sexta-feira, 16 de março de 2018

Edson Luís, Marielle, quantos mais?


Este blog tem, desde a campanha de 2010, denunciado que as elites brasileiras não perderam o tom golpista. Assim os chamava já naquela época. Quando Dilma foi eleita, pensei: é muito para os militares. Isso pode reacendê-los. E aconteceu.
Lembro-me da noite que Dilma ganhou a eleição em 2014. Estava em BH. Desci de ônibus para o comitê da campanha, vazio, porque a festa havia sido transferida às pressas para a sede do Partido. Aécio havia fechado dois quarteirões de avenidas em torno do seu comitê nacional, em um prédio de um hotel desativado na Praça Afonso Arinos, onde a esquerda sempre se reúne em BH, antes de sair ou voltando de um protesto. A poucos quarteirões do comitê de Dilma. Os dias finais da campanha foram violentos. Sair de vermelho sozinho em BH poderia acabar em espancamento na rua, com aplausos da polícia. No dia da apuração, horas antes do resultado, a PM de Minas estava fardada e pronta na frente do prédio e Aécio havia se apropriado da cidade como se fosse dele.
Na primeira chamada de televisão, ainda perto do comitê da campanha do PT, esperando por Isis, uma amiga, na Avenida Brasil, saiu a primeira chamada de que Dilma estava na frente, por pequena margem. Garçons de um restaurante burguês da avenida sorriam. Seus clientes não. Quando o resultado das urnas anunciou a presidência de Dilma, disse à Isis, já na rua em frente a sede do PT: “quero ver se os golpistas deixarão o mandato dela acabar”. Estava certo. E juro que queria estar errado naquela noite.
Quando o processo do golpe iniciou, pensei: nunca foi sem militares. Em algum momento eles voltarão. Voltaram. Estão nas ruas do Rio, e não é propaganda, é atividade de tomada de poder. Falta agora não ter a eleição e o golpe estará, definitivamente, terminado. Se não acontecer antes das eleições, acontecerá depois, quando Lula ou seu indicado for eleito. Porque eles não sairão de lá tão fácil. E tudo o que acontece no cenário político atual pode ser justificativa para que, numa jogada de parlamento, Temer passe a faixa para Braga Netto. O Palácio Duque de Caxias, o Comando Militar do Leste (novamente o Comando Militar do Leste), já deve ter seu ministério todo formado. Não se deve discutir outra coisa no Clube Militar. Esses nomes que antes colhíamos dos livros de história agora de novo nos jornais. Na boca e no dia-a-dia das pessoas.
Eu sabia quem queria o Brasil de volta. A classe média não estava na conta. As viúvas do Regime repetiram o texto de 1964. Repetiram as faixas, as mesmas faixas, repetiram as datas. Foram só a manobra que foram em 1964. Porque a classe média é o cão raivoso da elite. A classe média baba e rosna para ganhar os ossos da ceia, as migalhas que a elite lhe joga da janela para que os membros da classe média disputem privilégios com os narizes na lama. Pagará um preço por tudo isso, mas prefere pagá-lo a ver a igualdade de oportunidades chegar a todos. Prefere pagá-lo a ver o país protagonista no cenário internacional. A ver o Brasil produzir ciência e tecnologia de ponta, criar patentes de medicamentos e de sistemas de engenharia. Prefere tudo, menos as classes populares definindo os rumos do país. Porque elas esperam por isso, pagaram caro por décadas para ter essa chance e nunca conseguiram. Porque a classe média é, no fundo, egoísta. Ela está há séculos querendo entrar na casa das elites, parada na porta esperando uma brecha. É convidada vez ou outra para uma festinha, mas nunca participa das decisões. E como pode o povo, de repente, decidir, sem nunca ter lambido as botas das elites antes? E isso viria, mais dia menos dia, na sucessão eleitoral aberta pelo PT, para a dinâmica de novos – e importantes – governos populares. Isso seria intolerável para ela.
Um dia, ainda durante o curso do golpe, um ex-militar da cidade onde eu moro disse que torcia pela volta do Regime e que assim que os militares tomassem o poder, eu seria o primeiro que ele pediria a prisão, a tortura e o assassinato. Isso porque eu defendo as conquistas dos anos do PT, defendi e defendo Lula, defendo o ensino gratuito para todos. O ex-militar, com esse ódio guardado em algum lugar, disse que me colocaria na prisão para ser brutalmente torturado porque eu discordava dele. Nem nos anos de luta estudantil e de militância no Movimento pelo Passe Livre, contra a máfia dos transportes capixaba, eu fui ameaçado nesse tom. E eu nem sou tão ativista quanto Marielle. Eu não sou nada perto de Marielle.
Eles são capazes dessas ameaças e mais, são capazes de genocídios. A matança começou antes de Marielle. Matam ativistas nos rincões do país há décadas. Matam líderes do MST, líderes de comunidades quilombolas, líderes dos povos indígenas, líderes sindicais do campo, matam líderes comunitários e representantes das favelas. Matam negros por serem negros, pobres por serem pobres e jogam corpos anônimos em valas comuns, nos valões, em rios. Mas a execução de Marielle foi um recado: “estamos de volta, preparem-se”. Estão de volta e prontos para reabrirem seus porões. Prontos para matarem os que não conseguiram matar e calar quem não calaram para satisfazer o sadismo do sistema e para impor a agenda política que nunca venceria nas urnas. Impor pela força.
Estamos em 2018? Não, estamos em março de 1968, com mais um caixão atravessando a Cinelândia. Edson Luis. Marielle. Quantos mais? Por quantos nomes mais precisaremos gritar “Presente” em passeatas porque nos levaram suas vidas? Quantas panelas sujas de sangue voltarão às sacadas para repetir com suas batidas os tiros de fuzil que se ouvem nas matanças diárias nas periferias do Brasil?
É 1968, não se enganem. Estão de volta, a poucas horas de concluir seu plano sórdido. E eu não me assustarei com outro modelo de AI-5 antes de outubro desse ano. Estamos, novamente, em 1968, repito. Infelizmente a noite voltou mais rápida. A luta será maior dessa vez.

