domingo, 30 de dezembro de 2018

Mais uma vez, a estrada


Quando fiz sete anos, sabia ler. Quando fiz dezessete, estava com a coluna quebrada e recebi uma festa surpresa. Quando fiz 27, tinha acabado de passar no mestrado da Ufes, morava em Vila Velha, já era professor universitário há um ano. Agora, às vésperas dos 37, estou com uma casa nas caixas, com uma mudança que atrasou mais de um mês, mas sou professor universitário de uma universidade pública, como planejado há 20 anos.
A vida e suas voltas. Nos trinta anos que separam o aprendizado da leitura à sala de aula de um curso de Letras, muita coisa aconteceu. E todas elas estão em alguma coisa que já está encaixotada. As coisas, suas forças no tempo, seus pesos. E nelas as lembranças muitas, as alegrias e as tristezas, as noites em claro estudando. A sensação de que o amanhã, depois dos livros, seria de segurança e paz.
A paz se alcança aos poucos, na medida em que consigo reduzir a estrada. Mas como reduzir a estrada, se nos últimos dezoito anos a dinâmica foi mudar, trocar de telefone, de cep, de endereço, de cidade? Como diminuir a estrada se ainda rodo seis horas no mínimo por semana, mais de 300km, para trabalhar – eu que sempre trabalhei em cidades diferentes das que moro, seja no pequeno espaço que separava Ouro Preto e Mariana, Cariacica e Vitória de Vila Velha, seja nas distantes cidades da zona da Mata, na distância que há entre Januária e Montes Claros? Como vencer o fim dos ônibus, das rodoviárias, dos guichês?
A segurança é sempre adiada. Porque agora é o governo quem ameaça a educação. A ameaça que ronda as portas das universidades, os fantasmas e os cortes nada fantasmagóricos de verbas. A incerteza da manutenção do ensino e a necessidade de seguir lutando.
Mais uma mudança entre tantas, mais um tempo entre tantos. E nessa estrada sem fim, perder amores. Porque é uma soma de perdas, de amores que vão ficando para trás nessa jornada. De nomes que agora figuram ladeados num diário, cada ano que passa mais distantes e incomunicáveis, de vidas que parecem serem de outra encarnação, tão diverso me torno de mim a cada ano. E mesmo que ressurjam vez por outra, caem outra vez nessas distâncias, sempre mudas. A vida e suas labutas. Essas mudanças.
Hoje, às vésperas dos 37, o ritmo de mudar é mais lento. O corpo sente mais o peso das caixas e das fitas. O corpo sente mais a espera do caminhão, o ligar para transferir telefone, a troca dos cadastros residenciais. O decorar o novo cep. Saber onde ficam as coisas no novo bairro. Tudo novo de novo, tudo outra vez e uma rotina a reconstruir. O corpo sente mais esses cansaços e as distâncias e não suporta mais mudar. Mas é resiliente quanto ao fato de que o próximo endereço é mais um. Que o próximo cep é mais um. Que essa estrada nunca sairá do horizonte e que nunca será possível um repouso de um tempo num único lugar. E mais pessoas passarão, mais amores ficarão pelo caminho. Mais estrada por fim, o único lugar que habito.