segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

corpulso


Sem corpo é impossível. Porque o corpo é imperioso, necessário. Urgente. Definidor e problemático, ponto partido de partida de onde sai-se ao outro, também corpo, nos seus espaços urbanos cheios de corpos e suas linguagens, cheios de corpos e seus suores, cheios de corpos partidos em mãos e braços, paletós e pulmões, partes indefinidas de biologia. O corpo catalogado, dividido, numerado, tatuado, contato e expandido. Explorado até o enjoo, abusado e perecível. Comum. Substantivo comum sem gênero.

O corpo definido, moldado, medido, pesado, na ideia de corpo comum social onde há um corpo especial que não é o meu, não é o seu, não é de gente possível de anatomia natural. O corpo a que se deve amar, mas sem corpo. Por que? O que se deve ter, que não é. Por que? Onde o que é corpo engloba olhos e vaginas, pênis e pâncreas? Onde joelhos e onde amídalas? Onde isso perde o nome que tem na medicina e volta ao corpo como corpo, inteiro, para ser tocado e sentido, ser bebido e devorado em rituais antigos, sugada cada gota sem desfazer a face, preservado em faixas embebidas de ervas para renascer no além, onde o corpo é necessário, porque não há mais nada além? O corpo quadro no museu exposto e quente onde a mão sente seu pulso em tela ou pele de peles se esfregando nas roupas que se raspam nas ruas lotadas? Como amar o corpo em seu corpo sem mais, e viver nele esse amor sem distância e telefone, sem site e revista, sem foto de comida às três da tarde de frente à praia em Cancun que ninguém irá com seus corpos se banhar e se lamentam, mas não lamentam perdê-los entre papéis e quartos de escritório, teses de passado tempo, histórias de Stendhal?

Na carência de alimento, o amor cria narrativas. Um início, um meio, nunca um fim. E sempre, ou quase sempre, um corpo secundário, um sentimento inflado e vermelho, em primeiro plano do palco, tentando convencer a todos que existe autônomo. Corpo como um copo com pouco líquido que cheira sândalo, mas não se bebe com a boca com sede de água de poço fresca, para lavar o esôfago da fala inútil e fatal que tenta provar que o amor é além-corpo.

Pensar o corpo nele, seus poros. O corpo no corpo, seu devir. O corpo principal e central, que emana e pulsa, que esquenta a mão do outro quando há toque, umedece-a. Sentir o corpo pulsando nas palmas das mãos, nos lados dos dedos. Dar-lhes cheiros de corpo ou de jasmim, quando achar ocasião. Vesti-lo de aromas em pedaços e pensar: é corpo que se sente nas narinas, também corpo. É corpo que se sente na boca, nas línguas e nos dentes. É corpo que se sente no outro corpo emaranhado, onde tudo se perde: noções absurdas de tempo e de limites. Um corpo com-sem fronteiras, por fim, implementado, pleno. Capaz de ousar o fim. Mas é corpo que há, sem mais.

Além é palavra. A palavra corpo e sua função de sujeito e sua função de objeto. A palavra corpo descrita da morfologia: substância substantiva substantivável de sublime. O corpo nu, sem palavras. O corpo aquém e além da linguagem, debaixo da unha e na pele riscada de vermelho, no cabelo que se aperta e se afaga com suor e sabão. A impossível implosiva violência significante impondo ao corpo o corpo, contra e entre, para e desde, onde e perante, por-se atrás, por trás, através. Terminando o inalcançável termo, tato palatal, saliva e espuma, onde não há divisórias. Corpo, enfim, sujeito e objeto sem sintaxe.

