quarta-feira, 22 de abril de 2015

fui enganado há muitos anos
(quantos anos?)
muitas vezes

se me levanto
à vida
e me tenho ao espelho
(se me tenho)

é porque me engano de mim
há muitos anos
(tem-se aí?)

se me levanto
à vida (se levanto)
contenho as vias
ou nem tanto

mas é engano
velho engano
estas vias
tal engano

domingo, 19 de abril de 2015

Do estar em comunidade


Jean-Pierre Vernant, em um texto bonito que abre sua reunião de ensaios organizados sob o título de Mito e política, diz que, na Grécia antiga, a noção de amizade se fazia a partir da noção de comunidade, tendo por ponto central o pensamento de que aos amigos tudo é comum. Por isso, a comunidade era, em toda a sua extensão, uma grande teia de relações de amizade, visto que se fazia dentro de uma lógica de comuns. Ser amigo, pois, é estar entre comuns e viver em comunidade nada mais é que estar, em relações mais complexas e amplas, cercado de amigos.

Vernant começa discutindo isso para pensar duas relações de sua própria vida: lembrar seus momentos de envolvimento com a resistência francesa no período da ocupação nazista em Paris e sua relação de amigos conquistados ao longo de sua carreira como pesquisador do mundo grego, de seus estudos universitários e de seus desdobramentos. Enquanto pensa o conceito grego de amizade, o pesquisador fala de si de forma mais descontraída e com menos carga ensaística, um texto que não se aproxima da costumeira escrita acadêmica, mas que quer, assim, aproximar o leitor de um autor mais real e humano, mais comum.

O que importa aqui desse belo texto de Vernant é o ponto de que estar entre amigos traz uma garantia de preservação do passado, o que contribui para que a nossa própria vida tenha sentido, visto que é possível perceber na memória do outro uma lembrança que se soma à nossa, ampliando assim a noção que temos sobre nós mesmos e o que, nesta noção, é particular e importante, aquilo que nos faz comuns em muitos pontos. Nesse sentido, nada é estranho entre amigos. E o tempo, importante e denso, quando põe amigos em contato, propicia que, nele, possamos entender melhor o que fizemos nós de nós mesmos, como tangenciamos a existência e o que, em nós, é um passado mais verossímil, no momento em que, por felicidade, podemos reviver e celebrar por breves instantes o que é, de fato, a comunidade a qual nos completa.

Ontem, como há muito não se dava em mim, estive em contato com amigos e amigas que, mesmo com o distanciamento no tempo, ainda me são comuns. E esses amigos e amigas, a quem eu ainda sou comum, acolheram-me no calor da comunidade que nós, ano após anos, por essas terras de montanhas mineiras, consolidamos, construímos, tecemos. E nesse encontro comunitário, amplo e de compartilhamento de experiências e notícias, dois famosos versos de Drummond dos quais tanto gosto reviveram-se em mim: “De tudo fica um pouco” e “É certo que me repito”.

A amizade é feita do que fica e da repetição que tudo tem. Repetir amplia muito o que do outro trazemos, mantemos, compartilhamos, o pouco que carregamos em nós do outro, em suas expressões marcantes, em momentos de felicidade plena. E a repetição surge, no momento em que nos reencontramos, creio, porque tem sabor aquilo que é repetido. É preciso contar a mesma história umas mil vezes porque em cada uma delas, em cada nova versão do velho feito, somos nós que nos revemos, revivendo pela infinita capacidade de relembrar, o que nos foi preciso e caro. Como disse a um velho amigo, é quando tudo vira história que a eternidade se dá.

Nisso, por fim, nessa relação repetida que nos deixa um pouco do outro, deste outro que a nós nada tem de estranho, é que se torna possível perceber o que é, efetivamente, alegria: seu sabor e seu saber (não por acaso, palavras de mesma raiz). Quando podemos reviver tais momentos de amizade comum, repetida e repartida, sabemos o sabor que tudo isso dá ao viver.

E em tempos sombrios como os que vivemos, é bom lembrar sempre que estar em comunidade é buscar viver nas relações a aceitação do outro em sua diferença, percebendo nele o que nos aproxima e nos reúne em um grupo comum. Como diria Caetano, eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Mas acredito nas harmonias possíveis antes do juízo final e esse sentimento maior de amizade pode ser, por assim dizer, o caminho para essa busca. Ontem, estar entre amigos me fez, novamente e de forma profunda, membro da comunidade que tanto amo.