domingo, 13 de outubro de 2019

A consciência do fim


À medida que a vida passa, eu fico cada vez mais lento. É uma força bruta em mim. E os dias cada vez mais rápidos. Eu demoro duas vezes mais do que demorava para me arrumar para ir ao trabalho. Demoro duas vezes mais para comer ou para tomar banho. Mesmo que eu acorde nos mesmos horários e repita meticulosamente os rituais diários que repito. Como me mudei muitas vezes de casa, tinha em mente uma velocidade prática de mudança que hoje é só uma teoria. A última vez que me mudei demorou mais do que qualquer outra, tomou-me três longos meses de preparação, o que antes se resolveria em vinte dias.
Estou mais lento para pensar. Demoro mais a chegar a conclusões. Não porque o raciocínio está mais lento. Mas porque há mais elementos a se considerar. Elementos que não considerava antes, que não dava importância, que não sabia ou não conhecia. E todas as vezes que o cérebro dá sinais de lentidão, troco algo na alimentação, mudo uma rotina – aumento um pouco as horas de sono, evito as redes sociais (esses lugares de dispersão), concentro-me mais nos livros, mudo rotinas. Porque o cérebro é o que eu tenho de mais precioso e do qual mais dependo. E ele fica, como todo o corpo, mais lento.
Quanto mais lento eu fico, mais rápido o tempo passa. Ontem era maio e eu estava me preparando para um concurso, dias depois meu pai faleceu. Ontem era 2015 e eu defendia o meu doutorado. Foi ontem que entrei na Universidade, e esse ontem já bate a casa dos vinte anos no ano que vem. Tudo ontem. Para mim, 1970 ainda dista de mim vinte anos, e não o ano 2000. E eu tenho ficado lento para acompanhar o crescimento dos filhos dos meus amigos, as idades dos meus amigos, seus movimentos de vida. Lento para ler editais e textos, lento num tempo cada vez mais rápido, em que tudo ao meu redor apita – a geladeira se fica muito tempo aberta; os carros em que ando se não fecho bem a porta e se não coloco o cinto de segurança; os caminhões que dão ré na rua, o telefone, esse aparelho maldito que precisa me avisar que há uma nova foto, uma nova mensagem que nunca é urgente de fato, mas que todos consideram assim.
O mundo tem pressa, e eu não tenho. Agora, querem que eu me acelere para acompanhá-los e eu penso: como me acelerar se ainda tenho tantos livros a ler e sei que não dará mais tempo de ler todos? Como me acelerar se ainda não li A montanha mágica nem Proust, e preciso deles com urgência, mas há um relatório, uma minuta, um edital, um post no Facebook, o último e novíssimo livro de Richard Sennett, o último disco do Gil, o último show de Elza Soares, os movimentos na prisão do Lula e as sandices do Presidente que Governa a Prefeitura Brasil? E eu, lento para isso tudo, que ainda preciso de horas para fumar meu cachimbo na poltrona enquanto leio revistas impressas, que sei que meu cachimbo novo vai demorar vinte anos para chegar no ponto ideal, amaciado lentamente dia a dia. Como acompanhar a tudo isso sem entrar em pânico ou sem me sentir deixado para trás?
Dentro disso chega a noção de fim. Acabará, tudo. Porque a morte é um fato e é de repente. Não se sabe quando vem e se me levará a razão antes de chegar. Se eu ainda estarei vivo quando outro sistema econômico posterior ao capitalismo vier, um sistema mais cruel e violento que poderá acabar com toda e qualquer forma de emprego e deixar milhões na miséria (porque eu não sou otimista de que o capitalismo vai morrer no florescer da economia colaborativa), nesse mundo cada vez mais imbecilizado pelas mídias digitais que desprezam livros e impressos com a desculpa que se deve poupar o mundo dos papéis (mas não dos panfletos de loja e dos santinhos de políticos que inundam e imundam as ruas das cidades).
Tudo acabará e é um exercício lento de aceitação de que é preciso priorizar. O tempo não pode ser desperdiçado com coisas ruins. Não a maior parte do nosso tempo. É preciso priorizar o afeto, o estar-com. Como diria Heidegger, ocupar-se do tempo de forma própria, sem se preocupar com as atualizações, com o que vem depois. Ocupar-se do agora e vivê-lo, porque só ele restará, por fim. Essa dinâmica importante que me traz a idade. Eu, lento, tento depurá-la. Ainda não a alcancei. Mas é um exercício diário até o porvir.
Por isso, ficarei nos livros. Neles, entendendo que todos, Adorno, Heidegger, Kant, Schiller, Homero, Drummond, Pessoa, Shakespeare, todos morreram sem ler tudo o que queriam ler. Os livros carregam os mortos e alguns que estarão mortos um dia. Mas neles sei que é preciso ficar. Porque eles me ensinam que para escrever, para pensar, é preciso tempo. Tempo que não nos dão mais, com o trabalho nos acordando na madrugada em apitos de telefones, urgências nas horas em que tudo está fechado, menos os bares. A Universidade ainda não é uma drogaria vinte e quatro horas, e eu não preciso estar a postos como um balconista de plantão. Vou me dar o tempo, o silêncio e a ausência das redes no priorizar os livros. Porque eu vou morrer um dia, e não quero passar a vida entre documentos formais e relatórios. Sinto muito por quem quer viver assim.