quarta-feira, 15 de abril de 2020

não está tudo bem

O que mata é essa falsa continuidade, essa falsa normalidade. Não está tudo normal. Não está tudo bem. Atravessamos a maior pandemia da história e querem que a gente siga cumprindo compromissos de agenda. Querem aulas, muitas aulas virtuais. Querem teletrabalho até a exaustão. Querem manter a todos trancados e ocupados como se no mês que vem a padaria fosse abrir um dia de manhã e as pessoas fossem a ela comprar pães sem máscaras e sem álcool gel.

Não, não está tudo bem. Não está tudo normal em trabalhar online. Não está tudo normal se colocamos ainda uma parcela significativa da população trabalhando nas ruas, expostas à morte. Porque é de morte que estamos falando, não de um vírus. Ele voltará a ser um vírus quando a vacina chegar. Até lá, ele é a morte. Não está nada normal negá-la como se a economia ou o passeio do cachorro fossem mais importantes.

Não está nada normal em encher jovens em faixa escolar de atividades. Não está nada normal em nos cobrarem que sigamos como se a vida seguisse um compromisso de agenda momentaneamente adiado. Não está normal mantermos com a existência a relação de adiamento que sempre mantivemos, deixando para amanhã uma vida possível porque agora temos uma videoconferência inadiável.

A vida é inadiável, e não a agenda, o teletrabalho. A morte está nas ruas, à solta, ceifando a baldes as vidas que acreditaram em planos de saúde e em aposentadorias privadas e as daqueles que estão com medo de não ter dinheiro para comprar comida amanhã. A morte está lá fora assustando milhares de pessoas que estão sob uma ameaça constante de perderem as rendas mínimas que possuem, seus trabalhos e no que elas apostaram a vida. Não é mais tempo de apostas.

Não nos venham com esse papo de que é preciso seguir como se tudo estivesse bem. Não está nada bem. Não tem data para estar bem. Não há por que negar, não há motivo nisso. É preciso olhar para a morte de frente e pensar que essas múltiplas atividades que nos impõem são ridiculamente falsas. Que tudo o que vivemos até hoje é falso. Que não há vida em se comprar coisas, pagar boletos. Que a vida não é só sobreviver e manter os bancos. Que não há vidas que valem mais e menos.

Tudo o que vivemos até aqui é falso. Falso como as reuniões e o presidente. Falso como o neoliberalismo e o Estado Mínimo. Falso como o plano de aposentadoria privado. Tudo falso. Real é a vida presa em cada um, agora assutada porque pode morrer amanhã sem ar para respirar, sem velório possível. Real é o que se deixou para depois achando que há depois. Não há depois. O que temos de real é a vida, só ela. O que você vai fazer com isso, com a vida?

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