 de maio de 2019

O limite dos privilegiados

O limite dos privilegiados.

Bolsonaro odeia a educação porque educação é crescimento. E ele nunca cresceu. Não digo de idade. Educação é um crescimento constante, a cada desafio e a cada etapa concluída. O contato com os saberes amplia a pessoa; ela não consegue caber nunca mais nas velhas medidas, nos velhos espaços que ela ocupava antes de aprender.

Aprender a andar de pé fez com que as pessoas nunca mais engatinhassem. Aprender a falar fez com que as pessoas nunca mais balbuciassem. O estágio posterior ao aprendizado é um estágio do qual não se pode retroceder. Isso é crescer. E Bolsonaro não cresceu.

Há ali uma limitação qualquer, não sei. Mas ele parou em algum estágio de seu crescimento e decidiu, ou mesmo não conseguiu, ir adiante. Descobriu um limite e o aceitou como fim. Porque é limitado, assim, de quem chegou ao limite e estacionou ali - por medo, preguiça ou escolha. Então, por não ser capaz de seguir adiante, ele acredita que crescer é inútil.

Para quem chega no limite de sua capacidade sem aceitá-lo, deve ser odioso ver quem segue crescendo, quem não se deixa barrar pelos limites. E a vida universitária, a Universidade, é o lugar onde os limites estão, a todo momento, se alargando, crescendo. É onde todos os anos estudantes se formam convictos de que não cabem mais nas medidas que ocupavam antes de entrar ali. Convictos de que cresceram e sapientes de que ainda há muito a crescer. E ele, Bolsonaro, limitado, se enfurece.

Bolsonaro se enfurece porque ele poderia estar ali. Ele é branco, homem e de classe média. Não recebeu uma educação precária nem foi obrigado a parar de estudar. Estava, como muitos brasileiros de sua classe social, cercado de privilégios e não conseguiu mais crescer. Diferente dos pobres, que precisam abandonar o estudo para trabalhar, ou de negros e negras historicamente excluídos do contato com a educação. Ele poderia ter sido médico, dentista, General do Exército. Ele não conseguiu. Porque chegou ao seu limite. E se enfurece com quem conseguiu e consegue seguir crescendo.

Para piorar, educou seus filhos nessa lógica. Achou outro limitado que largou a escola e foi morar em outro país, que tem atrás de si (nos vídeos que publica) livros que são só cenário. Outro que, por não conseguir ser filósofo por formação, por não ter concluído a escola básica, se autoproclamou filósofo. O limite branco, masculino, de classe média. O limite dos privilegiados.

Atacar as Universidades, as humanidades, o pensamento livre e que produz crescimento, é o ódio do limite dos que não conseguiram. Bolsonaro não conseguiu, mesmo com tantos privilégios. Outros tantos, brancos e de classe média, também cheios de privilégios, não conseguiram. Mesmo com boas escolas, boa alimentação na infância, boas condições de estudo, morando em casa própria, com condições de só se dedicarem ao estudo. E deve ser doloroso ver os pobres, os que nunca tiveram chance, os que trabalham e estudam, as que levam os filhos para as aulas por não terem com quem deixar, conseguirem sem privilégio nenhum o que ele, Bolsonaro, com tantos privilégios, não conseguiu. O que seus filhos, com tantos privilégios, também não conseguiram.

Por isso, ele quer destruir tudo. Porque assim ninguém mais será capaz de esfregar na cara dele o quão limitado ele é. O quanto ele não conseguiu. O quanto seus iguais também não conseguiram. Só conseguirá isso impedindo que outros consigam. Impedindo que outros cresçam. Por isso, estrangular a Universidade, o pensamento e as ciências humanas. Esse é o pano de fundo desse ódio. E dele o mercado se apropria.

quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Estudos de cartografia I

 para Ana Paula Nunes

o acaso da vida
seus ditames
os imprevistos compostos
sua pele

onde as palavras esquecem
a sua real filosofia
e nos põem contrapostos
de mãos dadas

fervilha a pele das unhas
sob abraços desfeitos
nos repetidos dias de imprevisto

como se a força da cor da aurora
[esta que nos imprime o dia]
fosse o contrário da forma

: corpo

esse rio presente em paradigmas
que nos traz a parte cortada
a que amputamos de nós
a capacidade de crer no fim
como um desabrochar violento da orquídea

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Para Thaís (parte 2)

Lembrar você nas ruas de Diamantina. Onde saímos e onde nos sentamos para ver o dia dormir. Onde passeamos risadas naquele janeiro de há doze anos. E nos vi por ali, almoçando no restaurante que almoçamos, sentando nas mesas dos bares em que bebemos umas cervejas, parando na porta do hotel que dormimos. Nossos dias ali, de novo, reduzidos e diminutos.