domingo, 28 de janeiro de 2018

Estudo de arquitetura - I


Perdi os afetos, suas sensações, por debaixo dos escombros. Numa noite de há muito, quando começou a demolição. Os nãos entraram num quarto frio, de madrugada, e eu estava sozinho. Cada um deles quebrou uma parte da arquitetura do quarto. No dia seguinte, mais vieram, com marretas e picaretas. No terceiro dia, outros, dirigindo tratores. Num determinado momento eram muitos e trabalhavam em turnos, sem cessar, quebrando cada parte da casa que com cuidado se construiu.
Ora bola de guindaste, ora lâmina de picareta, ora marretada, ora com as unhas, ora com os dentes, com as mãos, com a cabeça. Cada um quebrou uma parte da casa – ralo de banheiro, beira de porta, fechadura, cantoneira de estante, pedaço de vidro de janela, chuveiro, canos de água. Quebraram todo o reboco, o refino da tinta e as horas gastas escolhendo a cor de cada cômodo, a textura aveludada da tinta trabalhada para não deixar manchas nas paredes. Trituraram azulejos portugueses, comprados em raras feiras, escolhidos um a um, a rosa desenhada nos ladrilhos da sala, os pastilhados vermelhos de verniz sobre a pia de pedra onde houve um jarro de prata.
Por muito tempo gritei que parassem. Segurava-me nos móveis, aguerrido, impedindo que fossem lançados ao esquecimento. Punha-me em pé ante a parede. Tranquei correndo portas e janelas. Escondi segredos no quintal, debaixo de oco assoalho, nos batentes das portas. Gritei por ajuda na rua vazia, com braços ao ar, enquanto mais nãos chegavam aos batalhões – de variado formato e tamanho, brutamontes. Em vão. Todos os detalhes destroçados. Quebrados um a um com variada força e diversa violência. 
Acabou-se a tinta na parede. Se houve azulejo, como lembrá-lo a cor e o formato exatos? Não há mobília, lançada longe no primeiro movimento. Parafusos e pedaços de restos pelo chão, e pó que gruda nas calças, nas mãos, nos sapatos. Tudo é demolição.
Hoje, tijolos e rachaduras. Só a carne e os ossos da casa. Sua densa fundação.
      A crueza das rachaduras, seu ceticismo. Nelas não há nenhum sentimento além de densa tristeza: fundação do edifício. Opaca e irregular, subindo, preenchendo os espaços das rachaduras. Só elas, tijolos, uma densa argamassa cinza que os liga, material diverso do cimento. Tijolos feitos de material diverso do barro, mas vermelhos, pulsantes. As rachaduras vagas que não mostram o que há do outro lado, indo ao fundo das paredes, sustentadas de opaca cor.
Em pé na sala destelhada, aquele ceticismo concreto me olha. Terminado o quebrar, quando a sala ainda não estava por completo vazia para que eu pudesse olhar a carne e os ossos da casa, os nãos permaneceram ameaçadores, sem ação. Preparavam-se para demolir as paredes, pôr fim a tudo, de vez. Um exército experiente, capaz de uma violência conjunta. Todas as ferramentas e máquinas, fumaças azuis pelo céu, e o rosnar sedento de seres enormes com ferramentas em punhos prontos para se lançarem contra tudo. Eu estava em pé, na sala destelhada, olhando as paredes.
Ventou. Um vento frio, incomum, por entre as frestas. Baixei os olhos, desci os braços. O silêncio desceu inteiro na sala, no que havia sobrado da casa: seus destroços. Reluzia por entre as rachaduras uma memória de cor e, pela primeira vez, havia algo além. Cores disformes, ainda, sem muita esperança. E um silêncio pavoroso se fez, denso. Cobriu todos os nãos de profunda indiferença.
Não havia mais temor. Virei-me e fitei-os nos olhos. Fitando os nãos, um a um, eles nada comunicavam. Nada negavam porque nada os sustentava por trás. Olhei-os nos olhos cheio de indiferença. E eles berraram. Os nãos só amedrontam quando há algo de valor que eles negam. E os nãos berraram mais alto, cuspiram no meu rosto. Desesperados, rasgaram a minha camisa,  sacudiram meu corpo, bateram nos meus braços, nos meus ombros com dura violência que pude sentir o calor de suas mãos. Ameaçaram me destruir junto com a casa, aceleraram os motores. Em vão. Enquanto olhava a cada um nos olhos, braços iam descendo, vozes silenciando, e não havia nada, absolutamente nada neles. Vazios, por completo.
Então, penderam os braços, desligaram as máquinas, e saíram. Um por um, devagar. Quando o último não saiu, não tinha mais rosto ou forma de brutamontes. Era um menino, abraçado a um pedaço de pano, a quem afanei o cabelo e sorri. Um menino, pequeno e indefeso, o primeiro brutamontes que me entrou porta a dentro arremessando meus livros à rua. Um menino chorando, a quem afanei o cabelo. Saiu.
Hoje, a casa vazia, as rachaduras. Chutado um pedaço de caco de ladrilho, encontro um pedaço de afeto. Lembro-me dele, de um sonho! Vasculho um pouco mais os escombros e acho outro, grudado em uma carta. Mais um pouco, e salta outro de detrás de um caco de espelho.
É preciso buscar os afetos sufocados pelos escombros. Um a um, um por dia. Procurá-los à exaustão. Tentar lembrar suas cores, talvez partir delas para escolher novas, se já mortas. Deixar ventilar o ar entre as frestas das rachaduras. Separar, escolher, descartar, varrer com vassoura grossa. Achá-los onde as coisas se perdem. Um a um, um por dia. Redescobrir os afetos, descobri-los. Mas, sobretudo, no momento em que descobertos – nesse pequeno instante – olhá-los fixamente. Olhá-los para apreendê-los. Depois, deixá-los ir.

