Sem
corpo é impossível. Porque o corpo é imperioso, necessário.
Urgente. Definidor e problemático, ponto partido de partida de onde
sai-se ao outro, também corpo, nos seus espaços urbanos cheios de
corpos e suas linguagens, cheios de corpos e seus suores, cheios de
corpos partidos em mãos e braços, paletós e pulmões, partes
indefinidas de biologia. O corpo catalogado, dividido, numerado,
tatuado, contato e expandido. Explorado até o enjoo, abusado e
perecível. Comum. Substantivo comum sem gênero.
O
corpo definido, moldado, medido, pesado, na ideia de corpo comum
social onde há um corpo especial que não é o meu, não é o seu,
não é de gente possível de anatomia natural. O corpo a que se deve
amar, mas sem corpo. Por que? O que se deve ter, que não é. Por
que? Onde o que é corpo engloba olhos e vaginas, pênis e pâncreas?
Onde joelhos e onde amídalas? Onde isso perde o nome que tem na
medicina e volta ao corpo como corpo, inteiro, para ser tocado e
sentido, ser bebido e devorado em rituais antigos, sugada cada gota
sem desfazer a face, preservado em faixas embebidas de ervas para
renascer no além, onde o corpo é necessário, porque não há mais
nada além? O corpo quadro no museu exposto e quente onde a mão
sente seu pulso em tela ou pele de peles se esfregando nas roupas que
se raspam nas ruas lotadas? Como amar o corpo em seu corpo sem mais,
e viver nele esse amor sem distância e telefone, sem site e revista,
sem foto de comida às três da tarde de frente à praia em Cancun
que ninguém irá com seus corpos se banhar e se lamentam, mas não
lamentam perdê-los entre papéis e quartos de escritório, teses de
passado tempo, histórias de Stendhal?
Na carência de alimento, o amor
cria narrativas. Um início, um meio, nunca um fim. E sempre, ou
quase sempre, um corpo secundário, um sentimento inflado e vermelho,
em primeiro plano do palco, tentando convencer a todos que existe
autônomo. Corpo como um copo com pouco líquido que cheira sândalo,
mas não se bebe com a boca com sede de água de poço fresca, para
lavar o esôfago da fala inútil e fatal que tenta provar que o amor
é além-corpo.
Pensar
o corpo nele, seus poros. O corpo no corpo, seu devir. O corpo
principal e central, que emana e pulsa, que esquenta a mão do outro
quando há toque, umedece-a. Sentir o corpo pulsando nas palmas das
mãos, nos lados dos dedos. Dar-lhes cheiros de corpo ou de jasmim,
quando achar ocasião. Vesti-lo de aromas em pedaços e pensar: é
corpo que se sente nas narinas, também corpo. É corpo que se sente
na boca, nas línguas e nos dentes. É corpo que se sente no outro
corpo emaranhado, onde tudo se perde: noções absurdas de tempo e de
limites. Um corpo com-sem fronteiras, por fim, implementado, pleno.
Capaz de ousar o fim. Mas é corpo que há, sem mais.
Além
é palavra. A palavra corpo e sua função de sujeito e sua função
de objeto. A palavra corpo descrita da morfologia: substância
substantiva substantivável de sublime. O corpo nu, sem palavras. O
corpo aquém e além da linguagem, debaixo da unha e na pele riscada
de vermelho, no cabelo que se aperta e se afaga com suor e sabão. A
impossível implosiva violência significante impondo ao corpo o
corpo, contra e entre, para e desde, onde e perante, por-se atrás,
por trás, através. Terminando o inalcançável termo, tato palatal,
saliva e espuma, onde não há divisórias. Corpo, enfim, sujeito e
objeto sem sintaxe.