Há sempre uma rua que se pode seguir até seu fim e nela virar em
outra e assim chegar a uma rodovia. E nela, seguir até seu fim para
chegar onde acaba o asfalto e seguir pela estrada de terra que se
tornará uma trilha até que, de repente, o caminho então será
estreito e, ao olhar para trás, será inútil voltar.
Ali, neste lugar-nenhum, de nome ignorado, eu também possa ser
nenhum, de nome ignorado. Falsear a idade, pedir roupas e sapatos,
talvez algum prato de comida. Pedir algum serviço simples, braçal,
e ficar quieto no lugar, esquecido do mundo. É provável que perto
do lugar haja alguma urbanidade, com alguma escola, algum médico, ou
nem isso. Então, largar o emprego na roça e trabalhar em algum
desses lugares, numa padaria, num bar, num armazém, com um salário
pequeno para pagar um aluguel de um quarto de pensão, que já tenha
lá algum almoço incluído, com uma dona rabugenta que não tenha a
menor noção de onde eu vim, de para onde vou, se tenho ou não
família.
Como desconhecido, posso tornar-me conhecido por outro apelido, ou
por um nome qualquer que pouco importa. Criarei ali outra história
de mim mesmo, recheada de notícias inverídicas. Poderei refazer
tudo: minha maneira de me dirigir às pessoas, o trato que dou a mim
e aos demais. Poderei fingir-me analfabeto para ver até onde vai a
boa-fé humana, testar o que muitos chamam caridade. Deixar-me
esquecer de tudo e quando todos já me derem por morto, lá na rua
que havia deixado, voltar para o que hoje sou, neste nome, nestes traços. Aparecer, repentinamente, na vida
completamente outra para este outro eu que refizer no mundo mais
distante, no lugar-nenhum. Chegar quando meus livros já tiverem extraviado, meu diário
lido, relido, comentado, meus objetos pessoais vasculhados sem
respeito como se vasculham os pertences de um morto. Talvez aí eu
entenda o meu rosto que me ronda.