domingo, 9 de agosto de 2020

Encerramento das atividades

Criei o Desde que o samba é samba para poder, de alguma forma, ter a experiência de uma escrita regular, entrando para o espaço de debate direto com os leitores. Nesses quase onze anos de escrita não tão regular assim, o blog foi muito  importante e dele floresceram 4 livros - Qu4rto desamp4aro, em 2010; Tear de ondas, em 2012; é corpo seu norte, em 2016, e Sensações sem sim, de 2019 (aguardando lançamento desde o início da pandemia). 

Pude aqui também expor muito do meu posicionamento político, fazer desabafos sobre a situação brasileira, compartilhar vivências num período de transformação íntima que estavam em sintonia com as mudanças de um século novo, com novas demandas, novas possibilidades de vida e de contato. Todas essas experiências de escrita, na busca por esse entendimento, ajudaram mais a mim mesmo do que aos leitores e, creio, foram cruciais para as decisões que tomei nos últimos onze anos. 

Manterei o link ativo por um período para conservar o arquivo do blog até que eu salve todos os textos. São 320 publicações no total. Um montante que me deixou bastante contente. Depois de feito o backup de tudo e fazer a impressão, colocando o acervo numa das muitas caixas de arquivo que tenho espalhadas pela casa, o blog deixará definitivamente de existir.  

Junto com o fim do blog, outras contas de vida virtual também desaparecerão: o perfil do facebook (que também tem onze anos de existência), as contas no instagram e no twitter. Essas já foram apagadas. A última que será desativada, nos próximos dias - espero - é o whatsapp. É o fim, creio, da minha relação com as redes sociais. 

As decisões envolvem muitas coisas, mas em especial a busca por menos. Uma necessidade que se colocou em minha vida e que tem me feito bem. Menos de tudo. Em especial, o mínimo de exposição. O excesso de exposição foi muito danoso a mim. Uma exposição que em tempos de pandemia tornou-se exagerada e problemática. Tudo isso é coroado por algumas reflexões que têm-me tomado o tempo nos últimos dias.

O exagerado número de virtualização de aulas, o descabido controle das atividades de cátedra, a monitoração de minha atividade docente e de lazer, o uso da desculpa da pandemia por parte de pessoas próximas para o total descontrole no uso de algumas ferramentas, deixando a vida numa constante atividade de reuniões e lives, de trabalho e de pesquisa full time favoreceram para essa decisão. É preciso menos de tudo isso e o caminho que encontrei foi sair dos lugares onde esses acessos são facilitados, já que não posso sair de todos.

Com isso, volto a escrever à máquina, a planejar offline meus livros, a dedicar meu tempo - que para mim é precioso - ao que de fato é proveitoso para mim. Com menos acesso remoto, menos virtualidade: uma vida menos online. Por uma vida offline, dedico os onze anos de Desde que o samba é samba e seu fim. Foi bom enquanto durou!

sexta-feira, 17 de julho de 2020


há muito tempo aqui dentro de mim vive um poema. ninguém sabe dele, aqui. o poema que vive em mim às vezes me manda tempestades. um verso solto na madrugada em suspiro que decifro em sonho e se evapora no abrir os olhos. aqui em mim esse poema hoje respira e se debate. é um cão com pigarro. anda incomodado e rosna quase o dia inteiro, insatisfeito. há meses não me deixa dormir direito, sofrendo. sofre por cada um que some e chora horas a fio. chora de empapar camisas, de suar nervoso. na tentativa de manter a vida impossível, o poema se debate sem vírgulas e evita os números totais já que não pode dizer todos os nomes completos dos mortos nesse fim. sabe no nome dos mortos cada afeto e pesa os corações dos mortos, dos afetos, o mundo que o pesa sobre os ombros. quer todo dia dizer aos jornais que faltam os nomes, a filiação, a genealogia, quantos viúvos e viúvas deixam, quantos filhos e quantos netos e se engasga como um cão com pigarro. sabe que os que não recebem a renda urgente por não terem emprego têm nome, nome cada um, número de cpf cada um, uma vida inteira que depende de um número que não pinga na conta em mais um dia de filas. sabe o nome dos que seguem nas filas e queria um dia um jornal inteiro lendo só os nomes. nem precisam as idades imprecisas.

