há muito tempo aqui dentro de mim vive um poema. ninguém sabe dele,
aqui. o poema que vive em mim às vezes me manda tempestades. um verso
solto na madrugada em suspiro que decifro em sonho e se evapora no abrir
os olhos. aqui em mim esse poema hoje respira e se debate. é um cão com
pigarro. anda incomodado e rosna quase o dia inteiro, insatisfeito. há
meses não me deixa dormir direito, sofrendo. sofre por cada um que some e
chora horas a fio. chora de empapar camisas, de suar nervoso. na
tentativa de manter a vida impossível, o poema se debate sem vírgulas e
evita os números totais já que não pode dizer todos os nomes completos
dos mortos nesse fim. sabe no nome dos mortos cada afeto e pesa os
corações dos mortos, dos afetos, o mundo que o pesa sobre os ombros.
quer todo dia dizer aos jornais que faltam os nomes, a filiação, a
genealogia, quantos viúvos e viúvas deixam, quantos filhos e quantos
netos e se engasga como um cão com pigarro. sabe que os que não recebem a
renda urgente por não terem emprego têm nome, nome cada um, número de
cpf cada um, uma vida inteira que depende de um número que não pinga na
conta em mais um dia de filas. sabe o nome dos que seguem nas filas e
queria um dia um jornal inteiro lendo só os nomes. nem precisam as
idades imprecisas.
sacode meu corpo como se sacudisse grades de um presídio. sem palavras, segue preso em mim. eu, com ele, vagueio pela casa de noite e os espaços da casa são as ruas do brasil. ruas inteiras do brasil – ruas que têm nome como cada um dos mortos, história como cada um, mas que como ruas são mais importantes que os nomes dos mortos e os nomes das ruas aparecem nos jornais. um jornal que anuncia com pesar salas de grandes prédios de vidro vazias, mostra-as em detalhes, e filma de tomada aérea as covas abertas em vala comum onde caixões são quase formigas. a vidraça azul tem uma imensa placa de aluga-se, no centro em vermelho e nem o vermelho das flores, quando há, se vê da tomada aérea sobre os caixões. as ruas do brasil que meu poema visita enquanto vago pela sala. como dormem aqueles que seguem nas ruas? como estão os nomes nas celas dos presídios, nos barcos de pesca, nos campos de refugiados? como estão os donos e donas dos nomes que não entram para história como os nomes das ruas, dos estados, dos filhos do presidente?
o poema insiste em passear pelo brasil. sabe o nome do país pelo qual passeia e prefere assim, brasil, diminuído nas minúsculas. porque se os nomes próprios dos mortos não cabem nos jornais, seu nome é substantivo comum, vermelho de sangue e de desastre – essa sina de matar que lhe corta o pescoço história à fora. o poema se pergunta quanto de sangue não lavou o chão e a cor do brasil? o poema quer saber por que é importante verde e amarelo se o carro da limpeza lava um sangue vermelho pelas ruas das favelas, nas sacadas dos prédios de onde despencam crianças indefesas, o sangue dos indefesos e indefesas do brasil banhando chãos de hospitais. de que vale a bandeira verde louro se o chão onde se finca é sangue e corpos na vala comum? brasil. minúsculo, comum, mas com s. de severino, silva sônia, suor, subúrbio, sim e sonho. com s. no formato da cobra que saiu do saara e envenenou seu traficante.
a noite mortal do vírus que tudo arrebenta não deixa o poema dormir e ele quer curar cada uma das chagas, lambê-las como os cães dos santos. não consegue. por saber que poemas não matam os vírus. que o vírus é mínimo e a ciência irá derrotá-lo. confia nela e espera, já que não pode curar. sente-se impotente como se tivesse roubado dele todos os direitos, impotente como depois de um linchamento, deitado no asfalto com dentes quebrados a chutes e sem sapatos, só sangue e o zunir forte nos ouvidos. impotente como uma vértebra quebrada no pescoço que não chega a tirar a vida, como noites febris de pneumonia e coqueluche. o poema está doente por todos os doentes, morto por todos os mortos, mas vivo de alguma forma como os vivos. é mais um dos que se mantêm vivos no brasil. mesmo além do descaso do estado, da irresponsabilidade dos governos, o poema, que tem em mim sua casa, que aqui vive, é severino. como muitos severinos. e isso ainda diz pouco.
sacode meu corpo como se sacudisse grades de um presídio. sem palavras, segue preso em mim. eu, com ele, vagueio pela casa de noite e os espaços da casa são as ruas do brasil. ruas inteiras do brasil – ruas que têm nome como cada um dos mortos, história como cada um, mas que como ruas são mais importantes que os nomes dos mortos e os nomes das ruas aparecem nos jornais. um jornal que anuncia com pesar salas de grandes prédios de vidro vazias, mostra-as em detalhes, e filma de tomada aérea as covas abertas em vala comum onde caixões são quase formigas. a vidraça azul tem uma imensa placa de aluga-se, no centro em vermelho e nem o vermelho das flores, quando há, se vê da tomada aérea sobre os caixões. as ruas do brasil que meu poema visita enquanto vago pela sala. como dormem aqueles que seguem nas ruas? como estão os nomes nas celas dos presídios, nos barcos de pesca, nos campos de refugiados? como estão os donos e donas dos nomes que não entram para história como os nomes das ruas, dos estados, dos filhos do presidente?
o poema insiste em passear pelo brasil. sabe o nome do país pelo qual passeia e prefere assim, brasil, diminuído nas minúsculas. porque se os nomes próprios dos mortos não cabem nos jornais, seu nome é substantivo comum, vermelho de sangue e de desastre – essa sina de matar que lhe corta o pescoço história à fora. o poema se pergunta quanto de sangue não lavou o chão e a cor do brasil? o poema quer saber por que é importante verde e amarelo se o carro da limpeza lava um sangue vermelho pelas ruas das favelas, nas sacadas dos prédios de onde despencam crianças indefesas, o sangue dos indefesos e indefesas do brasil banhando chãos de hospitais. de que vale a bandeira verde louro se o chão onde se finca é sangue e corpos na vala comum? brasil. minúsculo, comum, mas com s. de severino, silva sônia, suor, subúrbio, sim e sonho. com s. no formato da cobra que saiu do saara e envenenou seu traficante.
a noite mortal do vírus que tudo arrebenta não deixa o poema dormir e ele quer curar cada uma das chagas, lambê-las como os cães dos santos. não consegue. por saber que poemas não matam os vírus. que o vírus é mínimo e a ciência irá derrotá-lo. confia nela e espera, já que não pode curar. sente-se impotente como se tivesse roubado dele todos os direitos, impotente como depois de um linchamento, deitado no asfalto com dentes quebrados a chutes e sem sapatos, só sangue e o zunir forte nos ouvidos. impotente como uma vértebra quebrada no pescoço que não chega a tirar a vida, como noites febris de pneumonia e coqueluche. o poema está doente por todos os doentes, morto por todos os mortos, mas vivo de alguma forma como os vivos. é mais um dos que se mantêm vivos no brasil. mesmo além do descaso do estado, da irresponsabilidade dos governos, o poema, que tem em mim sua casa, que aqui vive, é severino. como muitos severinos. e isso ainda diz pouco.
quarentena - julho de 2020.