sexta-feira, 24 de novembro de 2017


a memória dos mortos
seus sedimentos

o que nos acaba no declive
e o que nos impõe o objeto.

os mortos
seus dissabores
e o que há de rançoso no ir
que nos coloca a amarga
troca

troca morosa da morte
lenta
que transforma vivos em agiotas:
um barganhar somente

onde o corpo do morto pouco vale
mas espera:
rutila a cor insossa que consome

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Eu posso vir a ser preso por isso (?)


As últimas ações que se deram no mundo da arte, iniciadas com a prisão de Maikon Kempinski em sua performance “DNA de DAN”, em Brasília, em julho deste ano, desencadearam um movimento articulado e perigoso que desembocou no cancelamento da exposição Queermuseu, em Porto Alegre, e a recente polêmica da performance do MAM, na qual uma criança, acompanhada de sua mãe, toca o corpo nu de um homem.
Chama a atenção alguns elementos nas ações contra os demais cancelamentos e censuras que a arte vem sofrendo ultimamente. A primeira é a de que a caça não é à arte somente, mas aos locais públicos de sua exposição. Tanto a Polícia, no caso da performance “DNA de DAN”, em Brasília, quanto o MBL, em Porto Alegre e em São Paulo, usaram de discursos conservadores contra espaços de arte – seja a rua, sejam museus –, com amplo apoio de uma parcela também conservadora da sociedade.
Juntamente com essas iniciativas, a recente decisão do STF sobre o ensino religioso nas escolas e a campanha por uma Escola sem Partido – absurda do ponto de vista pedagógico e político – preocupam porque direcionam dois olhares complicados. Ambos ligados às práticas públicas e privadas.
Se uma pessoa não gosta de uma obra de arte ou de uma performance, isso é um problema individual que está ligado aos seus valores, gostos e crenças. E é legítimo que essa pessoa desgoste. Agora, quando a questão é silenciar a arte, esse problema passa a ser coletivo. Se uma pessoa tem uma fé na qual acredita e parte dela para observar o mundo, essa é uma decisão individual. Quando o ensino religioso de determinado segmento começa a ser imposto por órgãos de Estado isso é um problema coletivo. E quando o problema é coletivo, mais do que tensões de frente devem ser colocadas à mesa para a discussão.
Uma empreitada contra a arte e outra contra a livre escolha religiosa, ao mesmo tempo, são preocupantes. Primeiro porque o que se faz, em uma, por incisivo apelo a valores de um grupo, é o banimento de pessoas dos espaços onde estão as artes. Há, assim, um crescente silenciamento dos lugares questionadores da sociedade, que problematizam valores, posturas e condutas públicas. Se a onda seguir por esse caminho, em breve teremos livros proibidos, músicas proibidas, e a manifestação coletiva dos discursos, a liberdade de expressão, a democrática relação da coletividade com a arte estarão ameaçados. Além disso, se um único grupo ditar o que deve ou não ser arte e o papel que tenha que desempenhar, isso limitará a arte a atender e propalar uma única ideologia, um único conjunto de valores.
No mesmo caminho, uma linearidade de ensino religioso que contemple um único viés de doutrina – porque as religiões têm suas doutrinas – problematiza a pluralidade do espaço da sala de aula. Em um país de maioria cristã, muçulmanos, budistas, taoistas, umbandistas, membros do candomblé, kardecistas, ateus, agnósticos sofrerão imposições que extrapolam o espaço privado e o direito individual de escolha.
Em cenários alarmantes de retrocesso de dinâmicas coletivas, outras questões se colocam. A quem isso interessa? Quais as forças que, conjuntamente, patrocinam ambas as ações? Quem financia e a quem isso será interessante?
Não é possível pensar isso desligado da campanha que ganha adeptos pelo país em favor da volta do Regime Militar. Também não podemos desligar isso da crescente onda fascista em que se ampara Jair Messias Bolsonaro na sua caminhada política visando o Planalto. Muito menos deixar de pensar isso quando políticas públicas de retrocesso e de austeridade econômica tomam o país. Todos esses discursos estão, em algum ponto, muito ligados. Amarrados a ideologias perigosas que já vivemos em outros tempos.
O discurso unilateral e individual da moral não pode e não deve entrar sem crítica nos espaços coletivos e públicos que, por lei, são de livre expressão. Qualquer discurso que silencie a arte ou que impossibilite a diversidade – sexual, racial, religiosa, etc – é problemático e antidemocrático. É ser contra as múltiplas formas de discurso, é ser contra os espaços públicos de diversidade, é ser contra a pluralidade e a coexistência da diferença, patrocinando posturas em que uns tenham mais direitos que os outros.
Assim, reitero: há mais por trás das manifestações contra a arte. Há mais por trás nessa decisão do STF. E o que está por trás não é nada ingênuo e nada distante de uma ideologia cruel que pode – e vai – ser muito útil ao que está se arquitetando atualmente no país.