sacode meu corpo como se sacudisse grades de um presídio. sem palavras, segue preso em mim. eu, com ele, vagueio pela casa de noite e os espaços da casa são as ruas do brasil. ruas inteiras do brasil – ruas que têm nome como cada um dos mortos, história como cada um, mas que como ruas são mais importantes que os nomes dos mortos e os nomes das ruas aparecem nos jornais. um jornal que anuncia com pesar salas de grandes prédios de vidro vazias, mostra-as em detalhes, e filma de tomada aérea as covas abertas em vala comum onde caixões são quase formigas. a vidraça azul tem uma imensa placa de aluga-se, no centro em vermelho e nem o vermelho das flores, quando há, se vê da tomada aérea sobre os caixões. as ruas do brasil que meu poema visita enquanto vago pela sala. como dormem aqueles que seguem nas ruas? como estão os nomes nas celas dos presídios, nos barcos de pesca, nos campos de refugiados? como estão os donos e donas dos nomes que não entram para história como os nomes das ruas, dos estados, dos filhos do presidente?

o poema insiste em passear pelo brasil. sabe o nome do país pelo qual passeia e prefere assim, brasil, diminuído nas minúsculas. porque se os nomes próprios dos mortos não cabem nos jornais, seu nome é substantivo comum, vermelho de sangue e de desastre – essa sina de matar que lhe corta o pescoço história à fora. o poema se pergunta quanto de sangue não lavou o chão e a cor do brasil? o poema quer saber por que é importante verde e amarelo se o carro da limpeza lava um sangue vermelho pelas ruas das favelas, nas sacadas dos prédios de onde despencam crianças indefesas, o sangue dos indefesos e indefesas do brasil banhando chãos de hospitais. de que vale a bandeira verde louro se o chão onde se finca é sangue e corpos na vala comum? brasil. minúsculo, comum, mas com s. de severino, silva sônia, suor, subúrbio, sim e sonho. com s. no formato da cobra que saiu do saara e envenenou seu traficante.

a noite mortal do vírus que tudo arrebenta não deixa o poema dormir e ele quer curar cada uma das chagas, lambê-las como os cães dos santos. não consegue. por saber que poemas não matam os vírus. que o vírus é mínimo e a ciência irá derrotá-lo. confia nela e espera, já que não pode curar. sente-se impotente como se tivesse roubado dele todos os direitos, impotente como depois de um linchamento, deitado no asfalto com dentes quebrados a chutes e sem sapatos, só sangue e o zunir forte nos ouvidos. impotente como uma vértebra quebrada no pescoço que não chega a tirar a vida, como noites febris de pneumonia e coqueluche. o poema está doente por todos os doentes, morto por todos os mortos, mas vivo de alguma forma como os vivos. é mais um dos que se mantêm vivos no brasil. mesmo além do descaso do estado, da irresponsabilidade dos governos, o poema, que tem em mim sua casa, que aqui vive, é severino. como muitos severinos. e isso ainda diz pouco.

quarentena - julho de 2020.

terça-feira, 5 de maio de 2020

combale

I


cada cruz
cada cova
cada voz
cada dor

combale

na estrada em ruína
nós
e
os mortos

sepultados em mim
esperam covas
ou
qualquer chão possível
na vala comum aberta ao sol
cicatriz de praça

um tempo duro
que desobriga o poema de espera

um tempo escuro
que desobriga a dor de disfarce

o choro na noite dos que não dormem
o cheiro do que se perdeu
e as mãos sujas de sangue dos que ignoram

[nas casas sem distância
como estar
como perceber
como lutar pelos das filas
pelos que esperam a ajuda que não vêm?]

a fúria de nós
dispensa o grito
mas exige a luta
além de notas

a fúria de nós
dispensa varandas
panelas e arrependidos

a fúria de nós exige o fim

do mandato
do mandado
o fim do imperdoável

do imperdoável
sujando de sangue uma bandeira

que chamei de minha

sexta-feira, 1 de maio de 2020

.

essas memórias
seu panegírico
e a festa

no espaço-sitiado
os braços que
[distantes]
sintetizam

:há

no outro lado
o ar que queríamos
e o sorriso solto
de outros carnavais

acaba a noite
[porque tudo ac
aba]

e nos sobra a sorte

a sorte
essa sim
cheia de nada

quarta-feira, 15 de abril de 2020

não está tudo bem

O que mata é essa falsa continuidade, essa falsa normalidade. Não está tudo normal. Não está tudo bem. Atravessamos a maior pandemia da história e querem que a gente siga cumprindo compromissos de agenda. Querem aulas, muitas aulas virtuais. Querem teletrabalho até a exaustão. Querem manter a todos trancados e ocupados como se no mês que vem a padaria fosse abrir um dia de manhã e as pessoas fossem a ela comprar pães sem máscaras e sem álcool gel.