sábado, 27 de janeiro de 2018

Até, Corujão. Até...

As três coisas que Thaís mais detestava em mim na época do nosso relacionamento eram eu chamar as meninas das Intocáveis de "minhas meninas"; da maneira como eu abraçava minhas amigas e de quando eu me sentava no Corujão. 

Uma vez, quando reatamos - nas muitas vezes em que reatamos até 2007 -, num bar em um posto de gasolina em Manhuaçu, Thaís sorriu quando eu disse que era estranho vê-la sentar-se em um bar e não reclamar de tudo e ela confessou que aprendeu a gostar deles comigo, em especial nas intermináveis noites no Corujão. 

Foram intermináveis noites. Como se tudo só fizesse sentido quando o sol nascia e eu ainda estava lá, sentado com os pés para cima, enquanto lavavam o chão. Intermináveis noites que precisei esperar as seis da manhã para raspar a conta e pagar minha parte no mexidão e nas cervejas. Noites de insônia que tive à porta da Sé, sentado jogando conversa fora, olhando o movimento do Corujão sem nem lá entrar porque não tínhamos dinheiro para tomar cerveja e o intuito era mesmo ficar na porta da Sé jogando conversa fora. 

No Corujão discuti o pensamento de Foucault, aprendi sobre História da Arte, sobre Teoria da Literatura, sobre samba, sobre marxismo, sobre Freud. Tudo recheado de leveza, de uma bobagem ou outra, de muita risada. Lá foi o primeiro bar que amanheci com o meu violão - o meu, que quase nunca saía de casa, mas que passeava pelas ruas de Mariana nas praças, no coreto e, principalmente, no Corujão. Lá, todas as vezes, toquei sempre dois sambas-canção: Boemia e Mulambo. Muitas dessas noites viraram histórias. Boas histórias. 

Cada reforma, cada mudança de lugar do balcão, cada mesa trocada, cada inovação eram recebidos por mim como piada. Mas o Corujão era preciso sempre, ali, como uma porta aberta ao meu eterno ser insone e notívago, que precisa da noite para ver o melhor e o pior das pessoas, seus arroubos mais profundos de medos, falsidades e de amor verdadeiro a qualquer coisa - porque uma vez um amigo me disse que não há amor mais verdadeiro que o de um bêbado para outro bêbado quando esses se declaram um para o outro. 

A precisão do Corujão - estar ali por toda a madrugada - sempre me acalmou de alguma forma. Porque, mesmo depois de sair de Mariana, nos lugares de onde saía para ir para lá e chegar de madrugada, eu sabia que poderia esperar o nascer do dia no Corujão, em uma daquelas mesas, e alguém que conheço há muito estaria lá, e eu me sentaria a mesa e beberia, porque todos, em algum momento, sempre terminavam lá. 

Há muito de romantismo no que digo, claro, porque todo sentimento dessa linha o é - em especial os bregas sentimentos de saudade que temos quando algo simplesmente acaba (o que é comum no caso de bares e comércios). Mas, mesmo que eu não consiga passar por esse embelezamento e romantização dos vícios - comuns nos sambas que amo - há algo meu que sumiu e que some aos poucos.