sexta-feira, 17 de março de 2017

torcido de torcida


A vida sobre todas as perguntas essenciais. Mas espero. Espero as coisas que não se explicam. Onde está meu amor preto e branco. Imenso, me vem – seja lá por qual caminho – nesse vendaval. Porque eu não entendo muito bem de cores. Entendo quase nada de amor. Mas o amor preto e branco, que me vem, é além da carne das coisas, estranho e indomado. Torcido. Amor que torce, me torce por dentro. Amor torcido de torcida. Feito blusa no varal. Não entendo o amor pelo Atlético, mas eu entendo de camisas no varal e tempestades. Estendido, meu amor conhece profundamente os desafios contra o vento, os vendavais e as tempestades. De torcer por dentro o vento. E o ultrapassar preto e branco, profundo e intermitente, este infinito bipartido.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016


Um despertador de manhã. Uma vida corrida tentando provar que a vida vale a pena. Outro despertador de manhã. Uma página social dizendo a você que todos são felizes porque é preciso ser feliz. Outra guerra. Outras guerras. A vida pânica no terrorismo de estado. Os fantasmas de sobrecasaca. Numa encruzilhada da baixa, trombamos em um tiro de 1914. Um tiro de 1914! E medidas políticas anteriores ao século XX. E a nova valorização das castas.

Mas é Natal: entupa-se de ilusão e falsa caridade. Entupa-se de discursos para não lotar as ruas contra o caos armado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Lições do Rio São Francisco


1-) Diante de um rio calmo, o ser humano se sente maior que o rio.

2-) Um rio calmo esconde um fundo lodoso e turbulento. Um rio enfurecido mostra seu fundo de pedras.

3-) A praia depende da cheia. O lado da praia agora é a outra margem. Esta aqui agora é barranco, mas já foi praia.

4-) As ilhas dependem da cheia. No rio, elas navegam, trocam de lugar e porto.

5-) O rio é a soma de todos os rios que o formaram, mais o rio que é nesse instante, mais a soma dos outros que será logo em seguida com a soma de outras águas vindas sabe-se lá de onde.

6-) Outra margem é questão de perspectiva.

7-) Uma ponte cria infinitos lugares deste e daquele lado e os separa. Depende de onde se está.

8-) Um cais é sempre uma espera. Partir e chegar são partes do mesmo movimento. E tudo depende da cheia, de barcos, de movimento. Sem isso, a espera segue nos seres. Não no cais.

9-) Com ou sem pressa, turvo ou límpido, o rio sempre chega a algum lugar (seja um cano de abastecimento de água da cidade, um açude, uma hidrelétrica, um cânion ou o mar). E o rio não decide isso nem tem sobre isso qualquer controle. É uma questão de contingência. Uma vez deixada a margem, o rio receberá outros nomes para que esqueça que é rio. Mas sempre será rio.

10-) A travessia não existe. É travessura. Mas existe. E não é travessura.

11-) O tempo contábil não existe. É uma dimensão da matéria e nós não a entendemos bem, como também não entendemos bem o espaço e o movimento.

12-) Rio é um signo arbitrário, um conceito e uma metáfora.

13-) O rio é tudo o que se diz dele – suas lendas de várias línguas, seus nomes em várias geografias, todos os seus caboclos. Por isso vive nos cantos dos ribeirinhos.

14-) O canto (das lavadeiras, dos pescadores, dos barranqueiros, de Iara) é o enigma central e o mistério do fundo do rio.

15-) Uma cobra pode nadar em todas as direções nas águas. Se parar, irá sempre seguir em duas direções somadas. E nadar é um movimento no tempo e no espaço, dimensões que não entendemos bem.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Precisamos falar dos pais de Guilherme


Guilherme Irish não foi o único jovem militante de esquerda que teve um pai de direita. Muito provavelmente não foi o único jovem de esquerda com um pai fascista. Também creio que o pai de Guilherme não foi o único pai do país que tenha pelo menos uma das seguintes adjetivações a seguir: machista, misógino, homofóbico, racista, preconceituoso, xenofóbico, fundamentalista, ou todas juntas. Também creio que em muitos embates discursivos entre pai e filho, o pai de Guilherme o tenha obrigado a se calar, proibido de emitir suas opiniões, de defender seus ideais e heróis. E creio também que o pai de Guilherme não é o único pai do país que tenha garantido o seu direito particular de fala baseando-se no argumento hierárquico de que ele era pai. A frase “Me respeita, eu sou seu pai. Eu mando em você” (o que para muitos pais significa o direito ao desrespeito irrestrito e inconsequente da intimidade, da individualidade e das crenças de seus filhos). Mais ainda, o pai de Guilherme não foi o único, creio, que possa ter, mais de uma vez, usado o argumento vago e impreciso de que as opiniões omitidas pelo pai precisavam ser respeitadas, independente se elas não só desrespeitavam o filho como também eram, historicamente, carregadas de violências.