quarta-feira, 14 de março de 2018

As minhas águas do mundo


Nasci às margens do Córrego da Serra. O da Serra deságua no Arrudas. Quando nasci, o Arrudas tomava a parte baixa de BH nas suas muitas enchentes. O da Serra nem era possível de ser visto e por anos achei que sua existência era lenda. Via-o sumir no Parque das Mangabeiras para o sem fim. O da Serra cai no Arrudas. O Arrudas segue para o das Velhas.
Conheci o das Velhas ainda criança. Cruzava a ponte sobre o das Velhas para chegar em Antônio dos Santos, distrito de Caeté, onde meus avós compraram um sítio. Tinha um rio que cortava o distrito, o Vermelho, alimentado por águas desse sítio. O Vermelho cai no das Velhas. 
O das Velhas nasce em Ouro Preto. 
O das Velhas cai no Chico. O Chico vai bater no meio do mar, como falava o Velho Gonzaga.
Morei às margens do Córrego do Seminário. O do Seminário deságua no Carmo, que corta Mariana. O do Carmo nasce em Ouro Preto. Quando o do Carmo abraça o Piranga, eles viram o Doce. O aurífero do Carmo, revirado pela eternidade pelo ventre de ouro. O do Carmo. Nome da padroeira, nome da Vila que sumiu quando a Fiel Cidade Mariana ganhou nome. O do Carmo. Da igreja que pegou fogo, dos reis congos do Rosário que vão à Mariana todo 16 de julho louvar a Virgem, receber o manto: o Capitão, a Tropa, a Corte, o Rei e a Rainha. Estava um dia na padaria, num 16 de julho de há muito, quando o Rei Congo entrou coroado, vestido de cetim azul. Levantei para Nossa Majestade, o Rei. Saudei o Rei. O Rei Congo. Nosso Rei Congo, que recebeu às escondidas o manto do Carmo da mão do prefeito, depois que o rei congo do Rosário de Ouro Preto lembrou que estava em outro reinado, de poder de outra monarquia. Nosso Rei Congo, da Vila do Ribeirão do Carmo. 
O Carmo abraça o Piranga. Desse amor, nasce o Doce. O Doce vai bater no meio do mar, como diria o Velho Gonzaga.
Depois, morei nas margens do Manhuaçu. O Manhuaçu alagava tudo em novembro, nas cheias. O Manhuaçu ainda alagada tudo, nas cheias. O Manhuaçu deságua no Doce. O Manhuaçu é o maior afluente do Doce.
  Por um tempo perto de um afluente do Chico. Por outro tempo, perto do futuro Doce, e de outro afluente. Por outro tempo, no Atlântico, onde deságuam o Chico e o Doce. 
Hoje moro às margens do Chico. 
Minha vida definida por dois rios: o Chico e o Doce. Ambos morrendo. O Doce, pelo minério. O Chico, pelo desmatamento e pelo assoreamento. Morrem também o da Serra, o Arrudas - há muito morto, só esgoto - o das Velhas. Morrem o do Carmo, cheio de mercúrio da mineração e cheio de esgoto, o Piranga, assoreado e cheio de esgoto, e o Doce, hoje só resíduo de minério. Morre o Manhuaçu, envenenado de agrotóxico das lavouras de café.
Tudo isso vai bater no meio do mar. O Atlântico. O meu Atlântico.