Neblina. Talvez a maior metáfora. A impossível neblina. Falei dessa neblina tantas vezes, para tanta gente! Falei no ônibus, voltando de uma aula, conversando com Magali. Ela riu, falamos dessas neblinas, das nossas. Dessa que, quando se está nela, é difuso, só a soma de projeções. E falei de outras neblinas, do sertão, de um rio a atravessar.
Sonhei um sonho inconcluso com o rio de Heráclito. E agora estou aqui, na margem entre uma travessia, uma estrada, o rio e a neblina.
Ouvi no rádio a música do Vinícius, de que amor só é bom se doer. Não. Amor não é bom se doer. Quando dói, é porque ele abriu um espaço, saiu do lugar que deveria ocupar. E se saiu daquele lugar, era amor o que ali havia? Era amor quando, sentado no banco sozinho, outra dor enorme surgiu, precisando dele, e não era ombro, nem abraço, nem olhar ali, mas só as sombras das árvores, o chão molhado da chuva? E quando esse espaço é constante e grande e intermitente? É amor?
Desse lado de cá, onde tudo finda um pouco, na neblina, muitas cenas me revisitaram. Eu vi sorrisos como em fotografias. Vi mãos, também, a brincarem com a sombra das paredes. Vi-me sentado no meio-fio a contar histórias, a rir. Naquele tempo era possível um carnaval simples, sem abandonos, sem meu corpo esquecido na porta de algum lugar nunca antes visitado, saco de trapos trocado por confete e serpentina. Naquele tempo, antes da troca, era possível um carnaval. Tive dúvida: era possível? Fui ver nas fotos. Há uma, desbotada, antiga, e nela está estampada, no congelado espaço, o meio-fio, a alegria, sem trapos, trocas, abandonos. Era possível a alegria simples de estar em companhia. Era possível tocar as pessoas, abraçá-las.
Hoje, tudo é uma distância maior que a geográfica, que a estelar. Ela se adensa entre as pessoas e é inútil gritar que vem chegando o carnaval, a alegria simples de conversas nas calçadas, de ressaca na quarta de cinzas. Existem telas, medos, viagens pré-agendadas, escolhas individuais, fotos instantâneas sem revisitação, um carnaval virtual onde ninguém estará onde realmente estará – se é que antes esteve. Num momento, no meio da multidão, muitos pararão para se admirar nas fotos do dia, e o carnaval passará ileso para muitas pessoas, sem tocá-las. Passará sentindo falta da alegria das mãos que se procuram, que querem estar juntas para, lado a lado, uma sobre a outra, tocar a variação 18 do tema de Paganini, de Rachmaninoff. Uma sobre a outra, tocando-se e à música, no meu hoje inconcluso sonho, esse rio de Heráclito. Mas é outro o rio, a neblina, a estrada que finda.