A diferença é que o pai de Guilherme puxou o gatilho contra o filho. E mesmo tendo puxado o gatilho porque não aceitava a postura política do filho, não alardeou ou apareceu nos jornais com a atenção devida. O pai de Guilherme passou de todos os limites, e isso, além de inegável, é inquestionável.

O pai de Guilherme chegou  às vias de fato. Muitos não chegam. E não são poucos os que, como ele, tecem com seus filhos e filhas discursos de ódio que desrespeitam, destroem psicologicamente, maltratam com base no direito irrestrito que creem ter por se colocarem nesse lugar complexo que é o de um pai. Muitos pais parecidos com ele muito provavelmente usam de outras formas de violência para matarem simbólica, discursiva e ideologicamente seus filhos e filhas.

Muitos pais espancam seus filhos e filhas por eles serem ou pensarem diferente. Não são poucos os dados de filhos e filhas gays expulsos de casa, espancados, silenciados, psicologicamente agredidos por pais como o pai de Guilherme. Não são poucos os casos de filhos e filhas que tiveram suas opiniões silenciadas, sejam elas políticas, religiosas, de gênero, etc, por pais como o pai de Guilherme. Mas o pai de Guilherme puxou o gatilho. Os outros já puxaram, puxariam?

Além dos tiros em Guilherme, quantos tiros metafóricos pais como o de Guilherme já não deram em seus filhos e filhas? Quantos não assassinaram psicologicamente seus filhos por eles divergirem dele em algum ponto? Quantos pais, munidos do direito auto-outorgado de plenos poderes sobre as mentes de seus filhos e suas filhas não foram, também, assassinos em potencial ou simbólicos de seus filhos e filhas?

O caso de Guilherme não é, infelizmente, um caso isolado. E não acredito que o fascismo que motivou o pai de Guilherme tenha sido, somente, resposta de um momento político levado às últimas consequências. Porque os pais como o de Guilherme ainda estão em muitas casas brasileiras, puxando outros tipos de gatilho, matando seus filhos aos poucos por eles não se enquadrarem nos desejos ideológicos e políticos que querem impor aos filhos e às filhas. O fascismo está dentro das casas, nos métodos de educação que formaram esses pais como o de Guilherme. No machismo de cada dia, na misoginia de cada dia. Em cada fala que um virtual pai de Guilherme tenha dito que “bandido bom é bandido morto”, “mulher é tudo vadia”, “homossexualidade é doença”, “preto não é gente”, “eu não confio em gente desse país”. Frases assim são ditas todos os dias pelos pais como o de Guilherme pelo país. Frases assim levaram o pai de Guilherme a matar o próprio filho, porque para o pai de Guilherme “comunista tem que morrer”, e ele cumpriu o dito. Matou um comunista, não o filho. Quando percebeu ter matado o filho, matou-se em seguida.

O que me preocupa é que outros pais de outros Guilhermes continuam por aí. E eu não sei mesmo até quando filhos e filhas serão assassinados de muitas maneiras por seus pais fascistas, sob a máxima de “Eu sou seu pai. Eu posso. Você é meu.”. Até quando veremos notícias desse tipo?

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Atlântica - VII

algo de remanso no fundo do rio quando bate a cara ao mar: amor, esse dilúvio.
enchendo os poros do corpo de outro corpo inalcançável, os dedos e os olhos comungam da mesma linguagem. amor, como o que esculpe o fundo do rio antes de, lento, bater a cara ao mar. o mar, tempo impreciso, revolverá o amor em seu ventre amplo e fundo. seu ventre maduro e inteiro, pleno de vida de antes. da vida anterior aos seres, época em que o planeta era só o fervilhar das entranhas, as lavas profundas de um amor primeiro.

algo estranho no remanso do rio: o ato. amar, um ato imperioso e impreciso, como o romper de uma crisálida, o estilhaçar a vidraça a pedras e correr. enquanto se corre, ter no rosto o beijo leve do amor que venta, secando becos e espalhando gotas de água suja da rua. água suja que chegará ao fundo do rio manso. esse rio, nossos rios, que se debatem profundos entrelaçando unhas e cabelos, linhas e salivas.