sexta-feira, 17 de março de 2017

torcido de torcida


A vida sobre todas as perguntas essenciais. Mas espero. Espero as coisas que não se explicam. Onde está meu amor preto e branco. Imenso, me vem – seja lá por qual caminho – nesse vendaval. Porque eu não entendo muito bem de cores. Entendo quase nada de amor. Mas o amor preto e branco, que me vem, é além da carne das coisas, estranho e indomado. Torcido. Amor que torce, me torce por dentro. Amor torcido de torcida. Feito blusa no varal. Não entendo o amor pelo Atlético, mas eu entendo de camisas no varal e tempestades. Estendido, meu amor conhece profundamente os desafios contra o vento, os vendavais e as tempestades. De torcer por dentro o vento. E o ultrapassar preto e branco, profundo e intermitente, este infinito bipartido.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016


Um despertador de manhã. Uma vida corrida tentando provar que a vida vale a pena. Outro despertador de manhã. Uma página social dizendo a você que todos são felizes porque é preciso ser feliz. Outra guerra. Outras guerras. A vida pânica no terrorismo de estado. Os fantasmas de sobrecasaca. Numa encruzilhada da baixa, trombamos em um tiro de 1914. Um tiro de 1914! E medidas políticas anteriores ao século XX. E a nova valorização das castas.

Mas é Natal: entupa-se de ilusão e falsa caridade. Entupa-se de discursos para não lotar as ruas contra o caos armado.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Lições do Rio São Francisco


1-) Diante de um rio calmo, o ser humano se sente maior que o rio.

2-) Um rio calmo esconde um fundo lodoso e turbulento. Um rio enfurecido mostra seu fundo de pedras.

3-) A praia depende da cheia. O lado da praia agora é a outra margem. Esta aqui agora é barranco, mas já foi praia.

4-) As ilhas dependem da cheia. No rio, elas navegam, trocam de lugar e porto.

5-) O rio é a soma de todos os rios que o formaram, mais o rio que é nesse instante, mais a soma dos outros que será logo em seguida com a soma de outras águas vindas sabe-se lá de onde.

6-) Outra margem é questão de perspectiva.

7-) Uma ponte cria infinitos lugares deste e daquele lado e os separa. Depende de onde se está.

8-) Um cais é sempre uma espera. Partir e chegar são partes do mesmo movimento. E tudo depende da cheia, de barcos, de movimento. Sem isso, a espera segue nos seres. Não no cais.

9-) Com ou sem pressa, turvo ou límpido, o rio sempre chega a algum lugar (seja um cano de abastecimento de água da cidade, um açude, uma hidrelétrica, um cânion ou o mar). E o rio não decide isso nem tem sobre isso qualquer controle. É uma questão de contingência. Uma vez deixada a margem, o rio receberá outros nomes para que esqueça que é rio. Mas sempre será rio.

10-) A travessia não existe. É travessura. Mas existe. E não é travessura.

11-) O tempo contábil não existe. É uma dimensão da matéria e nós não a entendemos bem, como também não entendemos bem o espaço e o movimento.

12-) Rio é um signo arbitrário, um conceito e uma metáfora.

13-) O rio é tudo o que se diz dele – suas lendas de várias línguas, seus nomes em várias geografias, todos os seus caboclos. Por isso vive nos cantos dos ribeirinhos.

14-) O canto (das lavadeiras, dos pescadores, dos barranqueiros, de Iara) é o enigma central e o mistério do fundo do rio.

15-) Uma cobra pode nadar em todas as direções nas águas. Se parar, irá sempre seguir em duas direções somadas. E nadar é um movimento no tempo e no espaço, dimensões que não entendemos bem.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016

