quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Preparação de partida - parte I


Há preparação de partida, sem tantas histórias desta vez. Poucos poemas escritos (ruins quase todos), nenhum texto em prosa que agrade (e muitos parados empoeirando), algumas rugas, livros que se empilham e questões teóricas cada dia mais profundas que sentem, em cada dobra, o peso das decisões. Nenhum romance lido por inteiro num sábado, a descoberta da poesia alemã do século XX, o estudo de grego e hebraico antigos, Dante e Petrarca de foices em punho lutando por um caminho no tempo da eternidade. Até o nada, a velha proposta, parou – não sei se em suspensão ou em queda – ao som deste constante rio em que pedras militantes lutam, como eu, contra a ordem forçada que nos querem convencer a aceitá-las ao chamá-las “naturais”.
Houve neste tempo o vermelho, poucas discussões efetivamente políticas, densas, como as que minha cozinha estava tão acostumada! E esta falta frustrou as panelas, as xícaras, os pratos de vidro, os garfos e, principalmente, as facas. O sumiço da política no almoço deu lugar a discussões de praça que passavam ao largo de tudo isso que antes era pão, café, arroz e feijão. Falam tão pouco desses assuntos! Mas postam fotos, frases prontas no tempo dos novos aforismos sem contexto e de frases sumárias que impõem o silêncio.
     Sinto nos dedos o tempo do fim dos debates, a morte do espaço em que se discutir qualquer assunto era possível, mesmo que em tom discordante. As listas com os nomes de quem diz "não", creio, já estão em redação em algum lugar. Sobrou de tudo a vontade de quebrar o vaso proibido, do alto do aparador, relíquia de família, só para ver que barulho faz quando cai. Caiu e não fez barulho e assustou mais pelos cacos do que pelo efeito da queda, a magia do vaso na fração do ar.
Há caixas que nem saíram e outras que nem chegaram. Há um encontro adiado cheio de amores e dores entre mim e ela que me espera, diferente de quando a deixei, tão diferente e florida naquela manhã de agosto. E nossos desafetos, nossas risadas, nosso ainda encontro casual se dá, repentino, quando uma flor se lança suicida na avenida. Compusemo-nos, os dois, no tempo que nos distanciamos, de carícias íntimas, esses grandes amores que, por amedrontadores, cativam-nos e nos doem nos ossos.
Mudamos, enfim. De mudanças e mudanças, todo ato é partida, toda decisão é uma flor suicida na avenida, curtindo o vento da queda antes de atropelada por um ônibus. E a partida, desta vez, é o vaso-relíquia que caiu da estante e não fez barulho, nem trouxe reprimenda nem castigo, mas quebrou a tradição de família: aquela que insiste, de alguma maneira, em guardar nas coisas o ar respirado por nosso passado e pelos nossos ancestrais. A isso, creio, não chamo mais de lar.

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