quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Estudos de cartografia I

 para Ana Paula Nunes

o acaso da vida
seus ditames
os imprevistos compostos
sua pele

onde as palavras esquecem
a sua real filosofia
e nos põem contrapostos
de mãos dadas

fervilha a pele das unhas
sob abraços desfeitos
nos repetidos dias de imprevisto

como se a força da cor da aurora
[esta que nos imprime o dia]
fosse o contrário da forma

: corpo

esse rio presente em paradigmas
que nos traz a parte cortada
a que amputamos de nós
a capacidade de crer no fim
como um desabrochar violento da orquídea

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Para Thaís (parte 2)

Lembrar você nas ruas de Diamantina. Onde saímos e onde nos sentamos para ver o dia dormir. Onde passeamos risadas naquele janeiro de há doze anos. E nos vi por ali, almoçando no restaurante que almoçamos, sentando nas mesas dos bares em que bebemos umas cervejas, parando na porta do hotel que dormimos. Nossos dias ali, de novo, reduzidos e diminutos.

Senti sua falta, estranha falta que só sinto por saber que você partiu. Desde que virou jamais, algo novo nasceu por você, e não sei o que é. Uma latência, um som. Você reaparece cristalizada nas fotos, sabendo-se sem telefonemas, e tudo ficou de alguma maneira encantado e carregado de carinho. Talvez porque a morte tenha lá esse peso. E você se subverte na memória, e escapa aqui e ali de onde eu a tinha guardado, entra noutros espaços. Reaparece nas falas do dia, quase sempre.

Sonhei com você esses dias. Sonhei que sorria! E acordei à procura de uma foto que tinha sua na minha cama, sorrindo, vestindo uma blusa minha. Resgatei essa foto e achei outras, uma da gente acordando e da sua cara de mal humor, de você saindo de um baile vestindo meu paletó, da gente sentado num meio-fio durante o carnaval de 2004, da gente com Cynthia, Dávine e Regisley na sua casa. Tenho ainda essas fotos, hoje artefatos de saudade do jamais.

Tenho ainda a palavra saudade escrita em pedra que você me deu quando comecei a viajar para trabalhar e que levou nosso relacionamento ao fim. Lembrei dos encontros rápidos nas rodoviárias, quando estava de passagem. De nossa viagem de janeiro, que começou por Diamantina, nossa longa e importante viagem, decidida de repente, com roupas compradas numa loja em BH, nada programado, como tudo que era nosso. Achei os postais que me mandou de Hong Kong, achei nossas cartas que têm mais de dez anos, mais de quinze anos. Achei o lenço que você usou no cabelo em um dos nossos carnavais, sempre cheios de desencontros e de conversas longas pelos meio-fios. Os lenços que você usou no vestibular em Viçosa, quando fomos juntos. Lembrei de uma vez que você viajou escondida de carro para me ver porque eu não regressaria à Mariana, de você me esperando descer do ônibus quando fui pela primeira vez em São João. Daquela casa pequena em São João. Da decisão de que só nos suportaríamos se vivêssemos em casas separadas.

Você ainda está nas ruas de Mariana, em Passagem. Passo por lá e há sempre uma dor. As coisas mudaram, eu mudei. As coisas mudaram e não cumprimos o plano de comprar livros na Grécia para não perdermos a viagem. Não cumprimos muitos planos desde que tudo terminou e com sua morte fica essa coisa suspensa, porque sempre se tem um depois, sei lá, nessa vida maluca de erros.

Nos dias por nossa cidade, lembrei do que você me disse, quase como uma profecia que acabou por não se cumprir. De que iríamos nos distanciar, nosso relacionamento acabaria para retornar quando estivéssemos mais maduros e soubéssemos lidar melhor com o amor.

Amor. Lembrar de você é lembar que eu já acreditei no amor, e ele parece ecoar de uma vida que não sei mais onde está. Quando você partiu, Bia me ligou e repetia isso, de que eu a tinha amado muito. Um dia, na Sé, Flavinho me disse que achava que nos casaríamos. Fabiano me disse num bar em BH que faltou dar em você o último abraço. Fui apresentado ao marido de Cynthia com meu nome ligado ao seu. Um dia, do nada, Dávine postou uma foto em que estávamos juntos. São tantos registros! Você, sempre sorrindo! Houve amor, um louco amor. Desses que os jovens sentem e que encantam. Um amor que precisava se afastar e amadurecer. E nesse hífen você partiu e eu deixei de acreditar que amar é possível, que exista de fato esse sentimento, o amor.

Você foi importante e eu ainda não consegui superar sua partida. Ainda espero seu telefonema de alguma parte do mundo para a gente dizer ao telefone que a memória que temos um do outro é a de ex-casados, da saudade que temos de você jogando pedras na minha janela quando matava aulas para passar o dia comigo escondida de todos. Nossas tardes e manhãs. Nossas descobertas de nós e do mundo. Dos nossos sonhos de viajar o planeta.

O destino tem brincadeiras cruéis. Quando saí em Diamantina para repetir nossa noite no mercado, vi margaridas. Você estava lá, em tudo. E já fazem doze anos desde aquele janeiro. Quem sabe um dia tudo volte. Quem sabe o que o destino ainda me reserva, já que sua trajetória aqui já terminou. Nesses espaços encantados, ainda espero sua ligação. Ainda espero saber quem você ama no momento, e como se lembra de nós. Eu sigo cada vez mais seco. Mas há sua memória agora, que ilumina as coisas a seu modo.