Precisamos falar dos pais de Guilherme


Guilherme Irish não foi o único jovem militante de esquerda que teve um pai de direita. Muito provavelmente não foi o único jovem de esquerda com um pai fascista. Também creio que o pai de Guilherme não foi o único pai do país que tenha pelo menos uma das seguintes adjetivações a seguir: machista, misógino, homofóbico, racista, preconceituoso, xenofóbico, fundamentalista, ou todas juntas. Também creio que em muitos embates discursivos entre pai e filho, o pai de Guilherme o tenha obrigado a se calar, proibido de emitir suas opiniões, de defender seus ideais e heróis. E creio também que o pai de Guilherme não é o único pai do país que tenha garantido o seu direito particular de fala baseando-se no argumento hierárquico de que ele era pai. A frase “Me respeita, eu sou seu pai. Eu mando em você” (o que para muitos pais significa o direito ao desrespeito irrestrito e inconsequente da intimidade, da individualidade e das crenças de seus filhos). Mais ainda, o pai de Guilherme não foi o único, creio, que possa ter, mais de uma vez, usado o argumento vago e impreciso de que as opiniões omitidas pelo pai precisavam ser respeitadas, independente se elas não só desrespeitavam o filho como também eram, historicamente, carregadas de violências.

A diferença é que o pai de Guilherme puxou o gatilho contra o filho. E mesmo tendo puxado o gatilho porque não aceitava a postura política do filho, não alardeou ou apareceu nos jornais com a atenção devida. O pai de Guilherme passou de todos os limites, e isso, além de inegável, é inquestionável.

O pai de Guilherme chegou  às vias de fato. Muitos não chegam. E não são poucos os que, como ele, tecem com seus filhos e filhas discursos de ódio que desrespeitam, destroem psicologicamente, maltratam com base no direito irrestrito que creem ter por se colocarem nesse lugar complexo que é o de um pai. Muitos pais parecidos com ele muito provavelmente usam de outras formas de violência para matarem simbólica, discursiva e ideologicamente seus filhos e filhas.

Muitos pais espancam seus filhos e filhas por eles serem ou pensarem diferente. Não são poucos os dados de filhos e filhas gays expulsos de casa, espancados, silenciados, psicologicamente agredidos por pais como o pai de Guilherme. Não são poucos os casos de filhos e filhas que tiveram suas opiniões silenciadas, sejam elas políticas, religiosas, de gênero, etc, por pais como o pai de Guilherme. Mas o pai de Guilherme puxou o gatilho. Os outros já puxaram, puxariam?

Além dos tiros em Guilherme, quantos tiros metafóricos pais como o de Guilherme já não deram em seus filhos e filhas? Quantos não assassinaram psicologicamente seus filhos por eles divergirem dele em algum ponto? Quantos pais, munidos do direito auto-outorgado de plenos poderes sobre as mentes de seus filhos e suas filhas não foram, também, assassinos em potencial ou simbólicos de seus filhos e filhas?

O caso de Guilherme não é, infelizmente, um caso isolado. E não acredito que o fascismo que motivou o pai de Guilherme tenha sido, somente, resposta de um momento político levado às últimas consequências. Porque os pais como o de Guilherme ainda estão em muitas casas brasileiras, puxando outros tipos de gatilho, matando seus filhos aos poucos por eles não se enquadrarem nos desejos ideológicos e políticos que querem impor aos filhos e às filhas. O fascismo está dentro das casas, nos métodos de educação que formaram esses pais como o de Guilherme. No machismo de cada dia, na misoginia de cada dia. Em cada fala que um virtual pai de Guilherme tenha dito que “bandido bom é bandido morto”, “mulher é tudo vadia”, “homossexualidade é doença”, “preto não é gente”, “eu não confio em gente desse país”. Frases assim são ditas todos os dias pelos pais como o de Guilherme pelo país. Frases assim levaram o pai de Guilherme a matar o próprio filho, porque para o pai de Guilherme “comunista tem que morrer”, e ele cumpriu o dito. Matou um comunista, não o filho. Quando percebeu ter matado o filho, matou-se em seguida.

O que me preocupa é que outros pais de outros Guilhermes continuam por aí. E eu não sei mesmo até quando filhos e filhas serão assassinados de muitas maneiras por seus pais fascistas, sob a máxima de “Eu sou seu pai. Eu posso. Você é meu.”. Até quando veremos notícias desse tipo?

