terça-feira, 24 de novembro de 2015

Um silêncio de 1000 compassos na morte de Mozart de Oliveira.


Morreu Seu Mozart. É dura a nota, mas simples, porque ele gostava desta palavra. Simples como o gesto calmo, como a precisão musical. Simples como o jeito de sorrir ao desconhecido, a quem, iniciante ou velho de choro, se aproximava de seu violão. E a morte é simples, mesmo que para nós, que ficamos sem a música de Mozart, não a entendamos assim.
Ouvi Mozart algumas vezes, menos do que muitos amantes do choro em Belo Horizonte. Conheci-o no Bar do Salomão, o franco sorriso no rosto, o amor ao choro e à música com uma qualidade rara. Quando o interpelei pela primeira vez, ele me disse emocionado: “Estão fazendo um filme sobre mim. Vai se chamar ‘Simplicidade’. Esse é o choro que eu mais gosto. Eu acho que na vida, o mais importante é a simplicidade”.
Partiu Mozart num domingo. Domingo, o primeiro dia da simplicidade. O dia da Luz, na tradição cristã. E foi enterrado na segunda, neste 23, e hoje, logo segunda, foi o primeiro choro no Bar do Salomão sem a possibilidade do choro do Mozart.
Hoje, Mozart, Belo Horizonte chorou. Chorou uma chuva forte, cheia da sua difícil e importante simplicidade. A Luz, a primeira, aquela simplicidade que marcou na tradição cristã a criação de um dia de partida, o dia do princípio, do seu princípio de luz em outra caminhada, acabou hoje, Mozart, só no Bar do Salomão, enquanto seus meninos chorões tocavam os choros que você conhecia de cor. Baixaram-se as portas do bar e o samba tocou muitas músicas. Tocaram “Naquela mesa”, e faltou você. Sempre faltará você, Seu Mozart. Sempre faltará sua tão difícil, importante e urgente simplicidade.
Fui pego de surpresa com a notícia. O silenciar de um violão é sempre urgente, nostálgico, nada simples. Ficou sua lição: nada é simples, mas isso não nos impede de tentar a simplicidade em tudo. Em paz, Mozart, vai contigo meu choro (comum, sem música).

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

é corpo seu norte

é corpo seu norte
agulha de bússola
aponta o dentro
a fundo e fundo

no fundo que
enfim
é muito confuso
cheio de rotas curvas
em mapa não dedilhado.

é copro seu norte
amado distante
feito frio fino
um sopro atrás da orelha do olvido
onde as palavras ecoam sem mais
vindas do ali
[para mais].


é corpo seu norte
forte imantado
braço no escuro
e o lençol leve de culpa
que nula
paira sobre a lama suada
dos corpos amados que tombam
desfeitos
sem mais cais.

é corpo seu norte
sem pressão de saliva
sem peso de medo
disperso na vida das unhas
nas marcas dos cabelos
nas rugas que o corpo sempre traz
mesmo jovem
sempre intenso
caçando os sabores do assinte
onde nada, pleno, conduz para salto.

é corpo seu norte
feito corte com faca de cozinha
na parte baixa da língua
onde lambe-se o nome
velho como o mundo
e ele nos engole.

Danilo Barcelos. primavera. 15.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

é estranho esse nem quase tanto,
quase nem visto,
de destino no isto.

é estranho esse nem quase tanto
se sabe lá desse tanto
se nesse esse tem esse de mim
nesse mim
que nem cabe direito nos tantos,
(atrapalhados do mundo)
que nem cabe direito num lápis
no que separa as sílabas
no que distorce,
no por fim,
num tudo assim de nem quase tanto.

e nesse nem quase tanto
assim cheio de tão cheio,
de meio a meio, pro sim,
querer achar o que há de Tem-fim.
é Tem-fim o sem-fim?
cabe nele esse nem quase tanto,
sabe-se lá, de meio a meio pro assim?

terça-feira, 7 de julho de 2015

ali


Remexendo as caixas do passado, dizendo o que daqui parte e o que daqui partirá comigo – porque há futuro chegando, outras estações – achei poeiras e me fartei de alegrias. Achei bilhetes esquecidos, carinhos em muitas cores e letras, lambuzadas todas de saudades; notas fiscais de coisas que nem mais tenho, que seguiram caminhos diversos e dispersos nessa longa caminhada; letras de amigos, de queridos que não mais voltam: todos como grande placas de caminhos que percorri por essa estrada de sem, a mil e tantas por dia, no andar vagaroso de muitos anos de estrada.