Não, não está tudo bem. Não está tudo normal em trabalhar online. Não está tudo normal se colocamos ainda uma parcela significativa da população trabalhando nas ruas, expostas à morte. Porque é de morte que estamos falando, não de um vírus. Ele voltará a ser um vírus quando a vacina chegar. Até lá, ele é a morte. Não está nada normal negá-la como se a economia ou o passeio do cachorro fossem mais importantes.

Não está nada normal em encher jovens em faixa escolar de atividades. Não está nada normal em nos cobrarem que sigamos como se a vida seguisse um compromisso de agenda momentaneamente adiado. Não está normal mantermos com a existência a relação de adiamento que sempre mantivemos, deixando para amanhã uma vida possível porque agora temos uma videoconferência inadiável.

A vida é inadiável, e não a agenda, o teletrabalho. A morte está nas ruas, à solta, ceifando a baldes as vidas que acreditaram em planos de saúde e em aposentadorias privadas e as daqueles que estão com medo de não ter dinheiro para comprar comida amanhã. A morte está lá fora assustando milhares de pessoas que estão sob uma ameaça constante de perderem as rendas mínimas que possuem, seus trabalhos e no que elas apostaram a vida. Não é mais tempo de apostas.

Não nos venham com esse papo de que é preciso seguir como se tudo estivesse bem. Não está nada bem. Não tem data para estar bem. Não há por que negar, não há motivo nisso. É preciso olhar para a morte de frente e pensar que essas múltiplas atividades que nos impõem são ridiculamente falsas. Que tudo o que vivemos até hoje é falso. Que não há vida em se comprar coisas, pagar boletos. Que a vida não é só sobreviver e manter os bancos. Que não há vidas que valem mais e menos.

Tudo o que vivemos até aqui é falso. Falso como as reuniões e o presidente. Falso como o neoliberalismo e o Estado Mínimo. Falso como o plano de aposentadoria privado. Tudo falso. Real é a vida presa em cada um, agora assutada porque pode morrer amanhã sem ar para respirar, sem velório possível. Real é o que se deixou para depois achando que há depois. Não há depois. O que temos de real é a vida, só ela. O que você vai fazer com isso, com a vida?

sexta-feira, 20 de março de 2020

tem mais o que fazer

se Deus existe
[independente de seu nome]
criou os seres para criarem a si mesmos
desde a expansão do cosmos

criou assim porque
tem mais o que fazer

quando as formas criadas juntaram-se em planetas
estrelas explodiram
supernovas nasceram
e o multiverso se formou

e as vidas explodiram nos planetas
e as eras se sucederam
e num pequeno lugar no todo
a primeira célula criou muitas

era tudo a parte criativa divinal
que em tudo há

porque se Deus existe
tem mais o que fazer

no pequeno lugar no todo
a vida que saiu do mar
evoluiu
foi destruída
tornou a evoluir
até que alguns seres falaram e imaginaram

e não entenderam

por se sentirem fora
criaram um deus a que deram nomes e formas
ritos e cânticos
e oferendas

primeiro a natureza
depois animal selvagem
depois meio-animal-meio-humano
depois animal doméstico
depois pedra
pão
abstração
e ódio

longe daquele que
se existe
tem mais o que fazer

há um deus dos seres de linguagem
[dentre tantos por eles criados
nessa pequena parte no todo]
que é como um ser de linguagem

sente rancor
provoca medo
exige amor em mandamento
e perdoa
[em condições muito específicas]

não é a barata
a aranha
a pulga
o rato

não é serpente e bode
[seus inimigos]

e controla tudo

é particular
pessoal
e intransferível
como o nome próprio
e tem dono:
meu

mas se Deus existe
não é meu

tem mais o que fazer

domingo, 12 de janeiro de 2020

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Algumas coisas que eu diria a um (a) (e) (x) filho (a) (e) (x), caso tivesse:


