Queria poder dizer coisas boas,
Mariana, dos tempos que revivemos em 2013. Mas não me lembro de
muitas. Lembro que entre nós ficou só a resolução de que nosso
amor é passado, e lá onde ainda sobra alguma nostalgia nos
conciliamos no sonho.
Ainda sonho com suas ladeiras de
pedras e noites de frio. Ainda sonho que abro a velha casa do Beco,
suas portas cinzas de duas abas, abro as janelas e estou ali
clandestino morando novamente no número 57, com janelas para o muro
da casa da frente e barulhos no forro do teto. Ainda sonho que entro
e está na sala o velho sofá ganhado, a mesa laranja, minha cama
comprada com dinheiro que ganhei vendendo salgados na rua. Mas é
sempre outra casa no sonho, habitada por desconhecidos que me toleram
a visita por respeito a uma memória que é minha, e não daqueles
que na casa vivem.
Mas não tenho sonho dos nossos
anos de 2013. Deles tenho uma amarga e estranha lembrança, entre um
cinza e outro de dias de chuva sem bucolismo e lirismo, de mofo nas
coisas que realmente incomodavam, de aranhas venenosas de coloridas
descendo pela lateral dos muros que pouco compreendia, que davam para
o Ribeirão do Carmo e seu odor me invadindo as janelas. A vista
arrepiante do Espinhaço fechando o horizonte e mostrando a ponta do
morro por onde passavam carros barulhentos.
Há a lembrança do penhasco que
Thaís me apresentou, de paisagem mudada, mesmo que fundo e opaco
como quando o vi pela primeira vez. A rua íngreme que eu subia
pensando em ir embora todo dia, com saudade dos afetos de Vila Velha,
da Rua da Lama e da Ufes, daquilo que fiz de mim nos anos capixabas e
que gostava tanto, tão distantes naquele vale frio onde fui morar
por escolha.
No retorno à Mariana, naquele
ano, muito se quebrou. Perdi a saudade apertada que tinha de tudo.
Perdi o encanto de olhar o ICHS quando chegava, aquela sensação de
ir ver um velho companheiro de estrada. E quando ia lá era outra dor
estranha e difusa, de falta de encaixe absoluto, como se visitasse
uma encarnação passada onde aquele que era eu não se mirava.
Saía à rua e revia velhos
rostos conhecidos, mudados pelo tempo e pelos hábitos. Nas filas dos
bancos, muitos comentavam que a sensação e imutabilidade em Mariana
era um fantasma de lençol sobre a cabeça. Como se tudo em nós
mudasse fundo e rápido, mas a cidade seguisse lenta. E nesses rostos
vistos, rostos queridos de outras eras, achasse aqui e acolá
lembranças como âncoras capazes de me dar razão na escolha mais
infundada que já tomei na vida, talvez meu maior erro, por mais que
necessário.
Voltar à Mariana não era voltar
ao que deixei. Era perder. E perdi. Perdi duras e importantes
ilusões. Perdi a força pungente e mutante do mar, perdi meu sono e
dias a fio de leituras e trabalho. Perdi o carinho que enfeitava meus
anos de graduação, recheado de saudade e alegria. Perdi aquela
alegria que era chegar à cidade em meio à neblina da madrugada.
Vivi muito pouco do que queria,
de fato, viver lá. Fui menos do que queria aos bares mais queridos,
e quando ia era uma perda estranha, um desencaixe. Não joguei sinuca
com velhos camaradas em lugares que me foram felizes. Não fui nem o
mínimo que desejava à Ouro Preto, que ainda hoje mantém em mim a
alegria de antes, aquela paixão que tivemos à primeira vista quando
a visitei pela primeira vez em 1999, que alterou vertiginosamente a
minha vida.
De Mariana, hoje, remonto um
imenso quebra-cabeças. Nele há os sambas que cantamos nas
madrugadas cheias de juventude e esperança. Há as risadas com
Fernando e Marcel na sala da casa do Beco, quando ainda se chamava
Lém Kaza e não era um lugar distante, estranho e contrário ao que
foi como hoje. Há noites na porta do Corujão e do Sagarana e
conversas boas com Edmar e Toninho. Há os papos meus com Fabrício e
Giu na esquina da Rua do Seminário, quando saíamos das aulas de
literatura abalados com tudo que líamos e pensávamos. Há filas do
Bandejão com Mazzetti, Boga, Ana e Maguinho, com tantos outros
quando ríamos da vida leve que levávamos. Há tardes nos bancos do
jardim com o Boy, quando falávamos de nossas primeiras experiências
como professores. Há as tardes que passei com a Bia falando de arte
e tomando café, os dias sentados pelo ICHS conversando com Vanessa,
falando de seus poemas, os dias que sentei e desabafei coisas e
devaneios com Murafá ouvindo Chico. Há o redondo e suas melhores
horas de ácidas e sarcásticas piadas, com pessoas que se hoje lá
estivessem e eu pudesse acioná-las, seria divertido. Hoje, são
espaços vazios desses afetos cada um dos lugares onde tudo isso se
deu.
Hoje sou eu o estranho no meio de
tudo quando penso nessas lembranças todas. Estranho até a mim mesmo
quando olho as fotos daquele tempo e quase não me vejo nelas.
Estranho por entender que nada retornará e que é inútil sentir
essa falta, falta que me motivou ao erro e que com ele trouxe esse
gosto amargo que hoje carrego.
Por isso remontar o
quebra-cabeças. Deslocar a lembrança para um lugar afável. A
lembrança de um tempo até muito antes do meu retorno em 2013. Um
tempo onde lembrar do tempo era bom. E não a Mariana onde soube que
Adão morreu, que Thaís morreu, onde velei Zé Arnaldo. A cidade que
me amanhecia cinza e de que me lembro de sol só na manhã de minha
partida, com o pouco que sobrou de uma casa que chegou completa e se
perdeu, naquele pequeno caminhão que me levou de volta para Belo
Horizonte. Sol como vi no Rio de Janeiro quando, na casa do Leo, me
decidi pela volta. E hoje, aqui, em Januária, nessa cidade que me
abraça num abraço quente, reencontrar-me com o hiato que deixei
quando saí de Vitória naquele dia de sol, suspenso, um pouco
melhorado dos anos de BH. Voltei talvez para mim na saudade
inconstante que estava de mim. Desse mim que o mar moldou e que o São
Francisco dá acabamento. Mariana é um lugar nas pessoas, por isso o
que me importa agora talvez sejam as pessoas para além desse lugar.
Quero-as comigo, sem mais.