Senti sua falta, estranha falta que só sinto por saber que você partiu. Desde que virou jamais, algo novo nasceu por você, e não sei o que é. Uma latência, um som. Você reaparece cristalizada nas fotos, sabendo-se sem telefonemas, e tudo ficou de alguma maneira encantado e carregado de carinho. Talvez porque a morte tenha lá esse peso. E você se subverte na memória, e escapa aqui e ali de onde eu a tinha guardado, entra noutros espaços. Reaparece nas falas do dia, quase sempre.

Sonhei com você esses dias. Sonhei que sorria! E acordei à procura de uma foto que tinha sua na minha cama, sorrindo, vestindo uma blusa minha. Resgatei essa foto e achei outras, uma da gente acordando e da sua cara de mal humor, de você saindo de um baile vestindo meu paletó, da gente sentado num meio-fio durante o carnaval de 2004, da gente com Cynthia, Dávine e Regisley na sua casa. Tenho ainda essas fotos, hoje artefatos de saudade do jamais.

Tenho ainda a palavra saudade escrita em pedra que você me deu quando comecei a viajar para trabalhar e que levou nosso relacionamento ao fim. Lembrei dos encontros rápidos nas rodoviárias, quando estava de passagem. De nossa viagem de janeiro, que começou por Diamantina, nossa longa e importante viagem, decidida de repente, com roupas compradas numa loja em BH, nada programado, como tudo que era nosso. Achei os postais que me mandou de Hong Kong, achei nossas cartas que têm mais de dez anos, mais de quinze anos. Achei o lenço que você usou no cabelo em um dos nossos carnavais, sempre cheios de desencontros e de conversas longas pelos meio-fios. Os lenços que você usou no vestibular em Viçosa, quando fomos juntos. Lembrei de uma vez que você viajou escondida de carro para me ver porque eu não regressaria à Mariana, de você me esperando descer do ônibus quando fui pela primeira vez em São João. Daquela casa pequena em São João. Da decisão de que só nos suportaríamos se vivêssemos em casas separadas.

Você ainda está nas ruas de Mariana, em Passagem. Passo por lá e há sempre uma dor. As coisas mudaram, eu mudei. As coisas mudaram e não cumprimos o plano de comprar livros na Grécia para não perdermos a viagem. Não cumprimos muitos planos desde que tudo terminou e com sua morte fica essa coisa suspensa, porque sempre se tem um depois, sei lá, nessa vida maluca de erros.

Nos dias por nossa cidade, lembrei do que você me disse, quase como uma profecia que acabou por não se cumprir. De que iríamos nos distanciar, nosso relacionamento acabaria para retornar quando estivéssemos mais maduros e soubéssemos lidar melhor com o amor.

Amor. Lembrar de você é lembar que eu já acreditei no amor, e ele parece ecoar de uma vida que não sei mais onde está. Quando você partiu, Bia me ligou e repetia isso, de que eu a tinha amado muito. Um dia, na Sé, Flavinho me disse que achava que nos casaríamos. Fabiano me disse num bar em BH que faltou dar em você o último abraço. Fui apresentado ao marido de Cynthia com meu nome ligado ao seu. Um dia, do nada, Dávine postou uma foto em que estávamos juntos. São tantos registros! Você, sempre sorrindo! Houve amor, um louco amor. Desses que os jovens sentem e que encantam. Um amor que precisava se afastar e amadurecer. E nesse hífen você partiu e eu deixei de acreditar que amar é possível, que exista de fato esse sentimento, o amor.

Você foi importante e eu ainda não consegui superar sua partida. Ainda espero seu telefonema de alguma parte do mundo para a gente dizer ao telefone que a memória que temos um do outro é a de ex-casados, da saudade que temos de você jogando pedras na minha janela quando matava aulas para passar o dia comigo escondida de todos. Nossas tardes e manhãs. Nossas descobertas de nós e do mundo. Dos nossos sonhos de viajar o planeta.

O destino tem brincadeiras cruéis. Quando saí em Diamantina para repetir nossa noite no mercado, vi margaridas. Você estava lá, em tudo. E já fazem doze anos desde aquele janeiro. Quem sabe um dia tudo volte. Quem sabe o que o destino ainda me reserva, já que sua trajetória aqui já terminou. Nesses espaços encantados, ainda espero sua ligação. Ainda espero saber quem você ama no momento, e como se lembra de nós. Eu sigo cada vez mais seco. Mas há sua memória agora, que ilumina as coisas a seu modo.