. Você é o limite de si mesmo. Tenha consciência de si e de seus limites.
. Trabalhe o suficiente para ter uma vida digna. O dinheiro em excesso escraviza e cobrará um preço alto no futuro. O dinheiro escasso escraviza e cobrará um preço alto no futuro.
. Você morrerá. Como todo mundo.
. Tudo o que você tem ficará aqui depois que você morrer. Use as coisas pensando que o outro também poderá usar um dia.
 . Aprenda quantos idiomas quiser, não porque será bom para o mercado de trabalho, mas porque é importante conhecer outras culturas e, principalmente, o outro.
. Lute por justiça e por igualdade social sempre. Entenda que a caridade é necessária, mas que precisa ser transitória. A manutenção da caridade infinita implica na manutenção da desigualdade.
. Viaje. Sempre. Muito. Para e nos lugares, nos vinhos, nas poesias, nas palavras das pessoas.
. Viajar é estar-com. Esteja-com de forma a ter memórias, não fotografias.
. Aprenda com os animais o que é amar gratuitamente.
. Dance, sempre que puder.
. Seja sempre antifascista, antirracista, antimachista, anti-homofóbico.
. Saber cozinhar, cuidar de uma casa e de si sem precisar de ninguém é o maior gesto de liberdade.
. Dê presentes, em especial poemas escritos à mão, flores colhidas na rua, dobraduras de papel, abraços. Dê presentes que não precisem de dinheiro, mas que presentifiquem seu sentimento pela pessoa.
. Estude sempre com humildade. Você não sabe tudo e nunca saberá.
. Todos os saberes são importantes. Quando ouvir alguém dizer que um saber é inferior, desconfie das intenções dessa pessoa.
. Todas as perguntas são importantes.
. Respeite a dúvida, preste atenção ao óbvio, pense o clichê além do clichê.
. Entenda que em muitos casos a ignorância é um projeto. Pessoas são, muitas vezes ignorantizadas. Tente, com cuidado, sempre que possível, tirá-las de lá.
     . Ser alfabetizado é importante, mas não faz de você melhor que o analfabeto.
. Leia: livros, pessoas, situações, contextos, conjunturas, maneiras de vestir e de portar-se. Leia.
. Seja elegante. A elegância maior é a simplicidade.
. Simples não é o mesmo que fácil.
. O fácil nem sempre é ruim. É preciso sempre julgar o fácil de forma ética.
. Seja ético.
. Tenha prudência, paciência e tolerância, mas não seja resiliente. Lute para transformar as coisas que estão erradas no mundo. O que não falta é luta.
. Diga sempre eu te amo sempre que sentir vontade. As pessoas esquecem.
. Sempre que puder ser coletivo, seja. A coletividade é um direito humano. Lute pela coletividade.
. Diga sempre ao outro o quanto ele é importante para você.
. Lembre-se: você é o outro do outro.
. Olhe pro céu, sempre. A qualquer momento. O céu é o absoluto, o tempo, o espaço, a cor e o cosmos. O céu ensina o tempo.
. Viva ao máximo o hoje, sem antecipar o amanhã.
. Ande de moto, mesmo que seja perigoso. É preciso correr riscos na vida.
. A vida não é uma aposta. A vida não é um jogo. A vida não é um negócio. 
. Curta sempre cada etapa de tudo o que fizer. Aí está o segredo do seguir.
. Para todas as dores da alma, leia Fernando Pessoa. Três vezes ao dia, se preciso.
. Medique-se também com arte e literatura.
. Aprenda música.
. Cuide de saber odores, experimente ao máximo o tato e o paladar. Ouça sempre muito. Preste atenção em tudo. Cinco sentidos é coisa para caramba para apreender e usar.
. Não há inferno. Não seja bom com medo de ir para lá. Seja bom porque isso é o certo a fazer.
. Durma, cuide do sono e tente lembrar dos sonhos. Preste atenção neles.
. Ame-se e ame. Sempre. Muito. De todas as formas que você desejar.