Este blog tem, desde a campanha de 2010, denunciado que as elites
brasileiras não perderam o tom golpista. Assim os chamava já
naquela época. Quando Dilma foi eleita, pensei: é muito para os
militares. Isso pode reacendê-los. E aconteceu.
Lembro-me da noite que Dilma ganhou a eleição em 2014. Estava em
BH. Desci de ônibus para o comitê da campanha, vazio, porque a
festa havia sido transferida às pressas para a sede do Partido.
Aécio havia fechado dois quarteirões de avenidas em torno do seu
comitê nacional, em um prédio de um hotel desativado na Praça
Afonso Arinos, onde a esquerda sempre se reúne em BH, antes de sair
ou voltando de um protesto. A poucos quarteirões do comitê de
Dilma. Os dias finais da campanha foram violentos. Sair de vermelho
sozinho em BH poderia acabar em espancamento na rua, com aplausos da
polícia. No dia da apuração, horas antes do resultado, a PM de
Minas estava fardada e pronta na frente do prédio e Aécio havia se
apropriado da cidade como se fosse dele.
Na primeira chamada de televisão, ainda perto do comitê da campanha
do PT, esperando por Isis, uma amiga, na Avenida Brasil, saiu a primeira chamada
de que Dilma estava na frente, por pequena margem. Garçons de um
restaurante burguês da avenida sorriam. Seus clientes não. Quando o
resultado das urnas anunciou a presidência de Dilma, disse à Isis,
já na rua em frente a sede do PT: “quero ver se os golpistas
deixarão o mandato dela acabar”. Estava certo. E juro que queria
estar errado naquela noite.
Quando o processo do golpe iniciou, pensei: nunca foi sem militares.
Em algum momento eles voltarão. Voltaram. Estão nas ruas do Rio, e
não é propaganda, é atividade de tomada de poder. Falta agora não
ter a eleição e o golpe estará, definitivamente, terminado. Se não
acontecer antes das eleições, acontecerá depois, quando Lula ou
seu indicado for eleito. Porque eles não sairão de lá tão fácil.
E tudo o que acontece no cenário político atual pode ser
justificativa para que, numa jogada de parlamento, Temer passe a
faixa para Braga Netto. O Palácio Duque de Caxias, o Comando Militar
do Leste (novamente o Comando Militar do Leste), já deve ter seu
ministério todo formado. Não se deve discutir outra coisa no Clube
Militar. Esses nomes que antes colhíamos dos livros de história
agora de novo nos jornais. Na boca e no dia-a-dia das pessoas.
Eu sabia quem queria o Brasil de volta. A classe média não estava
na conta. As viúvas do Regime repetiram o texto de 1964. Repetiram
as faixas, as mesmas faixas, repetiram as datas. Foram só a manobra
que foram em 1964. Porque a classe média é o cão raivoso da elite.
A classe média baba e rosna para ganhar os ossos da ceia, as
migalhas que a elite lhe joga da janela para que os membros da classe
média disputem privilégios com os narizes na lama. Pagará um
preço por tudo isso, mas prefere pagá-lo a ver a igualdade de
oportunidades chegar a todos. Prefere pagá-lo a ver o país
protagonista no cenário internacional. A ver o Brasil produzir
ciência e tecnologia de ponta, criar patentes de medicamentos e de
sistemas de engenharia. Prefere tudo, menos as classes populares
definindo os rumos do país. Porque elas esperam por isso, pagaram
caro por décadas para ter essa chance e nunca conseguiram. Porque a
classe média é, no fundo, egoísta. Ela está há séculos querendo
entrar na casa das elites, parada na porta esperando uma brecha. É
convidada vez ou outra para uma festinha, mas nunca participa das
decisões. E como pode o povo, de repente, decidir, sem nunca ter
lambido as botas das elites antes? E isso viria, mais dia menos dia,
na sucessão eleitoral aberta pelo PT, para a dinâmica de novos –
e importantes – governos populares. Isso seria intolerável para
ela.
Um dia, ainda durante o curso do golpe, um ex-militar da cidade onde
eu moro disse que torcia pela volta do Regime e que assim que os
militares tomassem o poder, eu seria o primeiro que ele pediria a
prisão, a tortura e o assassinato. Isso porque eu defendo as
conquistas dos anos do PT, defendi e defendo Lula, defendo o ensino
gratuito para todos. O ex-militar, com esse ódio guardado em algum
lugar, disse que me colocaria na prisão para ser brutalmente
torturado porque eu discordava dele. Nem nos anos de luta estudantil e de militância no Movimento pelo Passe Livre, contra a máfia dos transportes capixaba, eu fui ameaçado nesse tom. E eu nem sou tão ativista
quanto Marielle. Eu não sou nada perto de Marielle.
Eles são capazes dessas ameaças e mais, são capazes de genocídios.
A matança começou antes de Marielle. Matam ativistas nos rincões
do país há décadas. Matam líderes do MST, líderes de comunidades
quilombolas, líderes dos povos indígenas, líderes sindicais do
campo, matam líderes comunitários e representantes das favelas. Matam negros por serem
negros, pobres por serem pobres e jogam corpos anônimos em valas
comuns, nos valões, em rios. Mas a execução de Marielle foi
um recado: “estamos de volta, preparem-se”. Estão de volta e
prontos para reabrirem seus porões. Prontos para matarem os que não
conseguiram matar e calar quem não calaram para satisfazer o sadismo
do sistema e para impor a agenda política que nunca venceria nas urnas. Impor pela força.
Estamos em 2018? Não, estamos em março de 1968, com mais um caixão
atravessando a Cinelândia. Edson Luis. Marielle. Quantos mais? Por
quantos nomes mais precisaremos gritar “Presente” em passeatas
porque nos levaram suas vidas? Quantas panelas sujas de sangue
voltarão às sacadas para repetir com suas batidas os tiros de fuzil
que se ouvem nas matanças diárias nas periferias do Brasil?
É 1968, não se enganem. Estão de volta, a poucas horas de concluir
seu plano sórdido. E eu não me assustarei com outro modelo de AI-5
antes de outubro desse ano. Estamos, novamente, em 1968, repito.
Infelizmente a noite voltou mais rápida. A luta será maior dessa
vez.