É quase, a chegada.

Ali quase nem isso. Ali nosso, de tantos outros. Ali mesmo, porque lá é China é Grécia, é o não e o até-fim. Lá é o novo, quem sabe, o grito libertador. Lá é o não sei. Nada de nada para lá, e nem mesmo nada de alternativas dadas, ou isso ou aquilo ou nenhuma coisa nem outra. E esses carinhos que partem daqui e comigo, e esses escritos, todos eles em mim, presentes nos vãos não completados do longo texto do amanhã: aquele que escrevi por toda a estrada do sem, a mil por dia.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

re-forma


Paredes pedem novas tintas e ensaiam novas cores, momentos de repensar. Fotos revisitadas, espaços de amplidão revividos. É preciso entender o que há de dia no dia, um outono cheio e vazio, o que se espera de dor nos momentos sem dor e onde há precisão, se é outra indiferença. Há a necessidade de pensar o que se foi, quando foi, por que foi, se foi realmente. E tentar reescrever o tempo e o espaço, refazendo tudo como antes, sem antes, mas com um agora enorme e lento onde me deito e esqueço. Um lugar vazio de mim em mim, onde amanhã é depois de outro tempo ignóbil, inoportuno e frio, mas meu.

terça-feira, 5 de maio de 2015

Um ano violante


Há um ano, descobri um outro mundo significativo, mais harmônico, mais melódico. Nesse um ano de novas significações (esse mundo mais melódico, que veio da viola que toco e que me toca), aprendo a calma que a ancestralidade musical guardou nas cordas duplas, na sonoridade de jeito árabe e ibérico que ela carrega.

Tornamo-nos grandes amantes. A viola vive comigo a maior parte do meu tempo. Por um dia desses, na rodoviária de Ouro Preto, a viola fez uma senhora dançar e me contar de sua vida de carregar latas d'água na cabeça, de seu passado sofrido. A neta da senhora filmou-a dançar a música do Tom que a viola tocou e eu não vi o vídeo, não sei de seu destino. No chão da rodoviária de Belo Horizonte, ela fez parar pessoas curiosas, gente que sempre, indistintamente, se aproxima dela sorrindo.

De todas as experiências que tive com a viola, essa é a mais intrigante: as pessoas que dela se aproximam quando começamos a tocar chegam sorrindo! No Jardim, em Mariana, juntou em torno de si crianças curiosas, hipnotizadas, um rapaz com uma gaita e outras histórias de vida. Na praça da Liberdade, em BH, fez uma mulher fotografá-la, uma criança dançar e um casal de namorados sorrir. Na minha casa ela encanta os livros, as coisas fora de lugar, motiva um vizinho a tocar violão numa janela ignorada.

Ontem lembramos com ela nostalgias. Cantamos Chico, músicas de outras noites e outras alegrias, no seu jeito e no meu jeito ainda pouco treinados, mas muito íntimos. A viola, ciumenta, quer viajar comigo, conhecer meus amigos, ir comigo a todo canto, cantar o que gosto de ouvir, o que sempre toquei e o que ela gosta de tocar, seu jeito tradicional, as histórias de pacto com o demônio que ela carrega no bojo, nas suas dez cordas. E me trouxe um mundo mais bruto, mais cheio de palavra e mistério, mais cheio de sorriso.

Nesse um ano, uma surpresa recente: ela toca para alguém que dela se enjoa, que julga enviesado o toque que dela sai (entendendo tudo errado), dizendo dar mais valor ao silêncio. E quando querem o silêncio, nos retiramos, eu e ela, desses espaços quando sentimos que não somos mais bem-vindos. Sem ofensas. Pois sabemos que na rua, pelos caminhos e estradas, em outras casas de outras pessoas queridas, alguém dela se achegará sorrindo, pelos próximos acordes que fizermos. A viola criará sorrisos, não precisa resistir onde não a querem mais.

