sexta-feira, 1 de novembro de 2019

O tempo mão


De repente a mão se abre e solta. É simples como dar um passo. Abre a mão e solta. Quando solta, um mundo de possibilidades se abre. A mão, que carregou inútil peso por longo tempo, está livre para novos tatos e novos contatos. Não aguenta mais as bolhas que as coisas lhe causaram, as dores da importância ao inútil, as dores suportáveis e diárias das pequenas ofensas e dos pequenos deixares-de-lado. A mão que sustentou o mundo, equilibrou pratos, fez afagos e vibrou fechada de ódio, sem revidar. A mão que concentrou o medo e quis esconder o rosto, que mostrou-se torta e, por ser torta, foi chamada de louca. De repente, a mão solta tudo isso e livre, alisa outra face.
A nova face que a mão alisa, livre da carga carregada, é o hoje. Está a face leve sem marcas do passado. Na nova face, todas as possibilidades, outras, sem caminhos, espinhos e dores velhas e gastas, já exaustas antes de saírem da cama. A nova face, calma, é um sorriso de companhia. Um sorriso de café com torradas à tarde, de range-rede abraçado de sábado. É a possibilidade de passeio no parque da cidade, de pedras lançadas ao lago, de lenços de partidas e abraços de chegada cada vez mais raros porque não há distância, de horas de silêncio compartilhado mirando o céu pela janela.
A mão, de repente, solta. E vê a tranquilidade da meia idade num embrulho de um livro ao pé da porta. O hoje é um livro embrulhado ao pé da porta. Uma carta que chega, a resposta das milhares de cartas enviadas sem resposta. Uma carta-bilhete, com perfume e letras corridas, mas real e de papel. Comum para além dos boletos. O embrulho na porta, o livro, e tudo o que ele contém de fúria e de sorriso, de improviso no hoje. Um livro que não precisa de estrada, que não é viciado de riscos, que não corta os dedos nas pontas. Um livro, um simples livro para se ler, no hoje, o afago da tarde.