Chama a atenção alguns elementos
nas ações contra os demais cancelamentos e censuras que a arte vem
sofrendo ultimamente. A primeira é a de que a caça não é à arte
somente, mas aos locais públicos de sua exposição. Tanto a
Polícia, no caso da performance “DNA de DAN”, em Brasília,
quanto o MBL, em Porto Alegre e em São Paulo, usaram de discursos
conservadores contra espaços
de arte – seja a rua, sejam museus –,
com amplo apoio de uma parcela também
conservadora da sociedade.
Juntamente com essas iniciativas, a
recente decisão do STF sobre o ensino religioso nas escolas e a
campanha por uma Escola sem Partido – absurda do ponto de vista
pedagógico e político – preocupam porque direcionam dois olhares
complicados. Ambos ligados às práticas públicas e privadas.
Se uma pessoa não gosta de uma obra
de arte ou de uma performance, isso é um problema individual
que está ligado aos seus valores, gostos e crenças. E é legítimo
que essa pessoa desgoste. Agora, quando a questão é silenciar a
arte, esse problema passa a ser coletivo. Se uma pessoa tem uma
fé na qual acredita e parte dela para observar o mundo, essa é uma
decisão individual. Quando o ensino religioso de determinado
segmento começa a ser imposto por órgãos de Estado isso é um problema coletivo. E
quando o problema é coletivo, mais do que tensões de frente devem
ser colocadas à mesa para a discussão.
Uma empreitada contra a arte e outra
contra a livre escolha religiosa, ao mesmo tempo, são preocupantes.
Primeiro porque o que se faz, em uma, por incisivo apelo a
valores de um grupo, é o banimento de pessoas dos espaços onde estão as artes. Há,
assim, um crescente silenciamento dos lugares questionadores da
sociedade, que problematizam valores, posturas e condutas públicas.
Se a onda seguir por esse caminho, em breve teremos livros proibidos,
músicas proibidas, e a manifestação coletiva dos discursos, a
liberdade de expressão, a democrática relação da coletividade com
a arte estarão ameaçados. Além
disso, se um único grupo ditar o que deve ou não ser arte e o
papel que tenha que desempenhar, isso limitará a arte
a atender e propalar uma única ideologia, um único conjunto de
valores.
No mesmo caminho, uma
linearidade de ensino religioso que contemple um único viés de
doutrina – porque as religiões têm suas doutrinas –
problematiza a pluralidade do espaço da sala de aula. Em um país de
maioria cristã, muçulmanos,
budistas, taoistas, umbandistas, membros do candomblé, kardecistas,
ateus, agnósticos sofrerão imposições que extrapolam o espaço
privado e o direito individual de escolha.
Em cenários alarmantes de
retrocesso de dinâmicas coletivas, outras
questões
se colocam.
A quem isso interessa? Quais as forças que, conjuntamente,
patrocinam ambas as ações? Quem financia e a quem isso será
interessante?
Não é possível pensar isso
desligado da campanha que ganha adeptos pelo país em
favor da volta do Regime
Militar. Também não podemos desligar isso da crescente onda
fascista em que se ampara Jair Messias Bolsonaro na sua caminhada
política visando o Planalto. Muito menos deixar de pensar isso
quando políticas públicas de retrocesso e de austeridade
econômica tomam o país. Todos esses discursos estão, em algum
ponto, muito ligados. Amarrados a ideologias perigosas que já
vivemos em outros tempos.
O discurso unilateral e individual
da moral não pode e não deve entrar sem crítica nos espaços
coletivos e públicos que, por lei, são de livre expressão.
Qualquer discurso que silencie a arte ou que impossibilite a
diversidade – sexual, racial, religiosa, etc – é problemático e
antidemocrático. É ser contra as múltiplas formas de discurso, é
ser contra os espaços públicos de diversidade, é ser contra a
pluralidade e a coexistência da diferença, patrocinando
posturas em que uns tenham
mais direitos que os outros.
Assim, reitero:
há mais por trás das manifestações contra a arte. Há mais por
trás nessa decisão do STF. E o que está por trás não é nada
ingênuo e nada distante de uma ideologia cruel que pode – e vai –
ser muito útil ao que está se arquitetando atualmente no país.