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Atlântica - VII

algo de remanso no fundo do rio quando bate a cara ao mar: amor, esse dilúvio.
enchendo os poros do corpo de outro corpo inalcançável, os dedos e os olhos comungam da mesma linguagem. amor, como o que esculpe o fundo do rio antes de, lento, bater a cara ao mar. o mar, tempo impreciso, revolverá o amor em seu ventre amplo e fundo. seu ventre maduro e inteiro, pleno de vida de antes. da vida anterior aos seres, época em que o planeta era só o fervilhar das entranhas, as lavas profundas de um amor primeiro.

algo estranho no remanso do rio: o ato. amar, um ato imperioso e impreciso, como o romper de uma crisálida, o estilhaçar a vidraça a pedras e correr. enquanto se corre, ter no rosto o beijo leve do amor que venta, secando becos e espalhando gotas de água suja da rua. água suja que chegará ao fundo do rio manso. esse rio, nossos rios, que se debatem profundos entrelaçando unhas e cabelos, linhas e salivas.

domingo, 2 de outubro de 2016

O rio

o que traz de novo esse fundo lodoso onde o tempo leva galhas e quilhas. sobra o mar no fundo do velho Chico. o mar ancestral que nos abraça e me rememora o cais, aquele mar que mirava distante de uma janela. as quilhas esquecidas no fundo do rio e as cavernas que o Chico esconde: rio-mar deste sertão. 

nele mergulho os pensamentos. é imprecisa a necessidade de ter nos dedos os pensares e os pesares, saber o tempo, a questão, o quanto. quanto de quanto há em todo o resto, nas coisas acumuladas e na vontade de esbarrar por aqui, de não mais seguir encaixotando e desencaixotando a vida, escolhendo casas para depois? 

voltam os papéis e os gráficos, as datas em sequência. tempo... onde, tempo, desencobre as pedras e os limos? onde, tempo, eu saberei o tempo do tempo, seu passar, os manuais que as pessoas usam para se decifrar já que o outro é distante como o fundo do Chico, lodoso como o fundo do rio-mar? onde, tempo, descer ao medo e descansar?

