quarta-feira, 16 de outubro de 2013

do pé na estrada


Há sempre uma rua que se pode seguir até seu fim e nela virar em outra e assim chegar a uma rodovia. E nela, seguir até seu fim para chegar onde acaba o asfalto e seguir pela estrada de terra que se tornará uma trilha até que, de repente, o caminho então será estreito e, ao olhar para trás, será inútil voltar.
Ali, neste lugar-nenhum, de nome ignorado, eu também possa ser nenhum, de nome ignorado. Falsear a idade, pedir roupas e sapatos, talvez algum prato de comida. Pedir algum serviço simples, braçal, e ficar quieto no lugar, esquecido do mundo. É provável que perto do lugar haja alguma urbanidade, com alguma escola, algum médico, ou nem isso. Então, largar o emprego na roça e trabalhar em algum desses lugares, numa padaria, num bar, num armazém, com um salário pequeno para pagar um aluguel de um quarto de pensão, que já tenha lá algum almoço incluído, com uma dona rabugenta que não tenha a menor noção de onde eu vim, de para onde vou, se tenho ou não família.
Como desconhecido, posso tornar-me conhecido por outro apelido, ou por um nome qualquer que pouco importa. Criarei ali outra história de mim mesmo, recheada de notícias inverídicas. Poderei refazer tudo: minha maneira de me dirigir às pessoas, o trato que dou a mim e aos demais. Poderei fingir-me analfabeto para ver até onde vai a boa-fé humana, testar o que muitos chamam caridade. Deixar-me esquecer de tudo e quando todos já me derem por morto, lá na rua que havia deixado, voltar para o que hoje sou, neste nome, nestes traços. Aparecer, repentinamente, na vida completamente outra para este outro eu que refizer no mundo mais distante, no lugar-nenhum. Chegar quando meus livros já tiverem extraviado, meu diário lido, relido, comentado, meus objetos pessoais vasculhados sem respeito como se vasculham os pertences de um morto. Talvez aí eu entenda o meu rosto que me ronda.

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