segunda-feira, 27 de junho de 2016

Só às palavras do tédio
cabem os conselhos.

Nelas, desfazem-se as vontades,
nossas cores,
o chão.

Nas palavras do tédio
o truncado vazio
a vaidade da vaia
o infortúnio da mão.

Nas forças de tudo
no tédio
nossas farsas
há tristeza escura
há sala de palavras.

Danilo Barcelos
verão de 2012.

terça-feira, 7 de junho de 2016


É preciso me abrigar da chuva do frio e das marés. Mas não há chuva ou frio e as marés estão distantes. Mas há o passar das marés, seus distúrbios soltos e mórbidos, os navios ante o cais. É preciso me abrigar do sol e do vento, mas o sol é sempre e o vento um nem quase, onde tudo que há é poeira e tempo, esse jeito de abrir um maço esquecido de cigarros. O bolso vazio na calça velha, a praça, além. Além o que existe de sabores de além, onde o destino agora em caixas vazias de qualquer coisa hoje inútil. Mas é preciso o abrigo do vento e da chuva, o chapéu ao sol de quarta-feira.
      Quarta-feira, dia de ângulos. Porque às quartas-feiras chove uma chuva fina no sem-onde, mas não aqui neste sol de tarde quente. O azul, por fim esquecido. Mas me lembro. Lembro que gostava daquele abrigo da chuva, da marquise curta. Lembro, mas é uma lembrança quase opaca, era outro (e não eu) debaixo da marquise curta, abrigando-me desse outro que hoje está aqui sob o sol. Lembro-me que já sorri desses barulhos naquela marquise. Sorri sim, verdadeiramente. E hoje é a lembrança opaca daquilo, meio sem gosto, como um pão velho que aos poucos mofa.
É preciso me abrigar do mofo da umidade e dos ratos. Mas aqui não há umidade nem mofo e os ratos, poucos, os cães expulsam aos latidos violentos ou os gatos caçam. Mas lembro-me de mofo e ratos e umidade como me lembro das marquises apertadas, do abrigo. Tudo longe, quase esquecido, foto que desbota e que quando olho é um outro eu tão distante que hoje nem parece ter existido de fato. Inventado de um sonho, mas possível de comprovação nos documentos oficiais que carrego. Documentos que o fisco e o governo controlam, hoje onde tudo é controlado e ruim.
Lembro-me que não havia o controle e o hoje era um vislumbre em espelho de banheiro, bêbado, às quatro da madrugada. O hoje era a tarde de sol cinza debaixo de uma laranjeira ceca no meio de um quintal com musgos. O hoje era uma porta azul com aldrava preta frente a uma escada de pedras onde um velho, repetidas vezes, raspava ervas daninhas. O hoje era preciso. E era preciso saber o hoje que não vislumbrava. Um hoje distante e que hoje é pouco importante, bem diverso. Mas era o hoje que eu tinha, de que me lembro. O hoje que era só um vislumbre na marquise, aquele abrigo, cheio de umidade de um moletom empapado de chuva, que cheirava a guardado como cheiravam as calças e os sapatos. Como cheiravam os ombros dos amigos, misturados aos perfumes do possível entre cheiros de sabão e amaciante.
É preciso guardar os livros, cuidar deles e alimentá-los. Mas hoje os livros nutridos se formam nas estantes coloridas, sem tanta urgência de abrigo, mais lido e tratados como coisas. Instrumentos como furadeira, chave de fenda ou uma colher de cozinha. Livros sem mais a mistificação de livro, sem mais a coisa perdida, esse mistério absorto onde não sei de muita certeza e onde perdi qualquer verdade. Mas me lembro daqueles livros imantados e verticais, nas estantes, cheios de sonhos para aquele hoje vislumbrado e seco. Aquele hoje que nem entendo da memória, do cheiro velho das coisas velhas que hoje já não têm mais qualquer sentido, mas que existem aqui desfiguradas, quebradas e recolhidas.
É preciso organizar os móveis e a casa, arrumar a cama todo dia. Lembro-me que era preciso o vinco dos lençóis no centro do colchão velho. Um lençol com flores alaranjadas de trinta anos, desbotadas de trinta anos, velhas por fim em tudo e em mim também, mas hoje são flores de que me lembro e do vinco, mas não da obrigação de arrumar e organizar. As coisas sobem sobre as coisas e naquele hoje vislumbrado as coisas seriam organizadas e corretas. As coisas teriam seus momentos úteis. Hoje, só coisas.
Naquele antigo ontem onde lembro o pouco e distante, havia a certeza de amor. Havia amor, eu me lembro. Era palpável como um travesseiro, um chumaço de algodão. Mas é tão distante e esquecido que nem sei mais que gosto tem, se tem gosto, se era palpável. Está distante como o abrigo debaixo da marquise, como a chuva que caía, como o que se via além da porta azul de aldrava preta, para cima da laranjeira seca e do quintal com musgo. Para além das flores laranja desbotadas do lençol, seu vinco. Para além. Eu não me lembro mais do que existia para além.

sexta-feira, 3 de junho de 2016


a calma do rio, seu passar. as noites longas onde tudo é árvore, nuvens pesadas e estrelas. o som do tempo nas coisas, os espinhos e o que de mar tem ainda nos poros. onde o passar? onde esse tempo grosso? nas coisas esquecidas do dia, ao sol, essas frutas pelo chão e o quintal que se limpa de folhas de limão, o muro caiado que me mira, sem cercar de fato o que tem. os novos verbos nunca usados, cheios, carregados e pesados, de sabores de cajá, um fardo de cana nos carros de boi que cortam as estradas, as memórias dos vapores e das balsas. o silêncio do rio majestoso e pleno, de águas sagradas onde os jacarés se banham. banhar-me de tempo nesse acaso de nome palavra que pulsa comendo a memória de meus medos e a forma de minhas palavras. há estrada, há cais. onde o cais?