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que sobrou


Queria poder dizer coisas boas, Mariana, dos tempos que revivemos em 2013. Mas não me lembro de muitas. Lembro que entre nós ficou só a resolução de que nosso amor é passado, e lá onde ainda sobra alguma nostalgia nos conciliamos no sonho.
Ainda sonho com suas ladeiras de pedras e noites de frio. Ainda sonho que abro a velha casa do Beco, suas portas cinzas de duas abas, abro as janelas e estou ali clandestino morando novamente no número 57, com janelas para o muro da casa da frente e barulhos no forro do teto. Ainda sonho que entro e está na sala o velho sofá ganhado, a mesa laranja, minha cama comprada com dinheiro que ganhei vendendo salgados na rua. Mas é sempre outra casa no sonho, habitada por desconhecidos que me toleram a visita por respeito a uma memória que é minha, e não daqueles que na casa vivem.
Mas não tenho sonho dos nossos anos de 2013. Deles tenho uma amarga e estranha lembrança, entre um cinza e outro de dias de chuva sem bucolismo e lirismo, de mofo nas coisas que realmente incomodavam, de aranhas venenosas de coloridas descendo pela lateral dos muros que pouco compreendia, que davam para o Ribeirão do Carmo e seu odor me invadindo as janelas. A vista arrepiante do Espinhaço fechando o horizonte e mostrando a ponta do morro por onde passavam carros barulhentos.
Há a lembrança do penhasco que Thaís me apresentou, de paisagem mudada, mesmo que fundo e opaco como quando o vi pela primeira vez. A rua íngreme que eu subia pensando em ir embora todo dia, com saudade dos afetos de Vila Velha, da Rua da Lama e da Ufes, daquilo que fiz de mim nos anos capixabas e que gostava tanto, tão distantes naquele vale frio onde fui morar por escolha.
No retorno à Mariana, naquele ano, muito se quebrou. Perdi a saudade apertada que tinha de tudo. Perdi o encanto de olhar o ICHS quando chegava, aquela sensação de ir ver um velho companheiro de estrada. E quando ia lá era outra dor estranha e difusa, de falta de encaixe absoluto, como se visitasse uma encarnação passada onde aquele que era eu não se mirava.
Saía à rua e revia velhos rostos conhecidos, mudados pelo tempo e pelos hábitos. Nas filas dos bancos, muitos comentavam que a sensação e imutabilidade em Mariana era um fantasma de lençol sobre a cabeça. Como se tudo em nós mudasse fundo e rápido, mas a cidade seguisse lenta. E nesses rostos vistos, rostos queridos de outras eras, achasse aqui e acolá lembranças como âncoras capazes de me dar razão na escolha mais infundada que já tomei na vida, talvez meu maior erro, por mais que necessário.
Voltar à Mariana não era voltar ao que deixei. Era perder. E perdi. Perdi duras e importantes ilusões. Perdi a força pungente e mutante do mar, perdi meu sono e dias a fio de leituras e trabalho. Perdi o carinho que enfeitava meus anos de graduação, recheado de saudade e alegria. Perdi aquela alegria que era chegar à cidade em meio à neblina da madrugada.
Vivi muito pouco do que queria, de fato, viver lá. Fui menos do que queria aos bares mais queridos, e quando ia era uma perda estranha, um desencaixe. Não joguei sinuca com velhos camaradas em lugares que me foram felizes. Não fui nem o mínimo que desejava à Ouro Preto, que ainda hoje mantém em mim a alegria de antes, aquela paixão que tivemos à primeira vista quando a visitei pela primeira vez em 1999, que alterou vertiginosamente a minha vida.
De Mariana, hoje, remonto um imenso quebra-cabeças. Nele há os sambas que cantamos nas madrugadas cheias de juventude e esperança. Há as risadas com Fernando e Marcel na sala da casa do Beco, quando ainda se chamava Lém Kaza e não era um lugar distante, estranho e contrário ao que foi como hoje. Há noites na porta do Corujão e do Sagarana e conversas boas com Edmar e Toninho. Há os papos meus com Fabrício e Giu na esquina da Rua do Seminário, quando saíamos das aulas de literatura abalados com tudo que líamos e pensávamos. Há filas do Bandejão com Mazzetti, Boga, Ana e Maguinho, com tantos outros quando ríamos da vida leve que levávamos. Há tardes nos bancos do jardim com o Boy, quando falávamos de nossas primeiras experiências como professores. Há as tardes que passei com a Bia falando de arte e tomando café, os dias sentados pelo ICHS conversando com Vanessa, falando de seus poemas, os dias que sentei e desabafei coisas e devaneios com Murafá ouvindo Chico. Há o redondo e suas melhores horas de ácidas e sarcásticas piadas, com pessoas que se hoje lá estivessem e eu pudesse acioná-las, seria divertido. Hoje, são espaços vazios desses afetos cada um dos lugares onde tudo isso se deu.
Hoje sou eu o estranho no meio de tudo quando penso nessas lembranças todas. Estranho até a mim mesmo quando olho as fotos daquele tempo e quase não me vejo nelas. Estranho por entender que nada retornará e que é inútil sentir essa falta, falta que me motivou ao erro e que com ele trouxe esse gosto amargo que hoje carrego.
Por isso remontar o quebra-cabeças. Deslocar a lembrança para um lugar afável. A lembrança de um tempo até muito antes do meu retorno em 2013. Um tempo onde lembrar do tempo era bom. E não a Mariana onde soube que Adão morreu, que Thaís morreu, onde velei Zé Arnaldo. A cidade que me amanhecia cinza e de que me lembro de sol só na manhã de minha partida, com o pouco que sobrou de uma casa que chegou completa e se perdeu, naquele pequeno caminhão que me levou de volta para Belo Horizonte. Sol como vi no Rio de Janeiro quando, na casa do Leo, me decidi pela volta. E hoje, aqui, em Januária, nessa cidade que me abraça num abraço quente, reencontrar-me com o hiato que deixei quando saí de Vitória naquele dia de sol, suspenso, um pouco melhorado dos anos de BH. Voltei talvez para mim na saudade inconstante que estava de mim. Desse mim que o mar moldou e que o São Francisco dá acabamento. Mariana é um lugar nas pessoas, por isso o que me importa agora talvez sejam as pessoas para além desse lugar. Quero-as comigo, sem mais.