Amanhã cairemos no mundo, eu e ela. Conheceremos pessoas e lugares, e sorrisos de outra natureza. Amanhã, dia de aniversário, ela estará no mundo cheia de tranquilidade. E a cada nova descoberta que faremos a partir de amanhã, do mundo ou de seus acordes, outro eu em mim nascerá, mais melódico, mais harmônico, mais em paz.

quarta-feira, 22 de abril de 2015

fui enganado há muitos anos
(quantos anos?)
muitas vezes

se me levanto
à vida
e me tenho ao espelho
(se me tenho)

é porque me engano de mim
há muitos anos
(tem-se aí?)

se me levanto
à vida (se levanto)
contenho as vias
ou nem tanto

mas é engano
velho engano
estas vias
tal engano

domingo, 19 de abril de 2015

Do estar em comunidade


Jean-Pierre Vernant, em um texto bonito que abre sua reunião de ensaios organizados sob o título de Mito e política, diz que, na Grécia antiga, a noção de amizade se fazia a partir da noção de comunidade, tendo por ponto central o pensamento de que aos amigos tudo é comum. Por isso, a comunidade era, em toda a sua extensão, uma grande teia de relações de amizade, visto que se fazia dentro de uma lógica de comuns. Ser amigo, pois, é estar entre comuns e viver em comunidade nada mais é que estar, em relações mais complexas e amplas, cercado de amigos.

Vernant começa discutindo isso para pensar duas relações de sua própria vida: lembrar seus momentos de envolvimento com a resistência francesa no período da ocupação nazista em Paris e sua relação de amigos conquistados ao longo de sua carreira como pesquisador do mundo grego, de seus estudos universitários e de seus desdobramentos. Enquanto pensa o conceito grego de amizade, o pesquisador fala de si de forma mais descontraída e com menos carga ensaística, um texto que não se aproxima da costumeira escrita acadêmica, mas que quer, assim, aproximar o leitor de um autor mais real e humano, mais comum.

O que importa aqui desse belo texto de Vernant é o ponto de que estar entre amigos traz uma garantia de preservação do passado, o que contribui para que a nossa própria vida tenha sentido, visto que é possível perceber na memória do outro uma lembrança que se soma à nossa, ampliando assim a noção que temos sobre nós mesmos e o que, nesta noção, é particular e importante, aquilo que nos faz comuns em muitos pontos. Nesse sentido, nada é estranho entre amigos. E o tempo, importante e denso, quando põe amigos em contato, propicia que, nele, possamos entender melhor o que fizemos nós de nós mesmos, como tangenciamos a existência e o que, em nós, é um passado mais verossímil, no momento em que, por felicidade, podemos reviver e celebrar por breves instantes o que é, de fato, a comunidade a qual nos completa.

Ontem, como há muito não se dava em mim, estive em contato com amigos e amigas que, mesmo com o distanciamento no tempo, ainda me são comuns. E esses amigos e amigas, a quem eu ainda sou comum, acolheram-me no calor da comunidade que nós, ano após anos, por essas terras de montanhas mineiras, consolidamos, construímos, tecemos. E nesse encontro comunitário, amplo e de compartilhamento de experiências e notícias, dois famosos versos de Drummond dos quais tanto gosto reviveram-se em mim: “De tudo fica um pouco” e “É certo que me repito”.

A amizade é feita do que fica e da repetição que tudo tem. Repetir amplia muito o que do outro trazemos, mantemos, compartilhamos, o pouco que carregamos em nós do outro, em suas expressões marcantes, em momentos de felicidade plena. E a repetição surge, no momento em que nos reencontramos, creio, porque tem sabor aquilo que é repetido. É preciso contar a mesma história umas mil vezes porque em cada uma delas, em cada nova versão do velho feito, somos nós que nos revemos, revivendo pela infinita capacidade de relembrar, o que nos foi preciso e caro. Como disse a um velho amigo, é quando tudo vira história que a eternidade se dá.

Nisso, por fim, nessa relação repetida que nos deixa um pouco do outro, deste outro que a nós nada tem de estranho, é que se torna possível perceber o que é, efetivamente, alegria: seu sabor e seu saber (não por acaso, palavras de mesma raiz). Quando podemos reviver tais momentos de amizade comum, repetida e repartida, sabemos o sabor que tudo isso dá ao viver.

E em tempos sombrios como os que vivemos, é bom lembrar sempre que estar em comunidade é buscar viver nas relações a aceitação do outro em sua diferença, percebendo nele o que nos aproxima e nos reúne em um grupo comum. Como diria Caetano, eu não espero pelo dia em que todos os homens concordem. Mas acredito nas harmonias possíveis antes do juízo final e esse sentimento maior de amizade pode ser, por assim dizer, o caminho para essa busca. Ontem, estar entre amigos me fez, novamente e de forma profunda, membro da comunidade que tanto amo.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

saco de trapos

vamos fazer assim:
te dou um sonho e
          você rasga
te dou a música e
                  rasga também
te dou até algum pretexto
           pra rasgar no fim

é carnaval! 

junta esses
rasgos todos
num saco de trapos
e
troca nas ruas
saltando sem céu!
vai-vem ver rasgar a alegria!

