quarta-feira, 14 de setembro de 2016

O que sobrou


Queria poder dizer coisas boas, Mariana, dos tempos que revivemos em 2013. Mas não me lembro de muitas. Lembro que entre nós ficou só a resolução de que nosso amor é passado, e lá onde ainda sobra alguma nostalgia nos conciliamos no sonho.
Ainda sonho com suas ladeiras de pedras e noites de frio. Ainda sonho que abro a velha casa do Beco, suas portas cinzas de duas abas, abro as janelas e estou ali clandestino morando novamente no número 57, com janelas para o muro da casa da frente e barulhos no forro do teto. Ainda sonho que entro e está na sala o velho sofá ganhado, a mesa laranja, minha cama comprada com dinheiro que ganhei vendendo salgados na rua. Mas é sempre outra casa no sonho, habitada por desconhecidos que me toleram a visita por respeito a uma memória que é minha, e não daqueles que na casa vivem.
Mas não tenho sonho dos nossos anos de 2013. Deles tenho uma amarga e estranha lembrança, entre um cinza e outro de dias de chuva sem bucolismo e lirismo, de mofo nas coisas que realmente incomodavam, de aranhas venenosas de coloridas descendo pela lateral dos muros que pouco compreendia, que davam para o Ribeirão do Carmo e seu odor me invadindo as janelas. A vista arrepiante do Espinhaço fechando o horizonte e mostrando a ponta do morro por onde passavam carros barulhentos.
Há a lembrança do penhasco que Thaís me apresentou, de paisagem mudada, mesmo que fundo e opaco como quando o vi pela primeira vez. A rua íngreme que eu subia pensando em ir embora todo dia, com saudade dos afetos de Vila Velha, da Rua da Lama e da Ufes, daquilo que fiz de mim nos anos capixabas e que gostava tanto, tão distantes naquele vale frio onde fui morar por escolha.
No retorno à Mariana, naquele ano, muito se quebrou. Perdi a saudade apertada que tinha de tudo. Perdi o encanto de olhar o ICHS quando chegava, aquela sensação de ir ver um velho companheiro de estrada. E quando ia lá era outra dor estranha e difusa, de falta de encaixe absoluto, como se visitasse uma encarnação passada onde aquele que era eu não se mirava.
Saía à rua e revia velhos rostos conhecidos, mudados pelo tempo e pelos hábitos. Nas filas dos bancos, muitos comentavam que a sensação e imutabilidade em Mariana era um fantasma de lençol sobre a cabeça. Como se tudo em nós mudasse fundo e rápido, mas a cidade seguisse lenta. E nesses rostos vistos, rostos queridos de outras eras, achasse aqui e acolá lembranças como âncoras capazes de me dar razão na escolha mais infundada que já tomei na vida, talvez meu maior erro, por mais que necessário.
Voltar à Mariana não era voltar ao que deixei. Era perder. E perdi. Perdi duras e importantes ilusões. Perdi a força pungente e mutante do mar, perdi meu sono e dias a fio de leituras e trabalho. Perdi o carinho que enfeitava meus anos de graduação, recheado de saudade e alegria. Perdi aquela alegria que era chegar à cidade em meio à neblina da madrugada.
Vivi muito pouco do que queria, de fato, viver lá. Fui menos do que queria aos bares mais queridos, e quando ia era uma perda estranha, um desencaixe. Não joguei sinuca com velhos camaradas em lugares que me foram felizes. Não fui nem o mínimo que desejava à Ouro Preto, que ainda hoje mantém em mim a alegria de antes, aquela paixão que tivemos à primeira vista quando a visitei pela primeira vez em 1999, que alterou vertiginosamente a minha vida.
De Mariana, hoje, remonto um imenso quebra-cabeças. Nele há os sambas que cantamos nas madrugadas cheias de juventude e esperança. Há as risadas com Fernando e Marcel na sala da casa do Beco, quando ainda se chamava Lém Kaza e não era um lugar distante, estranho e contrário ao que foi como hoje. Há noites na porta do Corujão e do Sagarana e conversas boas com Edmar e Toninho. Há os papos meus com Fabrício e Giu na esquina da Rua do Seminário, quando saíamos das aulas de literatura abalados com tudo que líamos e pensávamos. Há filas do Bandejão com Mazzetti, Boga, Ana e Maguinho, com tantos outros quando ríamos da vida leve que levávamos. Há tardes nos bancos do jardim com o Boy, quando falávamos de nossas primeiras experiências como professores. Há as tardes que passei com a Bia falando de arte e tomando café, os dias sentados pelo ICHS conversando com Vanessa, falando de seus poemas, os dias que sentei e desabafei coisas e devaneios com Murafá ouvindo Chico. Há o redondo e suas melhores horas de ácidas e sarcásticas piadas, com pessoas que se hoje lá estivessem e eu pudesse acioná-las, seria divertido. Hoje, são espaços vazios desses afetos cada um dos lugares onde tudo isso se deu.
Hoje sou eu o estranho no meio de tudo quando penso nessas lembranças todas. Estranho até a mim mesmo quando olho as fotos daquele tempo e quase não me vejo nelas. Estranho por entender que nada retornará e que é inútil sentir essa falta, falta que me motivou ao erro e que com ele trouxe esse gosto amargo que hoje carrego.
Por isso remontar o quebra-cabeças. Deslocar a lembrança para um lugar afável. A lembrança de um tempo até muito antes do meu retorno em 2013. Um tempo onde lembrar do tempo era bom. E não a Mariana onde soube que Adão morreu, que Thaís morreu, onde velei Zé Arnaldo. A cidade que me amanhecia cinza e de que me lembro de sol só na manhã de minha partida, com o pouco que sobrou de uma casa que chegou completa e se perdeu, naquele pequeno caminhão que me levou de volta para Belo Horizonte. Sol como vi no Rio de Janeiro quando, na casa do Leo, me decidi pela volta. E hoje, aqui, em Januária, nessa cidade que me abraça num abraço quente, reencontrar-me com o hiato que deixei quando saí de Vitória naquele dia de sol, suspenso, um pouco melhorado dos anos de BH. Voltei talvez para mim na saudade inconstante que estava de mim. Desse mim que o mar moldou e que o São Francisco dá acabamento. Mariana é um lugar nas pessoas, por isso o que me importa agora talvez sejam as pessoas para além desse lugar. Quero-as comigo, sem mais.