Nos últimos anos, Mariana muda profundamente. A lama da Samarco riscou do mapa vidas, histórias, famílias e suas memórias. Algumas dessas pessoas atingidas, depois de passado o caos, talvez numa noite de sufoco em que é preciso desafogar a cabeça de tantas dores e perdas, foram recebidas no Corujão para aquela dose de ilusão de alegria que os bares estão repletos. Para tentar achar um caminho qualquer. Muitas vezes, antes mesmo da lama da Samarco, era lá que os trabalhadores, saindo de seus turnos da mineração, iam comer o último prato, beber uma cerveja e dormir até o próximo turno, no vai-e-vem que são os ônibus das mineradoras. Lá, os guias de turismo comentavam as altas e baixas das temporadas, gastavam o dinheiro de seu trabalho.  Lá, os estudantes de muitas épocas, os professores de muitas épocas, iam esquecer um pouco a dor da solidão que é morar longe dos seus enquanto se estuda, solidão compartilhada que faz com que em nós haja sempre um sentimento de acolhida e amor onde quer que hoje cada uma daquelas pessoas esteja. 

Então, para além do romantismo, o Corujão foi palco do que a vida hodierna nos dá: o massacre lento do trabalho, o desgaste do discurso que está por trás do sonho, o espaço onde todos são iguais e podem, num hiato de noite, se verem livres de suas dores e preocupações e xingar o presidente - seja do Clube de Futebol, da Empresa, do País. 

E o Corujão fechou. E todo esse movimento de ilusão será assumido por outro bar, como em todo lugar. E tudo seguirá igual: as mineradoras explorando seus funcionários nos turnos malucos - porque as mineradoras nunca dormem - os estudantes com as dores por trás de seus sonhos discutindo teorias e falando da vida dos outros, os desempregados que conseguiram um trocado, um amante que terminou um amor. Tudo em outro espaço. Mas não mais no Corujão, que em Mariana, era o meu.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2018

Atlântica (parte XII)




Eu sempre fui o que foi de mim? Quanto mais velho, mais jovem. Quanto mais jovem, mais perdido fica. Maturidade… sem explicação bate à porta às quatro da madrugada e é só insônia, tédio e medo. No fim, é isso um pouco, com um pouco de gosto de algo alcoólico que se bebeu para chegar o sono, evitando o remédio fácil. Amanhã, recomeço. Mas o que? Recomeço o estar de novo no furacão, na vigília constante dos dias sem muito além, no dia de hoje com a certeza de paz diminuta, essa paz a duras conquistada. Pensa? Mas há a certeza do além, no quanto mais velho, mais jovem. A clareza do além. Há clareza nisso? No além? Mas o que há são perguntas e permutas. Permutas, sim, há muitas, todos os dias. No sorriso novo ganho na multidão, na música que se descobre, no que ainda se descobre de corpo, porque na mudança o perdemos um pouco, esquecemos.

Outro exercício do dia: o esquecer. Esquece-se de tudo, de propósito. Os nomes dos antigos nas fotos que não entendemos mais. No olhar na foto que não nos reconhecemos, na juventude. Na foto na cama, ao lado dela, ao despertar de há mais de dez anos, quando ainda despertávamos juntos, de mau humor diante do dia claro que se anunciava, numa cama de solteiro velha num quarto mofado. O dia, seus desafios tão menos caprichosos a cada ano que passa. A cada ano de dia, de vida perdida, de mesma coisa sem o despertar conjunto de há dez anos porque nem cama e nem quarto, nem ela ou coisa válida hoje existem, e sobrou o despertar do todo dia, o despertar somente, o desagradar-se de contentamento.

Quanto mais velho, mais jovem. Mas o corpo sente, a paciência acaba e a tolerância aumenta. Tolera-se a vida, cada vez menos inteligente. Cada vez menos, por mais que se busque, mas há os livros, ainda um refúgio possível. Livros, sem tomadas, sem eletricidade, que dependem de luz externa a eles para serem lidos, sem muito sol, por favor, para não danificar o papel. O toque no papel, seu cheiro. Livros e o eterno contato sensual que com eles temos, o valor táctil dos seus poros, seus suores noturnos. Livros. Quanto mais velhos, mais jovens. Livros: o único caminho possível.