À medida que a vida passa, eu fico cada vez mais lento. É uma força
bruta em mim. E os dias cada vez mais rápidos. Eu demoro duas vezes
mais do que demorava para me arrumar para ir ao trabalho. Demoro duas
vezes mais para comer ou para tomar banho. Mesmo que eu acorde nos
mesmos horários e repita meticulosamente os rituais diários que
repito. Como me mudei muitas vezes de casa, tinha em mente uma
velocidade prática de mudança que hoje é só uma teoria. A última
vez que me mudei demorou mais do que qualquer outra, tomou-me três
longos meses de preparação, o que antes se resolveria em vinte
dias.
Estou mais lento para pensar. Demoro mais a chegar a conclusões. Não
porque o raciocínio está mais lento. Mas porque há mais elementos
a se considerar. Elementos que não considerava antes, que não dava
importância, que não sabia ou não conhecia. E todas as vezes que o
cérebro dá sinais de lentidão, troco algo na alimentação, mudo
uma rotina – aumento um pouco as horas de sono, evito as redes
sociais (esses lugares de dispersão), concentro-me mais nos livros,
mudo rotinas. Porque o cérebro é o que eu tenho de mais precioso e
do qual mais dependo. E ele fica, como todo o corpo, mais lento.
Quanto mais lento eu fico, mais rápido o tempo passa. Ontem era maio
e eu estava me preparando para um concurso, dias depois meu pai
faleceu. Ontem era 2015 e eu defendia o meu doutorado. Foi ontem que
entrei na Universidade, e esse ontem já bate a casa dos vinte anos
no ano que vem. Tudo ontem. Para mim, 1970 ainda dista de mim vinte
anos, e não o ano 2000. E eu tenho ficado lento para acompanhar o
crescimento dos filhos dos meus amigos, as idades dos meus amigos,
seus movimentos de vida. Lento para ler editais e textos, lento num
tempo cada vez mais rápido, em que tudo ao meu redor apita – a
geladeira se fica muito tempo aberta; os carros em que ando se não
fecho bem a porta e se não coloco o cinto de segurança; os
caminhões que dão ré na rua, o telefone, esse aparelho maldito que
precisa me avisar que há uma nova foto, uma nova mensagem que nunca
é urgente de fato, mas que todos consideram assim.
O mundo tem pressa, e eu não tenho. Agora, querem que eu me acelere
para acompanhá-los e eu penso: como me acelerar se ainda tenho
tantos livros a ler e sei que não dará mais tempo de ler todos?
Como me acelerar se ainda não li A montanha mágica
nem Proust, e preciso deles com urgência, mas há um relatório, uma
minuta, um edital, um post
no Facebook,
o último e novíssimo livro de Richard Sennett, o último disco do
Gil, o último show de Elza Soares, os movimentos na prisão do Lula
e as sandices do Presidente que Governa a Prefeitura
Brasil? E eu, lento para isso tudo, que ainda preciso de horas para
fumar meu cachimbo na poltrona enquanto leio revistas impressas, que
sei que meu cachimbo novo vai demorar vinte anos para chegar no ponto
ideal, amaciado lentamente
dia a dia. Como acompanhar a tudo isso sem entrar em pânico ou sem
me sentir deixado para trás?
Dentro disso chega a noção de fim.
Acabará, tudo. Porque a morte é um fato e é de repente. Não se
sabe quando vem e se me levará a razão antes de chegar. Se eu ainda
estarei vivo quando outro sistema econômico posterior ao capitalismo
vier, um sistema mais cruel e violento que poderá acabar com toda e
qualquer forma de emprego e deixar milhões na miséria (porque eu
não sou otimista de que o capitalismo vai morrer no florescer da
economia colaborativa), nesse mundo cada vez mais imbecilizado pelas
mídias digitais que desprezam livros e impressos com a desculpa que
se deve poupar o mundo dos papéis (mas não dos panfletos de loja e
dos santinhos de políticos que inundam e imundam as ruas das
cidades).
Tudo acabará e é um exercício
lento de aceitação de que é preciso priorizar. O tempo não pode
ser desperdiçado com coisas ruins. Não a maior parte do nosso
tempo. É preciso priorizar o afeto, o estar-com. Como diria
Heidegger, ocupar-se do tempo de forma própria, sem se preocupar com
as atualizações, com o que vem depois. Ocupar-se do agora e
vivê-lo, porque só ele restará, por fim. Essa dinâmica importante
que me traz a idade. Eu, lento, tento depurá-la. Ainda não a
alcancei. Mas é um exercício diário até o porvir.
Por isso, ficarei nos livros. Neles,
entendendo que todos, Adorno, Heidegger, Kant, Schiller, Homero,
Drummond, Pessoa, Shakespeare, todos morreram sem ler tudo o que
queriam ler. Os livros carregam os mortos e alguns que estarão
mortos um dia. Mas neles sei que é preciso ficar. Porque eles me
ensinam que para escrever, para pensar, é preciso tempo. Tempo que
não nos dão mais, com o trabalho nos acordando na madrugada em
apitos de telefones, urgências nas horas em que tudo está fechado,
menos os bares. A Universidade ainda não é uma drogaria vinte e
quatro horas, e eu não preciso estar a postos como um balconista de
plantão. Vou me dar o tempo, o silêncio e a ausência das redes no
priorizar os livros. Porque eu vou morrer um dia, e não quero passar
a vida entre documentos formais e relatórios. Sinto muito por
quem quer viver assim.