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

de neblinas e rios


Neblina. Talvez a maior metáfora. A impossível neblina. Falei dessa neblina tantas vezes, para tanta gente! Falei no ônibus, voltando de uma aula, conversando com Magali. Ela riu, falamos dessas neblinas, das nossas. Dessa que, quando se está nela, é difuso, só a soma de projeções. E falei de outras neblinas, do sertão, de um rio a atravessar.

Sonhei um sonho inconcluso com o rio de Heráclito. E agora estou aqui, na margem entre uma travessia, uma estrada, o rio e a neblina.

Ouvi no rádio a música do Vinícius, de que amor só é bom se doer. Não. Amor não é bom se doer. Quando dói, é porque ele abriu um espaço, saiu do lugar que deveria ocupar. E se saiu daquele lugar, era amor o que ali havia? Era amor quando, sentado no banco sozinho, outra dor enorme surgiu, precisando dele, e não era ombro, nem abraço, nem olhar ali, mas só as sombras das árvores, o chão molhado da chuva? E quando esse espaço é constante e grande e intermitente? É amor?

Desse lado de cá, onde tudo finda um pouco, na neblina, muitas cenas me revisitaram. Eu vi sorrisos como em fotografias. Vi mãos, também, a brincarem com a sombra das paredes. Vi-me sentado no meio-fio a contar histórias, a rir. Naquele tempo era possível um carnaval simples, sem abandonos, sem meu corpo esquecido na porta de algum lugar nunca antes visitado, saco de trapos trocado por confete e serpentina. Naquele tempo, antes da troca, era possível um carnaval. Tive dúvida: era possível? Fui ver nas fotos. Há uma, desbotada, antiga, e nela está estampada, no congelado espaço, o meio-fio, a alegria, sem trapos, trocas, abandonos. Era possível a alegria simples de estar em companhia. Era possível tocar as pessoas, abraçá-las.

Hoje, tudo é uma distância maior que a geográfica, que a estelar. Ela se adensa entre as pessoas e é inútil gritar que vem chegando o carnaval, a alegria simples de conversas nas calçadas, de ressaca na quarta de cinzas. Existem telas, medos, viagens pré-agendadas, escolhas individuais, fotos instantâneas sem revisitação, um carnaval virtual onde ninguém estará onde realmente estará – se é que antes esteve. Num momento, no meio da multidão, muitos pararão para se admirar nas fotos do dia, e o carnaval passará ileso para muitas pessoas, sem tocá-las. Passará sentindo falta da alegria das mãos que se procuram, que querem estar juntas para, lado a lado, uma sobre a outra, tocar a variação 18 do tema de Paganini, de Rachmaninoff. Uma sobre a outra, tocando-se e à música, no meu hoje inconcluso sonho, esse rio de Heráclito. Mas é outro o rio, a neblina, a estrada que finda.

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

ária número I


A pegada na areia, feita à mão, recria o pé e recria o tempo, tece linhas azuis invisíveis. Tece o que sobra de areia no ar quando venta na praia vazia, no mar inabitado. O vazio cabe inteiro dentro de um quarto, dentro do fá sustenido, de um ponto de exclamação. O vazio cabe dentro do som, quando o som, só onda, também é azul e invisivelmente inabitado. O inóspito hábito de tudo, quando não cabe mais nada no tempo de coisas e apetrechos, seus suores de depois. E a solidão, por fim, imensa, rompe o vazio. Aquela que a mão ao criar a pegada na areia quis eliminar. Aquela que os fios azuis quiseram disfarçar, sem entender que o que há, sempre, é solidão, como na onda, no mar inabitavelmente azul. Porque quando a mão criou, creditou, fiou, não havia a espera seca de outro ser, em vão. E as linhas azuis e o mar inabitado sepultaram, por fim, o fio tecido; engavetou-se o fiandeiro em si mesmo na ilusão que teceu pelo caminho, na ilusão que sobra na areia, quando se percebe que não houve pé a pisar a areia: a marca era à mão, criada por ela e por ela duvidada, quando pronta, jurando ser um pé de alguém ainda a pisar a marca que só à mão satisfazia. E a mão a custo acredita saber que a criação escondeu o que há de inaceitável: que há areia, e que ela, sim, seca, é real e inalcançável. Não é companhia e nem cabe nela o lá bemol, o si uma oitava acima.